De um lado a maternidade compulsória, do outro a não maternidade, nisso tudo o racismo patriarcal que atua por meio das instituições das sociedades, que violam e manejam o que seriam direitos reservados às mulheres.

Mais uma vez, vemos o Estado racista patriarcal se posicionando por meio da violação dos direitos reprodutivos, no impedimento do exercício da maternidade. São as camadas de opressões e violências que atingem mulheres/mães negras e, quando em contexto de rua, isso se aprofunda. 

A história de Adrielle e Suzi se insere nesse contexto de muitas camadas de opressões. O Estado, pautado no racismo institucional, por meio do Conselho Tutelar, retirou o bebê dos braços da mãe logo após o nascimento que, de imediato, teve o direito de amamentar a filha negado.

A doação compulsória é uma violação, uma injustiça reprodutiva. Suzi, o bebê de Adrielle foi institucionalizado, “mulheres em situação de rua e/ou usuárias de drogas não podem ter seus filhos e filhas arrancadas(os), suas crianças também não podem ser separadas das mães e famílias”. Escolha, decisão, autonomia, autodeterminação. Como mulheres que vivem em constante violação podem se constituir nesse lugar? 

Rickie Solinger, em seu texto “A incompatibilidade da ‘escolha’ neoliberal e a justiça reprodutiva” nos diz que “Distinções históricas entre mulheres de cor (contexto estadunidense) e mulheres brancas, entre mulheres pobres e de classe média, entre mulheres “saudáveis” e “deficientes” foram reproduzindo e institucionalizando, em parte definindo, alguns grupos de mulheres como boas tomadoras de decisão e as outras ruins. Leis e políticas de bem-estar baseiam-se nessas distinções” e a partir daí define-se a “maternidade legítima” e o seu contrário.

O exercício da  maternidade é uma questão que vive em constante vigilância. De um lado, algumas mulheres são compulsoriamente empurradas para a maternidade e, de outro, outras são, pela mesma forma, coagidas a não reproduzir. Nesta última situação, as mulheres têm uma corporeidade a que não é permitida a maternidade, esse direito não lhes é reservado. São as mulheres negras, indígenas e de grupos racialmente oprimidos e que estão em contexto de rua, prisão e outras situações de vulnerabilidades. Elas não são as mulheres do grupo da “maternidade legítima”. A tomada de decisão da escolha pela reprodução é reservada às mulheres com recursos financeiros suficientes, brancas, sem deficiências, heterossexuais. Essas são, basicamente, as características de uma “mãe legítima”.

“Mulheres que fazem escolhas erradas” é o discurso que justifica a esterilização das mulheres, isso é colocado para o senso comum, para a justiça e para os tomadores de decisão as não “legítimas”. Isso nos faz lembrar da história de Janaína Aparecida Quirino, 37 anos, uma mulher em situação de rua que foi submetida ao procedimento de laqueadura tubária após o parto, ordenado pela justiça, de forma compulsória, contra a sua vontade, violando  a Lei nº 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar. A decisão da justiça em encerrar a vida reprodutiva de Janaína tem como base as práticas eugenistas na sua interlocução com a biopolítica dos corpos que hierarquiza as reproduções e define as maternidades.

O destino das mulheres e de seus direitos sexuais e reprodutivos está ligado aos processos históricos que vivem. Diversos fatores moldam o contexto de reprodução de forma diferente para diferentes grupos de mulheres. No entanto, as mulheres são sempre culpadas por suas escolhas reprodutivas, invisibilizando as questões estruturais (desigualdades de gênero, raça e classe) que geram impactos em suas condições de vida e de sua comunidade, tais como os salários precários e informais, a falta de moradia digna, o empobrecimento, a falta de acesso aos serviços de saúde, o desmonte do sistemas de educação, o encarceramento em massa e o genocídio. 

O papel do Estado é promover um ambiente seguro para o exercício da maternidade, numa perspectiva dos direitos humanos, para Adrielle e Suzi (mãe e filha). Poderíamos listar aqui todos os marcos legais, jurídicos e constitucionais, nacionais e internacionais que o Estado brasileiro se comprometeu pela garantia de salvaguardar mulheres e meninas para viver em um ambiente livre de discriminações e violências de gênero, raça e opressões correlatas. 

Enquanto estivermos sob uma estrutura patriarcal, racista e cis-heteronormativa estaremos em constante ameaça, sendo umas mulheres em situação pior que outras, considerando as dinâmicas interseccionais dos marcadores de opressão.

Até que não forem todas livres, nenhuma de nós poderá exercer a autonomia dos corpos, porque são corpas coletivas que constituem as mulheres.

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  • Emanuelle Goes

    Emanuelle Goes é doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA). Realizou Doutorado Sanduíche na...

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