O caso de Andrielle Amanda dos Santos e sua filha, Suzi, decorrente da atuação do Conselho Tutelar em Florianópolis, tem causado grande repercussão pela violência institucional operada em hospital público logo após o parto, com a institucionalização do bebê à revelia da vontade da mãe.
Narrativas de que Andrielle não se trata de mulher em situação de rua ou usuária de drogas podem nos fazer crer que a ação poderia ser válida se Andrielle fosse. A mulher em situação de rua e/ou usuária de drogas poderia ser separada compulsoriamente de seu(sua) filho(a) recém parido(a) por estar nessa condição?
Apesar da idealização e da imposição da maternidade por meio do modelo da maternidade/família burguesa, de modo moralista, classista, patriarcal e higienista ser uma realidade nas práticas de Estado, especialmente na assistência social e judiciária, tais condições, por si só, não retiram o direito à maternidade ou, ao menos, não deveriam.
Entendo que a situação de rua ou de usuária pouco deveria servir para justificar a separação de Andrielle e Suzi ou negar a maternidade e o vínculo familiar entre elas. Mulheres em situação de rua e/ou usuárias de drogas não podem ter seus filhos e filhas arrancadas(os), suas crianças também não podem ser separadas das mães e famílias e adotadas(os) compulsoriamente.
É o Estado quem tem que oferecer condições para o exercício dessa maternidade e vínculo familiar que, caso impossibilitado, poderá ser mantido por meio da família próxima (biológica ou estendida). O Estado falha, e não as mulheres, nessa impossibilidade, especialmente, se estiverem em situação de rua, posto que há uma série de políticas e mediações necessárias a fim de impedir a separação, institucionalização e adoção.
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Evidentemente, não se trata de (in)capacidade, (ir)responsabilidade, (i)legitimidade das mulheres nessas condições para o exercício da maternidade. O ocorrido com Andrielle e sua filha expõe uma estrutura diferenciadora, preconceituosa e excludente que se utiliza de marcadores de vulnerabilidade social como método de (esterilização e) negação de maternidades e de vínculos familiares plurais, bem como revela uma participação equivocada na viabilização da manutenção dos vínculos familiares por meio de políticas públicas e de uma rede de defesa de direitos dessa população que deveria estar sendo garantida e operacionalizada, como as previstas na Resolução n. 40/2020 Conselho Nacional do Direitos Humanos, dentre as quais se destacam:
- Garantir uma vida livre de violência (art. 123);
- Atenção integral às mulheres adultas e adolescentes gestantes, parturientes e puérperas em situação de rua, com garantia pelas equipes das maternidades do direito à convivência familiar e comunitária (art. 109, X)
- Cuidado integral ao recém-nascido e à mãe pelo SUS e SUAS a fim de fortalecer o vínculo materno e a integração de todos na família natural e/ou extensa (art. 127);
- Garantir as condições materiais necessárias, tais como moradia e renda, bem como apoio social e psicológico especializado, para o exercício da guarda, convivência familiar e comunitária e o melhor interesse da criança (art. 128).
- A situação de rua por si só não pode configurar fundamento para a retirada de crianças de suas mães (art. 128, § 1º).
- O melhor interesse da criança deve estar sempre vinculado ao direito à convivência familiar e comunitária, devendo ter primazia medidas que permitam a permanência da criança com seus genitores ou família extensa (art. 128, § 2º).;
- A institucionalização compulsória deve ser evitada por meio do contato familiar (art. 88, parágrafo único);
- Acesso à moradia permanente prioritariamente às mulheres (art. 124);
- Acolhimento para preservação do convívio familiar (art. 125).
Mulheres em situação de rua podem exercer a maternidade e cabe ao Estado promovê-la, ao invés de aniquilá-la e aprofundar, ainda mais, a segregação da vida e dos vínculos familiares das pessoas em situação de rua que, por certo, se contrapõe ao entendimento monolítico da maternidade.
A maternidade plural, marcada pela exclusão e abandono estatal das pessoas em situação de rua, precisa ser reivindicada pelos movimentos sociais, defensoras e defensores de Direitos Humanos, Conselho Tutelar, Ministério Público, imprensa, dentre outros, para a promoção dos direitos humanos das mulheres, crianças e pessoas em situação de rua.
O caso, ainda, reforça a necessidade de implementação dos centros de defesa dos direitos humanos para população em situação de rua em âmbito local na forma prevista pela Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída no Decreto n. 7.053/2009, e de responsabilização do Estado no âmbito federal, estadual e municipal no atendimento das demandas e peculiaridades da população em situação de rua. Essa população conta com apoios de grupos e militantes e não de políticas públicas efetivas e transversais, o que acarreta e potencializa ações institucionais violentas, como a vivida por Andrielle e Suzi.
* Mariana Salvatti Mescolotto é advogada, militante feminista e mãe da Helena e da Isadora.