A estética enquanto narrativa política para sensibilizar as pessoas das violências contra as mulheres. Essa aposta que começou no Chile e mobilizou manifestantes de vários países do mundo chegou a Florianópolis com o fôlego das mulheres que não suportam conviver com as violências visíveis e tampouco com aquelas camufladas pelos poderes ideológicos do Estado. A letra elaborada pelo Latesis, coletivo de mulheres artistas da cidade de Valparaíso no Chile, traz a crítica ao poder político do Estado contra as mulheres, no contexto da repressão às manifestações em protesto ao governo neoliberal de Sebastián Piñera. Segundo as ativistas chilenas, a violência contra essa população aumentou consideravelmente após a ebulição das ruas, especialmente pelas polícias.
Na capital do estado mais bolsonarista do Brasil, conforme evidenciaram as últimas eleições, o grito teve um sentido ainda mais transgressor. Centenas de manifestantes, entre jovens, crianças, adolescentes e mulheres de longa trajetória de luta, ocuparam a escadaria da Catedral, no centro da capital catarinense, e vibraram quando o sino tocou pontualmente às 6 horas da tarde, momento em que iniciaria a apresentação.
“Essa apresentação nos conecta à América Latina. Essas mulheres, esses grupos estão lutando há muito tempo com as questões feministas no Estado, não apareceram simplesmente do nada, são pessoas que estão trabalhando e têm certa representatividade em Santa Catarina, mas que se conectam a outros países da América Latina nesse movimento que é político e tem esse caráter estético”, afirmou Cristina Scheibe Wolff, professora Departamento de História da UFSC.
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A apresentação seguiu as ruas do centro até chegar à frente do Terminal Integrado, onde ocorreu o segundo ato. Durante o trajeto, vimos mulheres chorando, outras eufóricas mesmo em expediente de trabalho, homens que pareciam demonstrar simpatia à causa. Esse apoio contrastou com as rusgas de pelo menos um crítico que gritou algo como “Lula na cadeia”, enquanto as mulheres ocupavam a escadaria da igreja. Foi o momento mais que oportuno para que as manifestantes mirassem seus dedos indicadores: “estuprador és tu!”. Não é raro carimbar o estigma do antipetismo em todo movimento social, incluindo o feminismo. O bolsonarismo carrega a bandeira do antipetismo assentada no fantasioso combate à corrupção, enquanto tenta a todo custo abafar o que não considera importante, como neste caso, romper a lógica de violência às mulheres.
“O estuprador és tu! É a PM, os juízes, o Estado, o presidente”, afirmaram durante a apresentação. A cavalaria instalada entre o terminal e o camelô, representava a figura repressora do Estado, de uma instituição que quatro dias antes agiu com truculência contra a manifestação cultural da Batalha das Minas — rappers que se encontram semanalmente no centro da capital — quebrando caixa de som e disparando gás e balas de borracha contra seus corpos. Não era nem 10 horas da noite quando os policiais militares de Santa Catarina silenciaram as vozes a denunciar violências racistas, machistas e misóginas.
Se o Estado é apontado como ente que mantém e naturaliza as violências contra as mulheres, o que pensar dessa estrutura capitaneada por um presidente misógino? Comprovando a tese da performance, o bolsonarismo institucionalizado e legitimado por pelo menos 30% da população brasileira faz vistas grossas à violência contra as mulheres ou mesmo a desconsidera como tal. “O assassino da Marielle é amigo do presidente”, o ajuste à letra como forma a contextualizá-la à cena nacional, feito pelas manifestantes de Porto Alegre, denuncia as ligações do presidente aos assassinados da vereadora e sua omissão política em relação à conclusão do caso. “Marielle presente” foi o recado das mulheres.
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Quando os adeptos do bolsonarismo veem manifestações como essa, buscam ativar o ridículo e insuflar violências contra as feministas. É o que fez o deputado estadual, Jessé Lopes (PSL) nas redes sociais, ao utilizar-se do mesmo fundamento já ativado pelo ocupante máximo do poder: o merecimento ao estupro. Ao acionar o clichê histórico de feias e peludas às feministas, o parlamentar estende a violência a todas as mulheres, enquanto vítimas em potencial. E são muitas vitimadas por esse crime, foram mais de 60 mil no último ano. Se em algum momento tivemos dúvidas sobre o sentido da crítica ao Estado violador, vemos na figura deste parlamentar o representante legítimo de um dos braços do Estado a naturalizar a violência. Elas deram a resposta certeira: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia”.
“O evento da fala dele, que não é só dele, mas de outros, é um sentimento de repulsa no sentido de que ignora a história, a construção da luta das mulheres, é um sentimento de violência, é um sentimento fascista porque não consegue lidar em uma democracia com o pensamento divergente, com a manifestação das minorias sociais, com a coragem, a determinação e voz das mulheres. A sociedade precisa reagir não só individualmente, mas enquanto instituições, e quando for o caso usar os órgãos de controle para fazer a denúncia”, afirmou a deputada Luciane Carminatti (PT).
Segundo a parlamentar, o deputado tem atuado politicamente de forma violenta para silenciar vozes de parlamentares que se posicionam contra a violência às mulheres. O deputado do estado que ocupa posições de liderança em violência sexual afirmou em plenário que a roupa é chamariz para estupro, em resposta ao projeto de lei contra a cultura do estupro, da deputada Luciane Carminatti (PT). Apesar dele, o projeto foi aprovado.
Se a maioria das vítimas de estupro (53,8%) são meninas de até 13 anos e essa violência ocorre dentro de casa, falamos de uma convivência e conivência com a violência que comprovadamente começa no seio de uma família. Uma estrutura de laços afetivos frágeis que para manter seus natais felizes, por escolha ou coação, não aponta o dedo para o estuprador. Falar sobre essa violência pode ser muito doloroso e desmoronar os sonhos de uma instituição que se pensa base de tudo. Sim, precisamos desestruturar essas bases mantenedoras do medo compactuado pela figura do Estado. Por isso quando as manifestantes, de olhos vendados, afirmam veemente o “Estuprador és tu” não miram no pai, padrasto ou mesmo um desconhecido que a violentou, mas na estrutura social que permite e autoriza esses homens a subordinar e descartar corpos femininos. Se a venda inicialmente não identifica o agressor, por outro lado o dedo apontado é uma maneira de constranger aqueles que passam pelo local.
Em geral, quando uma mulher é assassinada, ela já passou por várias violências que ao longo da vida ficaram submersas. Há um descolamento do ato final do feminicídio, ou mesmo do estupro, do cotidiano de medo e desalento com que as mulheres precisam conviver no Brasil, o quinto país que mais mata mulheres e que também ocupa lideranças em violência sexual. É essa conexão que as manifestantes buscam fazer entre o que aparece da violência, e o que a sustenta e a autoriza.
A venda nos olhos, os “panuelos” verdes, símbolo da luta pela legalização do aborto na América Latina, os rostos marcados de velho-sangue ressignificam a denúncia e marcam a presença de uma arte política carregada de “um poder sem limites, uma beleza sem comparação”, como analisaram a antropóloga Debora Diniz e a cientista social Giselle Carino, associando ao conceito de “sublime” pensado por Kant. Essa beleza que toca e transcende tensiona os velhos valores patriarcais, que aos poucos estão sendo fissurados, apontados e confrontados em seus privilégios. Nem mesmo o orgulho masculinista instalado nos poderes neoliberais, mas não somente neles, poderá conter a força do sublime espalhado pelas ruas. Como afirmaram ao final da performance “Se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista!”.