Por Yasser Socarrás González.
“Boneca de pano”, trabalho apresentado pelo coletivo de pesquisa teatral feminista “(em) Companhia de Mulheres”, resulta ante os olhos como um ato de libertação. Meire Silva, Priscila Mesquita e Drica Santos adentram em um universo por muitos ignorado (a maioria das vezes por vontade própria). Um conjunto composto de três contundentes monólogos onde cada uma das atrizes nos tira da zona de conforto para enfrentar realidades que como elas mesmas apontam é um “misto de denúncia, confissão e provocação”.
Embora esta disciplina de Relações de Gênero seja minha primeira aproximação formal a estas questões é impossível manter-se à margem das mais diversas situações e conflitos gerados a partir delas. Apesar dos monólogos discursarem sobre diferentes situações constrangedoras, dolorosas e desgarradoras, vivenciadas por inúmeras mulheres, gostaria de me deter especificamente no monólogo “vivido” pela atriz Drica Santos. Chama-me poderosamente à atenção este fragmento da peça não só pela temática, mas também pelo fato de ser uma mulher negra que o vivenciara. A condição de ser mulher, negra em grande parte do mundo e no Brasil, já sem sequer pronunciar palavra alguma ou mexer um fio de cabelo nos traz e nos apresenta todo um universo muito particular. Um ponto de partida ante a vida, totalmente em desvantagem na maioria dos casos, para se enfrentar a qualquer situação no seu dia a dia.
Com este elemento puramente visual, o coletivo nos avisa que vamos a vivenciar algo carregado de uma longa história de opressão, abusos e atrocidades. E é aí que logo percebemos o “assunto”. A privação do direito da mulher brasileira a decidir sobre a sua maternidade.
Este trecho da obra Boneca de Pano é de uma força visual impactante. A atriz permanece grande parte do seu monólogo deitada de pernas levantadas e abertas, pronta para ser “submetida” mais uma vez. Não é necessário instrumento algum ou efeitos de som para nos desestabilizar, não existe forma humana de ficar ileso ante o que estamos presenciando. Por momentos e buscando reforçar com um toque documental, são trazidas alarmantes cifras estatísticas dos abortos praticados ilegalmente no Brasil, muitos deles terminando em mortes e sofrimentos. Este momento consegue distanciar emocionalmente o espectador, não para devolvê-lo à zona de conforto, mas para tornar-nos responsáveis enquanto sociedade desta situação.
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A opção minimalista na montagem da peça não só atende uma proposta estética como é também conceito. Três mulheres que decidem montar seu espetáculo de forma independente, sem esperar pela permissão de ninguém, só pela necessidade quase insuportável de “dar a luz” este soco direto em nossa intolerância, não cabe outra escolha que esta.
Para mim que venho de Cuba um país onde o aborto no código penal é ilegal só quando não é a mulher a que decide, quando não é feito dentro de uma instituição hospitalar, quando não é realizado por especialistas e/ou quando não é gratuito, resulta ainda mais absurdo a situação da mulher brasileira ante esta circunstância. Absurdo que a intolerância moral e social decida a vida de milhões de mulheres. Absurdo que esta medida seja tomada com bases religiosas e moralistas, deixando de lado a importância que tem entender o aborto como um problema de saúde que afeta, não só física e psicologicamente as mulheres que atravessam esta situação, senão que traz conseqüências sociais muito além desse ato “pessoal” que é o aborto.
Entendo que este é um direito incondicional da mulher, acho que um grande passo a ser tomado pelo governo é investir na educação, e neste caso na educação sexual. Não adianta legalizar o aborto e que esta opção vire um método anticoncepcional, onde mais uma vez serão as mulheres em sua maioria pobres, de zonas periféricas, negras, as que seguiram sofrendo as conseqüências. Se tomarmos como exemplo novamente Cuba, país em que desde o ano 1965 o aborto é legalizado, percebemos duas realidades fundamentais. A primeira é que a tendência tem sido a diminuir o número de abortos realizados. Mas vale destacar que se há generalizado outra técnica chamada “regulação menstrual” que resulta menos invasiva, mas que segue sendo um risco pra a saúde reprodutiva da mulher, só que não aparece registrado nas estatísticas como aborto.
A outra realidade, bem preocupante, é a tendência crescente de utilizar o aborto como método anticoncepcional, sobretudo entre as adolescentes e jovens, mas também nas mulheres em idade fértil. Isso está se refletindo na baixa taxa de natalidade no país o que desprende como conseqüência o rápido envelhecimento da população cubana.
Então o problema é muito maior que descriminalizar o aborto. O problema está na própria base estrutural da sociedade e na formação “moral” dos cidadãos. Portanto faz-se urgente e impostergável a legalização do aborto no Brasil, mas é necessário pensar e implementar em paralelo outras ações que contribuam de forma responsável à utilização deste direito. Neste sentido o coletivo (em) Companhia de Mulheres com a peça Boneca de Pano nos convida a realizar o quanto antes o aborto de nossa intolerância moral.
*Yasser Socarrás González é cineasta e pesquisador. Formado pelo Instituto Superior de Arte (ISA)-Cuba
e mestrando em Antropologia Social- PPGAS/UFSC.
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