A atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Rosa Weber, vai se aposentar nos próximos meses e organizações da sociedade civil e do movimento negro têm se mobilizado para que a segunda vaga aberta este ano na Corte seja, enfim, ocupada por uma jurista negra. Em 132 anos de existência, uma mulher passou a ocupar uma cadeira no tribunal em 2000, sendo Weber apenas a terceira até agora. Todas elas brancas. 

Em junho, com a aposentadoria de Ricardo Lewandowski, o presidente Lula indicou seu ex-advogado Cristiano Zanin para a vaga. Ele tomou posse na última quinta-feira (3). A indicação gerou uma onda de críticas por Zanin não ter uma produção acadêmica robusta, por ser aliado pessoal do presidente (foi ele quem defendeu Lula nas investigações da Operação Lava Jato), e também por reforçar o padrão majoritariamente branco e masculino do STF. 

Mobilização

Dados reunidos pela Gênero e Número mostram que dos 170 ministros que já atuaram no órgão somente três eram negros. Além disso, revelam que desde sua criação, o STF teve suas cadeiras ocupadas 95% do tempo por homens brancos, 2,4% por mulheres brancas e 2,7% por homens negros. Para começar a mudar esse histórico, a indicação de alguém que represente o maior grupo demográfico do país — as mulheres negras —  vem sendo amplamente defendida por diferentes grupos do campo progressista. 

Um documento intitulado “Manifesto por juristas negras no Supremo Tribunal Federal”, assinado por mais de 80 entidades da sociedade civil, foi entregue à presidência em março sob o argumento de que a indicação de alguém com esses recortes seria a oportunidade de suprimir uma lacuna na democracia brasileira. 

“Evidentemente, há muitas mulheres negras com notório saber jurídico e reputação ilibada, que assim preenchem os requisitos constitucionais para serem Ministras do STF. Ademais, muitas são também comprometidas com o espírito emancipatório e progressista inerente à nossa Constituição Federal e os direitos de trabalhadoras e trabalhadores em geral, foco desse Governo de Reconstrução”, destaca o manifesto. 

Cresce_mobilização_por_uma_jurista_negra_no_STF_Soraia_Mendes_está_entre_as_candidatas_Ieda_Leal
Ieda Leal | Crédito: Rithyele Dantas.

Para Iêda Leal, secretária de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial que assina o documento representando o Movimento Negro Unificado (MNU), garantir a diversidade e a representatividade da população negra no STF é fundamental. 

“Qualquer pessoa que pense em políticas públicas para o povo negro no Brasil, e até mesmo no mundo, tem que pensar que espaços como esse devem ser ocupados também levando em consideração a representatividade. Nós somos a maioria desse país. Nós somos mais de 56% da população do país. Portanto, essa cadeira tem que ser de uma mulher negra”, afirma. 

Paralelo ao manifesto, listas com sugestões de nomes e apoio a candidaturas específicas também  engrossam o coro por mudança. É o caso da professora doutora Soraia Mendes, cuja candidatura é apoiada por acadêmicas/os e membros da sociedade civil ligados à Justiça. O grupo lançou um abaixo-assinado defendendo seu nome para a Corte e destacando o notório saber jurídico da advogada e colunista do Catarinas. 

Mendes tem mais de vinte anos de docência e diversos livros publicados, especialmente na área de Direito Criminal e Gênero, citados tanto no Supremo quanto na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 2021, ela já havia representado uma “anticandidatura” ao STF frente a André Mendonça, ministro “terrivelmente evangélico”, indicado pelo então presidente Jair Bolsonaro. 

“Foi um movimento de resistência democrática que significava, como em outros momentos da história brasileira, o de marcar uma posição em relação a uma caminhada autoritária. Basta lembrar que a mais significativa anticandidatura de que nós tínhamos notícias foi a do próprio Ulysses Guimarães (advogado e político) durante o período da Ditadura Militar”, conta.

Cresce_mobilização_por_uma_jurista_negra_no_STF_Soraia_Mendes_está_entre_as_candidatas_
Soraia Mendes | Crédito: Aline Bittencourt.

Segundo a advogada, a anticandidatura deixou a marca de uma das discussões que estão sendo postas hoje: a de que o debate sobre a indicação ao STF precisa ser um debate aberto e democrático. Ou seja, a sociedade precisa participar. Ela cita o exemplo da Argentina, onde a nomeação de ministros da “Corte Suprema de la Justicia de la Nación” também acontece por indicação unipessoal e decisão pelo Senado, mas há mecanismo para que a população participe. 

Critérios não são o problema

Os critérios para que o presidente da República indique um ministro ou ministra incluem principalmente: idade – 35 anos e menos de 75 anos; notável saber jurídico e reputação ilibada. Em seguida, o indicado ou indicada passa por uma sabatina no Senado Federal. A indicação deve ser aprovada pela maioria absoluta da casa para que então aconteça a nomeação pelo presidente. 

Soraia Mendes não atribui a falta de diversidade no STF nem aos critérios nem a esse processo. Para a advogada, trata-se de um problema estrutural e muito mais complexo. Ela destaca o fato de as mulheres negras, na maioria das vezes, sequer conseguirem alcançar a inserção e a influência políticas necessárias para serem consideradas a cargos do tipo.  Mendes cita a própria trajetória como exemplo, pois ela conta que só conseguiu ascender acadêmica e profissionalmente graças às políticas públicas. 

“Nós mulheres negras sempre fomos excluídas dos espaços de poder. E aí a culpa não é da Constituição ou do critério em si. Eu sou uma mulher negra, filha de uma empregada doméstica, de um operário de fábrica, que fez graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado na universidade pública. Se não fosse a universidade pública eu não teria essa condição de chegar até esse ponto aonde eu cheguei”. 

​O clamor por uma jurista negra no Supremo não é de agora, como bem exemplifica a anticandidatura de Mendes. No Julho das Pretas do ano passado, o Selo Juristas Negras também começou a reivindicar que as próximas vagas na corte fossem ocupadas por uma mulher negra. A mobilização começou com faixas assinalando o pedido na Marcha das Mulheres Negras, em Salvador (BA), e resultou no manifesto entregue à presidência. 

O Selo se propõe a construir uma contranarrativa epistemológica do sistema de justiça brasileiro, criado pelas doutoras Lívia Santana Vaz e Chiara Ramos. Vaz, inclusive, também é candidata ao STF. Luciana Martins, co-gestora de projetos e diretora financeira da iniciativa, aponta que a ausência da mulher negra nos espaços de poder é normalizada, independentemente da esfera. 

Cresce_mobilização_por_uma_jurista_negra_no_STF_Soraia_Mendes_está_entre_as_candidatas_a_justiça_é_uma_mulher_negra
Primeiro livro da Coleção Juristas Negras | Crédito: reprodução.

“Só há pouco tempo uma mulher negra foi nomeada para o TSE. Dá até uma esperança. Será que agora vai?”, indaga Martins citando a nomeação da advogada Edilene Lobo como ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral. Em junho, ela se tornou a primeira mulher negra a integrar a corte e foi indicada pelo presidente Lula. 

“Eu não gosto nem de falar muito sobre representatividade, eu gosto de falar sobre presença porque a nossa ausência é tão normalizada que ainda estamos buscando representante para que tenhamos alguém ali, como se fosse um totem. Eu não quero representantes. Eu quero presenças. Quero presenças não só no STF, mas em todas as outras instâncias”, defende.  

Cresce_mobilização_por_uma_jurista_negra_no_STF_Soraia_Mendes_está_entre_as_candidatas_Luciana_Martins
Luciana Martins | Crédito: Alessandro Costa.

Além da representatividade, interseccionalidade

A falta de representatividade no “guardião da Constituição”, no entanto, não é o único motivo apontado pelas mobilizações. Mendes, por exemplo, defende que a representatividade importa, mas que sozinha ela não é suficiente para dar conta de todas as demandas que chegam ao STF. Enquanto teórica crítica, ela destaca que na pauta do Supremo estão questões mais amplas, relativas aos direitos dos povos indígenas, aos direitos dos trabalhadores em conflitos sociais, aos direitos sociais, à comunidade LGBTIA+. E, portanto, é preciso olhar para a questão sob ótica da interseccionalidade.

“E essa ideia de interseccionalidade não é só de gênero, ela é de gênero, raça e classe. Não basta ser uma mulher e não basta ser uma mulher negra, é preciso um compromisso com justiça social e com democracia e isso se verifica ao longo de toda uma trajetória”, completa.

Após o recesso de julho, o STF retoma suas atividades com uma pauta cheia de julgamentos decisivos. Entre eles a discussão sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal; o julgamento sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas e a ADPF 442, que requer a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, de relatoria de Weber. 

“Não tem como responder a complexidade do que chega ao Supremo Tribunal Federal só com uma teoria racial. Assim como não tem como responder só com uma teoria feminista. Então, é preciso juntar todos esses aspectos congregados na teoria crítica”. 

Ieda Leal corrobora com esse pensamento e, assim como também consta no manifesto que assinou, ressalta que não faltam juristas competentes que atendam aos critérios de indicação e que, portanto, podem ser consideradas para a cadeira que vai ser deixada por Weber até outubro.

“Não é apenas pela cor da pele, mas pela competência, sabedoria e a condição de participar de um colegiado de elevada potência. Então, nós não podemos resumir só por conta da representatividade racial, que é fundamental, mas a pessoa que vai estar lá ela tem que estar vestida no melhor sentido da sabedoria e do domínio. O que nós estamos dizendo é isso: mulheres negras movem o Brasil e têm a capacidade de colaborar nesse colegiado”, frisa. 

Jurisprudência e contribuição das mulheres negras

Outro argumento levantado é que a presença de uma ministra negra pode impactar na jurisprudência do país. O pesquisador Edmo Cidade, mestre em Teoria e História do Direito, lembra que mulheres negras sempre estiveram na vanguarda das lutas por direitos, introduzindo óticas inovadoras tanto nos movimentos feministas quanto nos movimentos negros. 

Cresce_mobilização_por_uma_jurista_negra_no_STF_Soraia_Mendes_está_entre_as_candidatas_Edmo_de_Jesus
Edmo Cidade | Crédito: reprodução.

Cidade investigou as trajetórias de Eunice Prudente e Dora Bertulio, mulheres negras e pioneiras do campo do Direito cujo conhecimento atravessou gerações. O legado da dupla possibilitou uma profusão de pesquisas que questionam e aprofundam as análises a respeito da instrumentalização do Direito e do Sistema de Justiça para a sustentação da ordem racial a partir do controle social dos corpos negros.

Apesar da vasta contribuição, o pesquisador também destaca que a trajetória de mulheres como Eunice e Dora sempre esteve marcada pela dicotomia protagonismo/invisibilidade, já que as dinâmicas sociais, constantemente pautadas pelo machismo e pelo racismo, promovem o apagamento de trajetórias similares. 

“A ocultação do contributo de mulheres negras na área jurídica, algo endêmico, milita em prol do genocídio epistêmico, da aniquilação simbólica, mas também material, de pessoas sem as quais conquistas sociais de relevo e que a todos beneficiam jamais teriam sido alcançadas. Afinal, as atuações dessas mulheres impactaram sobremaneira os movimentos sociais brasileiros”, analisa. 

Soraia Mendes também diz não ter dúvida de que uma indicação com as credenciais que estão sendo levantadas pode sim refletir em diferentes instâncias, numa espécie de efeito cascata. Ela lembra da própria contribuição através dos livros de sua autoria citados no Tribunal Federal, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos votos dos ministros e na própria jurisprudência.

“Eu não tenho dúvida alguma pela minha própria experiência como doutrinadora de que a nossa perspectiva de direito é uma perspectiva que soma. É bom que se diga isso. Ela não é uma perspectiva que tem que substituir ou simplesmente querer ser a única, mas é uma perspectiva que precisa somar”. 

Expectativas 

A reivindicação por uma ministra negra na corte também é defendida por integrantes do governo. Os ministros Anielle Franco, da Igualdade Racial, e Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, já falaram publicamente sobre uma indicação com esse recorte para a democratização dos espaços de poder. 

Luciana Martins, que também é advogada e especialista nas áreas de Infância, Crianças e Adolescentes e Famílias, chama a atenção para a necessidade de letramento racial de quem ocupa esses espaços. 

“A gente precisa de um olhar diferenciado porque o judiciário sempre traz essa vertente de um homem branco decidindo na vida de outras pessoas. E falo ‘homem branco’ porque até a representatividade de gênero é ínfima. Nós temos 11 ministros e temos duas mulheres, sendo que uma delas vai sair. Será que a gente vai ter outro homem branco?”, questiona.

Ieda Leal destaca também os desafios enfrentados nas eleições de 2022, quando as mesmas organizações que hoje defendem tal perfil para o STF apoiaram a campanha do presidente Lula para fazer frente à campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. 

“Chamamos essa tarefa para nossa responsabilidade em nome de Luiza, de Lélia, de Tereza de Benguela, de Carolina Maria de Jesus e tantas outras que fizeram e fazem a construção desse país. Nós mulheres negras estamos exigindo que espaços de poder também sejam assumidos por nós. Nós colocamos os nossos nomes à disposição. “Estamos nos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacionais de Educação, estamos nos Conselhos da Saúde, dialogando com a sociedade. Então, é justo que a gente também assuma todos os espaços para garantir nossa representatividade”.

Mendes, por sua vez, diz que não crê que o presidente Lula não seja sensível a toda essa mobilização ou que tenha mandado recados para o movimento de mulheres dizendo não se preocupar com raça e gênero para a próxima indicação. Ela também reforça que sua candidatura é uma candidatura real, que cumpre com os requisitos constitucionais e adequada a um projeto constitucional de justiça social do qual o presidente Lula também é originário. “Aqui não existe sonho, devaneio, proposta de simplesmente marcar posição. O que a gente está fazendo é algo sério e a gente confia no presidente da República”, finaliza. 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

Últimas