Uma cidade rica em sotaques, culturas e experiências. Marcada por diferentes tons e aberta a novas identidades. Assim, múltipla, colorida e diversa como poucas vezes se permite desvelar, Blumenau se mostrou na última quarta-feira, 22 de maio, na abertura da 4ª edição da Semana da África na Universidade Regional de Blumenau (FURB). Com o tema “O Legado”, a programação abriu oficialmente em frente à Biblioteca Central, no campus 1 e se estende até sábado, 25, incluindo palestras, atrações culturais e atividades de conscientização. A Comunidade Africana de Blumenau (Afroblu) busca ampliar a visibilidade da cultura africana, desconstruir estereótipos e preconceitos. O evento é uma alusão à criação da antiga Organização da Unidade Africana (hoje União Africana), em 25 de maio de 1963, na Etiópia. Ao som do atabaque e entre estudantes apressados no vai e vem da entrada da biblioteca, um convite à reflexão: O que sabemos sobre África?

Embora o número de brasileiros que se declaram “pretos” ou “pardos” tenha aumentado nos últimos anos, Santa Catarina é o estado do Brasil com menor população negra (pouco mais de 10%), de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. No entanto, as violências a que estão expostas estas pessoas não parecem menor que em outras regiões do país. Depoimentos de estudantes africanos na FURB reforçam que o racismo está presente no cotidiano, de maneira silenciosa, em atitudes e comportamentos. Às vezes, de forma sutil. Algo difícil de compreender: apesar da forte influência africana na cultura brasileira, somos um país racista.

O ato solene que marcou a abertura da programação foi seguido pela exposição “Nossa Cara Preta”, de Marcelo Rocha, e pela roda de conversa intitulada “Blumenau e os estrangeiros”, um debate cada vez mais oportuno e necessário frente aos crescentes processos migratórios. Durante pouco mais de duas horas numa sala de aula da universidade, sob a mediação do jornalista e professor Sandro Galarça, atual coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da FURB, estudantes, professores e a comunidade em geral puderam trocar experiências e impressões sobre as vivências de estrangeiros na cidade. Refletiram ainda sobre os desafios impostos em tempos de fortalecimento dos discursos racistas e xenófobos. Estávamos em cerca de 30 pessoas – a maioria estrangeiros, especialmente africanos. Havia ainda imigrantes da França, Honduras e Colômbia, hoje residentes em Blumenau, e moradores da região que se sentem “estrangeiros no próprio país”, ao testemunharem relatos de discriminação pela cor da pele. Uma experiência de catarse. Terapêutica, como toda a roda de conversa deveria ser.

O relato da estudante de Medicina da FURB, Sheila Lourenço, de Angola, foi o primeiro a romper o silêncio: “Em Blumenau eu me vi negra pela primeira vez”, desabafou. Ela lembrou que a vinda para o Brasil a impôs a reflexão sobre sua condição de mulher negra. E não foi um processo fácil. No início da faculdade, numa das aulas de sociologia e desafios contemporâneos, o professor conduziu um debate sobre racismo. Sheila ficou calada. Não sabia o que pensar sobre o tema. Vinda de país onde a maioria da população é negra, esta não era uma questão para ela até então. O passar do tempo e a exposição permanente a situações de constrangimento a fizeram criar estratégias de enfrentamento.

Sheila Lourenço, de Angola, estudante de Medicina da FURB conta sua experiência./ Foto: Lucas Gonçalves.

Cansada de cumprimentar pessoas com “bom dia” todas as manhãs sem receber resposta, ela abandonou o hábito, apesar de reconhecer o ato como extrema falta de educação no seu país de origem. Assim como suas colegas angolanas, foi confundida várias vezes como haitiana nas ruas. Outras vezes precisou explicar a localização geográfica de Angola diante do desconhecimento total sobre o país. Certa vez, ignorou uma moradora na portaria do prédio onde mora quando esta – sua vizinha – se recusou a permitir seu acesso no dia que esqueceu as chaves dentro de casa. Noutra ocasião, o preconceito partiu do motorista de um aplicativo. Quando ele a encontrou, atendendo a seu chamado, em frente ao prédio onde mora no bairro Victor Konder, perguntou: “Acabou de sair do trabalho, né?!”, sugerindo que ela estivesse deixando o expediente. Sheila retrucou: “Não! Eu moro aqui!!!”. A coleção de situações explanada expõe o racismo estrutural de um país que não permite enxergar pessoas negras noutra condição senão a serviço do outro.

A FURB reúne hoje 17 estudantes integrantes da Afroblu, originários de diferentes países da África, incluindo Angola, Cabo Verde, Camarões e Guiné Bissau. Já passaram por aqui também estudantes de Moçambique e São Tomé e Príncipe. Dos 54 países independentes que compõem o continente africano, sete têm a língua portuguesa como idioma oficial, sendo Guiné Equatorial o último a adotar o idioma. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) reúne ao todo nove países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste). Nos depoimentos de estudantes africanos na FURB, aparece com frequência o estranhamento de quem ainda acha que África é um país e não um continente, reforçando a necessidade de ações de educação e conscientização.

Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da FURB, estudantes, professores e a comunidade em geral. / Foto: Lucas Gonçalves.

O primeiro grupo de estudantes africanos a vir para Blumenau estudar na FURB chegou à cidade no segundo semestre de 2006 a partir de uma parceria com a empresa petrolífera Sonangol e a universidade. Tive a oportunidade de entrevistar parte do grupo juntamente com a repórter fotográfica Rafaela Martins – quando atuei como repórter em jornal impresso na cidade – para produção da série de reportagem Negra Blumenau, publicada em 2007, sobre as heranças africanas na formação histórica do município. Mais tarde, na pesquisa de mestrado[1], estudei a participação da imprensa na construção da identidade germânica de Blumenau e como esta narrativa predominante contribui para ocultar e invisibilizar outras etnias e culturas.

Uma das entrevistas mais marcantes que fiz para a dissertação foi com o professor aposentado da FURB, doutor em Literatura Inglesa (UFSC) e em Estudos da Tradução (UFSC), José Endoença Martins, intelectual respeitado, cujas palavras reproduzo na integralidade: “A pluralidade que se deseja virá de fora, como uma ação de implosão de ‘o alemânico espírito’. Ou seja, a pluralidade resultará de uma cunha cultural, externa, que provocará uma brecha na germanidade local, forçando-a abrir-se e a impregnar-se de outras culturas”. Suspeito de que Endoença estava certo. E por isso considero a Semana da África um potencial para pensar a diversidade regional.

Ao final da roda de conversa, troquei impressões com algumas pessoas, entre elas um jovem graduado na FURB. Ele demonstrava certo incômodo com o rumo tomado na discussão, quando me disse: “Eu lembro do que ouvi da minha irmã outro dia: às vezes parece que a gente vai querer medir sofrimentos. Buscar quem mais sofreu. Minha avó é alemã e na época da Segunda Guerra Mundial ela foi proibida de falar alemão. Era castigada e obrigada a ajoelhar sobre o milho caso desobedecesse. Eles [os alemães] também sofreram”. Eu parei, pensei e respondi: “A diferença é que alguns ainda estão sofrendo!”. Ele concordou, sinalizando positivamente com a cabeça. E deixamos a sala. Afinal, quando a dor do outro pode ser a minha dor?

[1] O trabalho foi orientado pelo prof. Dr. Jorge Kanehide Ijuim e defendido em 2016, no Programa de Pós Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pode ser consultado na íntegra pelo link: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/174028

 

Ainda dá tempo de conferir a programação da 4ª Semana da África:

Sexta-feira, 24

18h30 – apresentação do livro “A fonte da inspiração”, de Ricardo Mpova. Desfile “A diferença que condiz”, da marca UbuntuDNA. Apresentação de dança “Samba vs Semba”, sessão de poesia, shows musicais, além da presença do Grupo Maracatu Capivara e performances da dança cigana, com Patricia Schneide. Todas as atividades ocorrerão no galpão de arquitetura.

Sábado, 25

16h30 – Oficina e apresentação de capoeira, no Parque Ramiro Ruediger.

21h – Festa Made in África, OAB sede social

 

* Magali Moser é jornalista, doutoranda em Jornalismo na UFSC e bolsista Fapesc.

 

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