A prática da violência sexual, como método de tortura física, verbal e psicológica, foi amplamente usada nos órgãos públicos do aparato repressivo do estado brasileiro durante a Ditadura Militar (1964-1985) e teve como suas vítimas, mulheres, homens e crianças, sequestrados e levados presos por serem vinculados, política ou afetivamente à oposição.

Agentes públicos, com cargos de destaque nestes organismos estatais, cometeram estes crimes, a serviço de uma política de estado que visava o extermínio e o controle autoritário de setores da população que ousaram enfrentá-los.  Controlar os corpos dos considerados inimigos, violar a sexualidade foi um método usado para desmoralizar, disseminar desconfianças entre as próprias pessoas encarceradas e ofender sua dignidade.

As mulheres que lutavam contra a ditadura fugiam do seu papel tradicional, de mãe, esposa, do lar. Elas, mesmo que estivessem proibidas, iam às ruas para mobilizar a opinião pública em favor das liberdades democráticas, enfrentavam os policiais, faziam panfletagens, pichações, escreviam e traduziam textos, organizavam passeatas, distribuíam material de propaganda das ideias democráticas. Fugiam ao estereótipo imposto a elas e criavam condições subjetivas e objetivas para que as gerações futuras não mais fossem submetidas ao patriarcado, ao machismo e à misoginia.

Os militares não toleravam tamanha audácia. Vingavam-se da rebeldia das mulheres. Acreditavam ser elas piores do que os homens e odiavam vê-las altivas inclusive nas atividades da luta armada que eles entendiam ser apenas de homens. Tinham “verdadeiro pavor” de enfrentá-las.  Foi a expressão usada em seu depoimento na Comissão da Verdade, pelo coronel reformado Paulo Malhães (1938 – 2014), um dos principais torturadores e matadores da época e integrante do organismo vinculado diretamente à então Presidência da República, CIE – Centro de Informações do Exército, o órgão incumbido dos serviços de informação, repressão e extermínio de opositores. Ali se decidia quem deveria morrer.

Por ódio às mulheres, se sentiam totalmente autorizados a estuprar e cometer tantos outros crimes de lesa humanidade. Isto fazia parte da política estratégica de Estado para eliminar “subversivos perigosos”, expressão publicada recentemente na mídia, quando foi revelado um documento da CIA sobre uma conversa do Ditador Geisel com o chefe do SNI – Serviço Nacional de Informações na qual está explícita a ordem de matar dada pelo então ditador.

Para as mulheres, entretanto, a crueldade era intensificada pelo fato de serem mulheres. Depoimentos das sobreviventes feitos em diversas ocasiões, colocam em evidência os múltiplos métodos usados pelos agentes da repressão:  estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos provocados, separação dos filhos, inclusive no período de amamentação, assistir a tortura contra os companheiros e familiares, ter suas crianças ameaçadas ou mesmo torturadas. O objetivo era humilhá-las, intimidá-las e disseminar o terror junto a toda sociedade civil.

Vocês me escutam falar mas vocês me escutam sentir?[1]

Ainda na época da ditadura, algumas vítimas denunciaram a tortura sexual sofrida na Justiça Militar e muitas dessas denúncias tiveram repercussão no exterior. Foram poucas mas em número suficiente para que impactasse a opinião pública. A censura, o medo permanente e a dificuldade política e ideológica de escutar as mulheres impediram a repercussão necessária em nosso país. O fato é que nenhum torturador e/ou estuprador foi sequer indiciado. A violência sexual não foi considerada um crime, muito menos autônomo. A tortura ocorrida na ditadura não foi criminalizada e, portanto, nenhum torturador foi criminalmente responsabilizado pelo uso sistemático da tortura e do estupro.

Não houve e ainda não há uma escuta social capaz de mobilizar a sociedade, buscar reparações políticas às vítimas da ditadura militar que sofreram a violência sexual. Hoje, depois de tanta ação das feministas na busca por justiça para as mulheres submetidas às práticas de violência doméstica, sexual e social, ainda são frequentes o estupro, a violência e os feminicídios. A violência contra as mulheres é tratada com naturalização e banalidade.

O estupro de Inês Etienne Romeu (1942-2015)

Inês era dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) quando foi presa em São Paulo, em 5 de maio de 1971, pelo então, delegado de polícia do DOPS/SP, Sérgio Paranhos Fleury que a entregou ao CIE- Centro de Informações do Exército e, depois de submetida às torturas, foi levada para a “Casa da Morte”, como ficou conhecido o centro de extermínio de militantes políticos, localizado em Petrópolis/RJ,  e do  qual Inês foi a única sobrevivente.

Em 1981, deu um depoimento ao semanário “Pasquim”, no. 607, de 12 a 18 de janeiro, em que conseguiu relatar o estupro sofrido e outras violências sexuais:

[…]   Fui conduzida para uma casa […] em Petrópolis […] O Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. […] Fui várias vezes espancada e levava choques na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma: estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos “terroristas”. […] Alguns dias depois, […] apareceu dr. Texeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio. […] Aceitei e pedi o revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs-me então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera. […] No momento em que deveria atirar-me sob as rodas de um ônibus, agachei-me e segurei a perna de um deles, chorando e gritando. […] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. […] o ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o ‘Camarão” havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros […][2]

Mais de quatro décadas se passaram daqueles acontecimentos. O coronel reformado do Exército, Paulo Malhães (1937 – 2014), um dos principais responsáveis pelo centro de extermínio, ao prestar depoimento à Comissão da Verdade/RJ, em 25 de março de 2014, admitiu, sem nenhum constrangimento, o seu envolvimento com torturas, mortes e ocultamento de cadáveres de corpos de opositores políticos. Ele forneceu detalhes sobre o funcionamento da “Casa da Morte”, em Petrópolis/RJ. “Ali quantos foram mortos?”  Foi a pergunta da Comissão. Ele respondeu “foram mortos quantos foram necessários “.

O Ministério Público Federal /RJ, pediu ordem judicial para busca e apreensão de toda documentação encontrada na casa do coronel Malhães (falecido). Assim foi possível encontrar documentos que identificavam o “Camarão”, o agente que teria estuprado Inês Etienne. Com a descoberta da identidade de ‘Camarão’, verificou-se tratar do ex-militar Antônio Waneir Pinheiro Lima. Sua identidade, portanto, foi feita em 2014, e Waneir estava, então, com 71 anos de idade. Pertencia à Brigada de Paraquedistas e foi recrutado para atuar na repressão política, sob o comando do então Coronel do Exército, Paulo Malhães.

A partir de sua identificação, “Camarão”, o Antônio Waneir Pinheiro, por ter sido acusado, em 1979,  por Inês Etienne de tê-la estuprada, é submetido à uma ação penal na Vara da Justiça Federal, em Petrópolis/RJ, em 2016, proposta pelo MPF/RJ. Tal ação é inovadora. Pela primeira vez na história da justiça brasileira se faz um pedido para que se reconheça um crime sexual praticado por agente de estado como crime de lesa humanidade.

No relatório do MPF/RJ, de 2017 consta que:

Na ação penal proposta na Justiça Federal de Petrópolis, verifica-se estarem presentes todos os elementos estabelecidos no precedente internacional para a caracterização do fato imputado como delito de lesa-humanidade.

Com efeito:

  1. a conduta imputada ao denunciado é uma das mais graves violências que uma mulher pode sofrer, ofendendo diretamente sua dignidade, sua liberdade, sua honra e sua integridade física e moral;
  2. o ato foi cometido contra uma vítima civil. Ainda que a vítima Inês Etienne Romeu tivesse participado da resistência armada ao regime, como integrante da VPR, no momento do cometimento do crime estava ela sequestrada em centro clandestino de torturas, incomunicável, privada de quaisquer direitos constitucionais, torturada e fortemente machucada. Dessa forma, aplica-se inteiramente a proteção do direito internacional voltada a salvaguardar a integridade física e moral das pessoas colocadas fora de combate, por doença, ferimentos, detenção ou qualquer outra causa;
  3.  o ato foi cometido por motivos discriminatórios, em razão da ideologia política de oposição ao regime ditatorial, adotada pela vítima, e ainda pelo fato de ser ela mulher.

E conclui:

Por tratar-se de crime de lesa-humanidade, a punibilidade do estupro, objeto da ação penal ajuizada em Petrópolis não está, contudo, sujeita às regras do direito interno aplicáveis aos crimes comuns. [3]

No Dia Internacional da Mulher, 8 de março de 2017, foi publicada a decisão da Justiça Federal, em Petrópolis/RJ, que considerou improcedente a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra Antônio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como ‘Camarão’, pelo estupro da ex-presa política Inês Etienne Romeu.

O juiz ainda alegou que não há provas documentais dos fatos, apenas reportagens, entrevistas, “sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros” e que a depoente prestou queixa apenas 8 anos após o ocorrido. É bom lembrar que Inês ficou 9 anos e alguns meses, presa, e só alcançou a liberdade em 1979, quando então, conseguiu a publicação de seu depoimento sobre o que lhe aconteceu inclusive o estupro.

É possível ainda que haja o reconhecimento dos crimes sexuais como crimes de lesa-humanidade?

A CNV- Comissão Nacional da Verdade disponibilizou no seu relatório final, o significado  de violência sexual, definida,  nos seguintes termos: Além da penetração vaginal, anal e oral, também constituem violência sexual golpes nos seios; golpes no estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade reprodutiva; introdução de objetos e/ou animais na vagina, pênis e/ou ânus; choque elétrico nos genitais; sexo oral; atos físicos humilhantes; andar ou desfilar nu ou seminu diante de homens e/ou mulheres; realizar tarefas nu ou seminu; maus-tratos verbais e xingamentos de cunho sexual; obrigar as pessoas a permanecer nuas ou seminuas e expô-las a amigos, familiares e/ou estranhos; ausência de intimidade ou privacidade no uso de banheiros; negar às mulheres artigos de higiene, especialmente durante o período menstrual; e ameaças de violação sexual. (CNV, 2014, p. 419).

O Ministério Público Federal recorreu quanto à negativa da 1ª. Vara Federal Criminal de Petrópolis e, aí então o Tribunal Regional Federal da 1ª.Região (TRF – 2) aceitou a denúncia e o “Camarão”, se tornou réu pois os magistrados acolheram, em 14 de agosto deste ano, sob a alegação de que o caso se trata de crime contra a humanidade.

É um acontecimento inédito na justiça brasileira, o que nos enche de esperança de que um dia alcançaremos a verdade e a justiça para as mulheres que resistiram à ditadura. Oxalá, chegue logo este dia!

Referências:

[1] Kolmar, Gertrud, escritora judia assassinada em Auschwitz. De ‘La mujer poeta”, citado no livro “Esse Infierno”, Buenos Aires,2006.

[2] Este trecho do depoimento encontra-se na publicação: Direito à Memória e à Verdade / Luta, Substantivo Feminino / Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, p. 105.

[3] Ação Penal no 0170716-17.2016.4.02.5106. Autor: MPF – PR-RJ e PRM-Petrópolis. Denunciado: Antonio Waneir Pinheiro Lima. Data do ajuizamento: 1/12/2016. Distribuição: 1a Vara Federal de Petrópolis. Imputações: estupro (art. 213 do CP) e sequestro qualificado (art. 148 do CP).

*Amelinha, como é conhecida, é diretora da União de Mulheres de São Paulo, coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares, integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e é assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Foi militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Presa em 28 de dezembro de 1972, foi levada à Operação Bandeirantes (Oban), onde foi submetida a sessões de torturas realizadas pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi de São Paulo.

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