AfroDivas: a revolução será preta e crespa
As mulheres negras são lindas e estão lacrando. É a geração do tombamento que ressignifica a estética a partir do ato político. A revolução será preta e crespa
Diferente do que está colocado no imaginário social, a “opção” hegemônica pelo cabelo liso não se trata necessariamente de gosto: é resultado da construção histórica de um padrão estético de valorização da cultura europeia. Mais do que questionar a manutenção desse modelo excludente, a terceira edição do AfroDivas, realizada no último sábado, no Museu Cruz e Sousa, em Florianópolis, afirmou o reconhecimento da beleza dos corpos das mulheres negras como um ato político. Com venda de acessórios, oficinas de penteados, atividades para crianças e apresentações artísticas, o evento marcou a criação do coletivo de mulheres negras “Pretas em Desterro”.
“Não negociaremos”, provocou a atriz e bailarina Giselle Marques, unindo dança afro contemporânea e declamação de poema de Cristiane Mare da Silva, na performance preparada especialmente para o evento . “Toda mulher é filha de Oxum, a divindade da beleza e da feminilidade. Esse jeito de colocar nossa luta como iguais reforça nossa feminilidade e nos empodera”, disse a atriz que, entre outros espetáculos, apresenta o “Mulata tipo exportação”.
“Passávamos ferro quente no cabelo para alisá-lo. Quando usávamos lenço éramos chamadas de relaxada”, rememorou a professora aposentada, Valdeonira Silva dos Santos, reconhecida como pioneira no movimento das mulheres negras em Florianópolis. Homenageada nessa edição, a ativista lembrou que nos anos 80 não havia mulheres negras no movimento feminista, “principalmente em Santa Catarina, o estado mais discriminador da federação”. Na época, ela e outras colegas iniciaram uma batalha para estudar a negritude, pois só havia livros que tratavam a história pela perspectiva europeia. “A gente não sabia por onde começar. Era tanta discriminação”, conta.
O cenário de discriminação étnica e social no estado ainda é “vergonhoso”, como denuncia Valdeonira. “Como podemos resolver essa situação de discriminação e pobreza que vivemos desde sempre?”, perguntou ela ao público.
Leia mais
- Andrielli sofreu tratamento degradante equivalente à tortura, denuncia Cladem
- Trabalhadora doméstica não é da família: conheça o Guia da Contratação Responsável
- Evento marca luta e resistência das mulheres negras, em São José
- “Existe uma política racial no Brasil que ataca nossos modelos de ser”, afirma Vanda Pinedo
- AfroDivas: a revolução será preta e crespa
Cristiane Mare da Silva do coletivo Pretas em Desterro falou da importância da aposta do AfroDivas na rede de economia solidária com o espaço cedido a “afro empreendedoras”, dedicadas a vender artigos e acessórios voltados à valorização da beleza negra. “Valorizem essas mulheres que mostram seus anseios e desejos nos negócios. Mulher preta empoderada é também bem remunerada”, assinalou.
A integrante tratou ainda da conjuntura política de retrocessos resultante do impedimento da presidenta Dilma Rousseff. “Estamos aqui em ato político. Não daremos nenhum passo para trás. Que estejamos preparadas e fortalecidas.”
Revolução será crespa
Em alto astral, a convidada Ivy Guedes, professora da Universidade de Feira de Santa (Uefs), na Bahia, chamou todas para dançar e cantar o grito de guerra da Marcha do Empoderamento Crespo: “Eu tô na rua é pra lutar pelo direito do cabelo encrespar.”
A marcha, realizada no final do ano passado em Salvador, foi uma resposta à música de Bell Marques, ex-cantor do Chiclete com Banana, que dizia “Ô mainha, mas eu só gosto do cabelo de chapinha”. A afronta na cidade com a maior população negra do mundo, depois da África, virou alvo de um procedimento administrativo no Ministério Público, obrigando o cantor a mudar a letra.
Integrante da marcha e do coletivo Vício Crespo, a ativista ressaltou a força das redes sociais na formação de grupos de acolhimentos e pertencimento para mulheres negras que decidiram assumir o cabelo natural e estão em processo de transição capilar. Segundo ela, a posição política pelo uso do cabelo crespo tem levado mulheres ao encontro do feminismo negro. “São mais de 40 mil mulheres em transição. É um fenômeno! As redes têm essa força de mobilização. Essas mulheres precisam se encontrar em sua identidade para depois serem respeitadas”, afirma.
A professora acredita que “empoderada” é o termo do século, especialmente para mulheres negras que foram escravizadas e continuam tendo seus corpos objetificados. “As mulheres negras são lindas e estão lacrando. É a geração do tombamento que ressignifica a estética a partir do ato político. A revolução será preta e crespa”, finalizou ela usando os termos popularizados nas redes.
O encontro terminou com um repertório de sambas interpretados pela cantora Eloísa Gonzaga e banda. Ao final, todas as mulheres cantaram e dançaram juntas o “Canto das três raças”, de Clara Nunes, num dos momentos mais emocionantes do evento.