Há alguns meses acordei com uma mensagem do meu melhor amigo — e também o artista que faz toda representação visual deste projeto — dizendo que finalmente havia retificado todos seus documentos para “gênero não binário”.

Apesar de ainda não existir uma regulamentação, pessoas não binárias no Brasil conseguem não apenas mudar seus nomes, mas também inserir a informação “agênero/gênero não especificado” em seus documentos por meio de decisão judicial.

Algo simples que não é reconhecido na Inglaterra. Recentemente, conversando com uma pessoa inglesa não binária, ela me contou que havia mudado seu nome há algum tempo, mas que ainda não conseguia votar, devido a diversas questões burocráticas que vinham dificultando o processo.

Não vou negar que isso me deixou bastante confusa. Desde que pisei em Brighton (cidade britânica reconhecida por sua comunidade LGBTQIA+), venho me impressionando sobre como a discussão sobre teoria queer, sexualidade e gênero aparecem em todos os ambientes sociais.

Na mesma semana que tive essa conversa, o estado americano do Tennessee, nos Estados Unidos, aprovou uma lei criminalizando apresentações de drag queens em público e para crianças.

Não pude deixar de me questionar: esses não são os países considerados desenvolvidos, dos quais resgatamos textos acadêmicos e buscamos inspirações culturais e, até mesmo, políticas? Como isso pode acontecer em lugares como esses?

Eu trouxe a questão para a pessoa com quem conversava: mas se há uma discussão tão grande por aqui sobre sexualidade e gênero, e queer é constantemente reconhecido, inclusive, como identidade, como é possível que ainda assim essas coisas aconteçam?

A resposta que recebi foi: “É que politicamente não adianta nada”. Mas se não significa nada politicamente em países considerados desenvolvidos, significaria algo no Brasil?

É isso que tentarei descobrir neste artigo.

Queer como identidade é um problema?

Uma das frases mais comuns no movimento LGBTQIA+ é “orgulho gay”, resquícios de uma grande mobilização que começou na década de 1970. “Orgulho gay” ou “orgulho GLS” (como era usado na época) eram termos que construíam a integração entre grupos do movimento.

Esse processo de reivindicar uma identidade e orgulhar-se dela vinha acompanhado de um discurso de aceitação e aspiração a direitos sexuais que se desenvolve posteriormente, para questões referentes a uniões estáveis, parentalidade e proteção contra crimes de ódio.

No entanto, isso se interrompe no Brasil de forma violenta com a crise da Aids. A identidade, até então motivo de orgulho, passa a ser mobilizada pelos grupos que reinstalam a repressão e discriminação e trazem os discursos de “peste gay”/ “câncer gay”.

A categoria de identidade acaba se tornando, então, um instrumento para estigmatizar e reinstalar o clima de opressão.

Como explica a pesquisadora Caterina Rea, a noção de queer vem justamente fazer a crítica à identidade e afirmar que ela é fluida. A grande questão trazida nas décadas de 1970 e 1980 era a integração social dos grupos que eram considerados “anormais, patológicos e criminosos”.

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Anormais, patológicos e criminosos | Arte: Miranda Almeida*.

Em contrapartida, a teoria queer chega contrabalançando esse processo de normalização e sede por assimilação social. A principal crítica trazida era de como a norma sexual e a norma de gênero produziam fronteiras rígidas que sempre excluíam corpos e grupos que estavam fora do que era aceito e respeitado.

“Então, queer não é uma identidade?”

Sim e não.

Apesar de queer não ser considerada uma identidade para muitos pesquisadores, muitos grupos reivindicam essa categoria enquanto identidade.

Eu já perdi as contas de quantas vezes eu me apresentei para alguém e na hora de falarmos sobre identidades recebi um “sou queer” como resposta. Não seria nada equivocado dizer que queer é entendido como uma identidade por muitos falantes da língua inglesa.

No entanto, esse reconhecimento de queer como identidade pode se apresentar como um desafio político. Tudo começa na própria teoria queer, que entende as identidades enquanto instáveis, ou seja, não há identidades fixas.

Esse entendimento por si só não se apresenta como um problema. Contudo, no campo político e na luta por direitos básicos e essenciais, identidade é um fator crucial, principalmente em países do Sul global.

“Por exemplo, se a gente pensa os últimos anos… É preciso, sim, reivindicar essa condição essencial, essa identidade essencial, mas nós temos que ter consciência de que ela é um instrumento e não um fim. Aí se torna complexo”, explica Lugarinho, professor de Literatura da Universidade Federal de São Paulo.

A identidade como instrumento serve para garantir lutas políticas e expressar existências que não são reconhecidas.

Entretanto, esse é um instrumento de vivência política.

Identidade queer no Brasil? Sim ou não?

Nos primeiros seis meses de 2023, o Brasil bateu o recorde de retificações de nome e gênero, de acordo com levantamento da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais).

Os movimentos sociais brasileiros, através de sua organização política, possuem forte influência em diferentes setores da sociedade brasileira. As reivindicações do movimento LGBTQIA+, por exemplo, vêm ganhando maior visibilidade ao ponto de originar projetos de lei em todos os níveis do Legislativo.

As estratégias e a pressão exercida pelo movimento estão garantindo direitos básicos, como a mudança de nome e gênero (mesmo que ainda lenta) em todos os estados do país.

E qual é o principal elemento nessas lutas?

O reconhecimento de diferentes identidades.

Segundo Caterina Rea, no contexto brasileiro, os movimentos LGBTQIA+ estão diretamente ligados às lutas pelas políticas públicas. Ela explica que a questão da crítica à identidade — uma dinâmica muito forte em países do Norte — acaba sendo mais difícil no Brasil justamente pelo constante diálogo existente entre Estado e movimentos sociais.

“Se você vai perante ao Estado e diz ‘não tenho identidade’, a resposta do Estado será: ‘ué, quem é você e o que você quer?”, diz Rea.

Além disso, há outros dois elementos cruciais para a criação de políticas públicas: a questão de raça e classe — ainda pouco abordada nos estudos queer do Norte global. Uma política pública para uma mulher lésbica, cisgênero e branca é muito diferente de uma política pública desenvolvida para uma mulher trans, preta e de classe baixa.

Esse é um dos conflitos, pois se ambas estiverem na mesma categoria identitária, a categoria queer, como se desenvolveria uma política pública que desse conta das peculiaridades da vivência de cada uma?

“Aí nos deparamos com as contradições, né. A América do Sul, que é mais homofóbica, mais transfóbica e que tem mais assassinato de pessoas trans, é tambem um lugar onde se tem um avanço que não se encontra em alguns outros países do Norte global”, diz Rea.

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Um mergulho na fluidez | Arte: Miranda Almeida.

Acontece que em um país como o Brasil, ter identidade é uma necessidade. Como explica a pesquisadora, ativista e assistente social Bruna Irineu, em uma leitura mais clássica da teoria é possível observar que o objetivo de queer não é o reconhecimento, pois o que queer propõe é a fluidez.

Mas é possível fluir no Brasil?

“O Brasil não é esse lugar, assim como a América Latina como um todo e o Caribe também. Não é esse lugar que você flui, pois é um país onde para tudo você precisa colocar o nome da mãe, por exemplo. É uma constituição familista, é uma cidadania dependente do Estado”, esclarece Irineu.

Esse Estado, como explica, se constrói a partir de marcas coloniais que colocam a identidade como essencial no processo de criação de políticas.

“A identidade tem um efeito porque a gente tem uma distribuição de renda péssima e nós temos zero consolidação dos direitos sociais. Nós temos direitos civis e direitos políticos consolidados, mas quando falamos de direitos sociais como trabalho, emprego, renda, acesso à saúde de qualidade e educação superior… Estamos muito longe do Norte global”, diz Irineu.

Há várias perspectivas dentro dos estudos queer questionando se pode ser considerada uma identidade ou não. A verdade é que não há uma resposta certa para essa questão, mas diferentes pontos de vista.

Pesquisadores que defendem que queer não pode ser considerada uma identidade argumentam que a razão é a natureza disruptiva e subversiva. Queer é, portanto, uma posição ou lentes para questionar normas e categorias relacionadas não apenas a gênero e sexualidade.

Como aponta Mário Lugarinho, queer pode ser entendido como um processo.

“Não existe um queer’ ou ‘the queer’, mas é o verbo to be, é o estar, é uma deriva. Se explica muito bem quando você pensa o ’queering’, quando você transforma em verbo. Então, é um processo, um ponto de vista, uma forma de observar um objeto, vê-lo e colocá-lo numa estabilidade, desfixá-lo”, explica.

Queer, nessa perspectiva, é um processo sempre em andamento de questionar e desestabilizar identidades fixas e categorias, o que possibilita uma visão mais ampla de possibilidades que vai além do que é aceito socialmente.

E cadê raça e classe nessa conversa toda?

Em 2022, o Brasil registrou pelo menos 151 pessoas trans mortas, sendo 131 casos de assassinatos e 20 pessoas trans suicidadas, segundo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Dentre os casos analisados, 76% eram travestis/mulheres trans pretas e pardas.

Além disso, dados da mesma pesquisa mostraram que travestis e mulheres trans, principalmente pretas e periféricas, são a maior parcela desempregada ou em subempregos e/ou prostituição no Brasil.

Diante de um cenário como esse, como é possível pensar em queer sem analisar aspectos referentes a raça e classe? E, ainda, quem são os queer que “merecem” viver?

É justamente isso que pesquisadores que se alinham à crítica queer of color irão questionar. Essa é uma linha teórica que reconhece que as experiências queer são formadas por aspectos raciais e étnicos e essas experiências se diferenciam das vividas por pessoas brancas.

Queer of color traz a questão de quais são os queer que são assimilados, que são considerados como viáveis, que são respeitáveis e dignos de viver e quais são os queer que por serem racializados são entendidos como ‘outros’ e rejeitados como fora das normas da viabilidade e da respeitabilidade”, explica Caterina Rea.

Pesquisadores filiados ao queer of color são, em sua maioria, pessoas de origem diaspórica, mas sediadas em países do Norte. Como aponta Caterina, esses pesquisadores representam um “Sul do Norte”, porque muitas vezes vivenciam na própria pele o racismo e os efeitos da colonialidade e opressão de classe.

Pensar em uma teoria queer para o Brasil requer, portanto, um olhar atento às questões de raça e classe, mas também carece de uma construção de um diálogo mais forte entre países do Sul.

Que projeto cuíer é o brasileiro?

Chegando ao final do Projeto Cuíer, percebo que as perguntas que guiaram essa construção não finalizaram o processo, mas abriram portas para entender algo que ainda está em andamento e que, por essa razão, ainda há muito a ser questionado e respondido.

Ao relembrar histórias da minha cidade natal, ao assistir vídeos do Carnaval brasileiro, ao conversar com os pesquisadores que trouxeram suas visões sobre queer no Brasil, a única conclusão que posso trazer é que já estamos queerizando nossas práticas.

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Paubrasilia echinata, a flor da complexidade de nossas memórias | Arte: Miranda Almeida.

O processo ainda é lento e traz mais questionamentos do que respostas. No entanto, as pesquisas, o ativismo e os movimentos sociais brasileiros mostram que há abertura para buscar as explicações para essas questões.

O Brasil sempre foi queer.

O Brasil é cuíer.

*Miranda Almeida é produtor cultural e colagista, pós-graduado em arte e tecnologia. Terrorista de gênero nas terras candangas de Brasília e Assessor Administrativo no Instituto Cultural e Social No Setor.

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  • Louise da Campo

    Jornalista, mestre em Letras pela Universidade Federal de Pelotas e mestre em Gênero e Mídia pela University of Sussex n...

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