Por Yasser Socarrás González*.

Logo após o triunfo revolucionário em Cuba, foi necessário repensar a questão do racismo e da discriminação racial que ainda estava muito presente. Foi assim que o Governo Revolucionário decretou que esta classe de conduta era inaceitável na nova sociedade que vinha se estabelecendo, prematuramente decretando este aspecto como resolvido. Também outro foco de interesse foi o de melhorar a condição da mulher cubana criando inúmeras oportunidades para sua incorporação de forma ativa no novo processo em que se vivia. Mas esses preconceitos raciais e o machismo foram reduzidos de forma subjetiva a círculos mais fechados, nos quais era possível perpetuá-los de forma disfarçada.

Troco um caminhão de pretas vivas por uma branca morta, é uma das tantas frases racistas e violentas utilizadas em Cuba para referir-se às mulheres negras. Quando aprendemos na escola a História de Cuba, nos livros de texto aparecem poucas mulheres negras com um papel destacado em mais de quinhentos anos de historia, Mariana Grajales e Maria Cabral, mãe e esposa do Maior general Antonio Maceo y Grajales[i], são algumas, mas aparecem reafirmando o discurso patriarcal que detrás de todo grande homem tem sempre uma grande mulher, e neste caso, foram duas. Quando olhamos para nossa televisão ou para o cinema é com grande esforço, num dia de sorte, que conseguimos enxergar uma mulher negra representando um personagem que não seja Jinetera[ii], escrava ou marginal.

Neste panorama de invisibilidade é publicado o livro Afrocubanas, historia, pensamiento y prácticas culturales, Ciencias sociales, 2011, seleção realizada pelas pesquisadoras Daisy Rubiera Castillo e Inés María Martiatu Terry. O fio condutor que une os 34 textos do volume, com uma grande diversidade de estilos e formatos, é a ideia de desconstrução de estereótipos e desmontagem do discurso hegemônico, presente ao longo da historia de Cuba, ao referir se à mulher, neste caso, especificamente, a mulher negra cubana. É uma cartografia do discurso feminino negro em Cuba. Num momento em que o país se encontra num processo de mudanças de modelos e paradigmas, aparece este livro como uma contribuição indiscutível para quebrar o silêncio a que foram submetidas por séculos as mulheres negras cubanas, as Afrocubanas.

Daisy Rubiera Castillo (Santiago de Cuba, 1939), licenciada em História, pesquisa temas afrocubanos, gênero, raça e religão. Entre suas publicações mais importantes encontram-se Reyita, sencillamente, finalista do concurso literário Casa de Las Américas, 1997. Golpeando la memoria, Desafío al Silencio e Aires de la memoria. Foi homenageada com a Placa José María Heredia, a Medalha Raúl Gómez García e a Distinção Madre Melchora 2010, entre outros.

Inés María Martiatu Terry (La Habana, 1942 – La Habana 3 de julho de 2013) foi crítica cultural, ensaísta e narradora. Licenciada em História, realizou estudos de Música, Etnologia e Teatro. Ministrou conferências na Venezuela, Estados Unidos e Colômbia. É Assessora da cátedra de Estudos Africanistas Argeliers León do Instituto Superior de Arte de Cuba. Seu trabalho tem aparecido em publicações especializadas e antologias em mais de dez países. Publicou catorze volumes, dentre eles: Bufo y Nación. Interpelaciones desde el presente (ensaios), Over the Waves and other Stories e Re-Pasar El Puente, antología de teatro de Ediciones El Puente.

O livro está dividido em três partes. A primeira intitulada Historia está composta por três trabalhos.  O primeiro capítulo dedicado à história da mulher negra durante o período colonial em Cuba contribui notavelmente a desterrar de nosso imaginário a ideia de imobilidade das mulheres negras escravizadas. Um exemplo é o texto Reconstruyendo la historia de la exesclava Belén Álvarez da historiadora Oilda Hevia Lanier, onde podemos nos aproximar de algumas das dinâmicas sociais do século XIX onde várias mulheres negras alcançaram um relativo sucesso econômico a ponto de acumular propriedades e viver de rendas. É evidente o alto grau de luta por seus direitos e seu aporte na transmissão da herança cultural. O baixo número de trabalhos neste capítulo responde a uma deficiência de pesquisas que reconstruíam a história desde uma abordagem problematizadora, sobretudo pesquisas dedicadas à mulher negra no período colonial cubano.

A segunda parte Pensamiento, como o seu nome indica, está dedicada fundamentalmente a valorizar o discurso produzido pela mulher negra cubana desde o fim do século XIX até a atualidade dando a relevância que merece e se organizando a partir da compilação de dezessete textos. A doutora em História María del Carmen Barcia Zequeira, em seu artigo Mujeres en torno a Minerva, deixa claro a importância do trabalho das mulheres negras entorno a esta importante publicação do final do século XIX. Mulheres que trouxeram temas e debates sobre identidade, superação cultural entre muitos outros, de suma importância não só para a mulher negra e mestiça da época, mas também para a sociedade negra em geral.  Sobretudo demonstra que estas mulheres estavam adiantadas às mulheres brancas da época em relação à produção de um discurso feminino cubano. Chamo a atenção para o ensaio Género y racialidad: una reflexión obligada en la Cuba de hoy, da pesquisadora e mestre em Estudos de gênero pela Universidad de La Habana , Yulexis Almeida Junco. Neste trabalho a pesquisadora se debruça na análise complexo das dinâmicas raciais e de gênero, temas que por muito tempo têm sido tabu em Cuba. Ao contrário do que muitos acreditam, em Cuba ainda hoje persistem marcadas diferenças sociais pois

não haver considerado «a cor da pele» como o que é, uma variável histórica de diferenciação social entre os cubanos, esquecia que os pontos de partida dos negros, brancos e mestiços para aproveitar as oportunidades que a Revolução trouxe para eles, não eram os mesmos. Esqueceu-se de que o negro além de ser pobre, é negro, o que representa uma desvantagem adicional, inclusive na atual Cuba.[iii]

Claramente se juntarmos as variáveis de raça e gênero, temos a mulher negra nas piores condições de vulnerabilidade dentro da sociedade cubana atual.

Sandra del Valle Casal por sua condição de mulher birracial[iv] na Cuba de hoje consegue nos adentrar nos conflitos existenciais aos quais se enfrenta. No ensaio Pasar por blanca, a autora se debruça sobre a ideia de ambiguidade a que se enfrenta cada dia, as vezes e reconhecida como branca outras como negra, sobretudo num contexto onde as indefinições não são bem vistas. “Ao perceber informações e pontos de vista conflitantes, ela passa por uma submersão de suas fronteiras psicológicas. Descobre que não pode manter conceitos ou ideias dentro de limites rígidos” [v].

En torno a los estereotipos respecto a la Afrocubana: construcción y deconstrucción de mitos de María Ileana Faguaga Iglesias e La mujer en la santería o regla ocha: Género, mitos y realidad de Daisy Rubiera Castillo, são dois textos de grande importância, leitura obrigatória para quem pretende aprofundar nos estudos sobre gênero e raça em Cuba.

Já o terceiro e último capítulo se intitula Práticas culturales com catorze trabalhos no total. Neste ponto do livro os textos selecionados estão direcionados a visibilizar o trabalho de muitas mulheres no campo das artes e da cultura. Analisa como o peso do elemento racial, da herança africana, do autorreconhecimento e do orgulho de ser negras tem influenciado na produção dessas mulheres, tanto na produção pessoal como em sua contribuição social. Em El imaginario femenino negro en Cuba de Aymée Rivera Pérez se manifesta claramente esta influência. Fazendo a análise da alguns poemas das reconhecidas escritoras negras e mulatas cubanas Nancy Morejon, Georgina Herrera e Excilia Saldaña assim como o trabalho da cineasta Gloria Rolando.

Neste ensaio podemos perceber o quanto o trabalho destas escritoras tem mantido a África como um elemento fundamental de sua produção. No caso de Nancy Morejon mais voltada pra um âmbito marxista e socialista, no caso da Herrera transitando entre o social, familiar e com um forte privilégio do sentimento de maternidade e na Saldaña vemos que este elemento esta discursando desde o doméstico, diferentes formas de se aproximar à Afrocubana. Já Gloria Rolando, como cineasta tem abordado mais a temática do Caribe, como as migrações desde os diferentes pontos do caribe anglófono e francófono até Cuba foram importantes na formação da nação e como esta viagem é um desdobramento da que fizeram forçadamente seus ancestrais.

A importância de ter dentro do livro Afrocubanas Un análisis léxico-semántico del discurso sobre la mujer en el rap cubano de Yanelys Abreu Babi e Anette Jiménez Marata, é de grande importância tendo em conta que o Rap, como parte da cultura Hip Hop tem sido desde finais dos anos 80, mas fundamentalmente desde a década de 90, uma das práticas culturais amplamente desenvolvidas como meio de expressão pelas pessoas menos favorecidas socialmente, especialmente negros. Mas o discurso foi por muito tempo em sua essência masculino, abordando em suas letras a mulher fundamentalmente como mãe e sua importância neste papel ou pelas suas características físicas e sensuais, reforçando por momentos os estereótipos hegemônicos. Neste texto se faz uma desconstrução de algumas letras de músicas de rap que abordam a temática da mulher e percebe-se a mudança no discurso uma vez que a mulher começa a ocupar espaços de poder dentro da cultura Hip Hop, utilizando a “língua do opressor”[vi] para falar dela.

Quase a modo de epílogo nos é apresentado uma seção intitulada Historia gráfica onde são visibilizadas estas Afrocubanas das quais se vem falando ao longo do livro. Dezessete fotografias de mulheres negras cubanas. Protagonistas dessa história em grande parte ainda por contar.

A importância deste livro é inquestionável, num momento no qual as discussões sobre o papel das mulheres e homens negros dentro das novas transformações socioeconômicas no país estão cada vez mais no centro do dia a dia de muitos cubanos e cubanas.  Por muito tempo, inclusive depois do triunfo da Revolução cubana, existiu e segue existindo uma invisibilidade editorial em torno das Afrocubanas, não só nas dinâmicas sociais, mas também no ambiente acadêmico tem sido bastante representativo. A ausência destas mulheres nos livros de história, em romances ou literatura científica tem contribuído para este silêncio. Afrocubanas, historia, pensamiento y practicas culturales, se ergue, como o facão utilizado pelas cimarronas[vii] cubanas na sua luta contra o Mayoral[viii], como um documento vivo, possuidor em suas páginas de milhares de vozes que alcançam pela primeira vez o éter, vozes que tem sido silenciadas por demasiado tempo.

[i] Um dos mais importantes guerreiros das lutas pela independência em Cuba. Foi conhecido como o Titán de Bronce pela sua cor e coragem nas lutas.

[ii] Este foi o nome utilizado nos anos noventa em Cuba para referi se as mulheres que exerciam a prostituição com estrangeiros.

[iii] MORALES DOMÍNGUEZ, Esteban. La problemática racial en Cuba. Algunos desafíos. Editorial José Martí, La Habana, 2010, p. 41.

[iv] A autora utiliza este termo pra se referir à mestiça.

[v] ANZALDÚA, Gloria. “La consciencia de la mestiza: Rumo a uma nova conciência”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 3, p. 704-719, setembro/dezembro.2005.

[vi] hooks, bell.Linguagem: ensinar novas paisagens:novas linguagens”. Revista Estudos Feministas, v. 16 n. 3, p.   857-864,  setembro/dezembro.2008.

[vii] Cimarron o Cimarrona em Cuba é o equivalente a quilombola no Brasil.

[viii] Senhor do mato.

Imagem em destaque: Gravura da capa de Belkis Ayón Manso. Sem título. 1993, linóleo.

*Yasser Socarrás González é cineasta e pesquisador. Formado pelo Instituto Superior de Arte (ISA)-Cuba
e mestrando em Antropologia Social- PPGAS/UFSC.

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