Já faz um certo tempo em que venho insistindo na tecla de que o “segredo de justiça” em processos judiciais somente encontra justificativa de existência na exata medida em que proteja as vítimas de toda e qualquer REVITIMIZAÇÃO perpetrada pela sociedade e/ou, principalmente, por ação e/ou omissão do próprio Judiciário. Mas não é assim.

O segredo, nem no privado, nem no público, jamais foi uma garantia (menos ainda “judicial”) para as mulheres. Nem para as vítimas, nem para suas advogadas. 

Sob o manto do segredo as piores formas de violência processual são ocultadas. Às escuras, o lawfare de gênero, que venho pesquisando há anos, graça livre e impunemente. 

Houve um tempo em que a dignidade sexual era impensável e o estupro, por exemplo, era tido como crime contra os costumes. Um tempo no qual o “segredo” se justificava em nome da “honra” da família. 

Como que uma herança maldita, ainda hoje, nos casos de crimes sexuais, agora por determinação legal desde 2009, o que vemos no cotidiano dos tribunais é o segredo sendo utilizado para acobertar formas de violência processual, tais como as que vimos nos vídeos das audiências de Mariana Ferrer. Mudou-se o nome jurídico do título no Código Penal, mas a cultura jurídica misógina continua afirmando que “manter o segredo” é para o “nosso próprio bem”. 

Nunca foi em nosso nome. Nunca foi sobre nossos corpos. 

Por óbvio que, enquanto garantia bifronte, o segredo judicial há de abranger também a imagem do acusado, sendo inaceitável que sua intimidade seja violada. O que não pode fugir das luzes, de outro lado, é a forma brutalmente violadora de como a vítima é tratada nos autos de um processo.

A imposição do segredo e, pior ainda, a criminalização (ou a ameaça de) em caso de sua “quebra” fere profundamente a autonomia privada. O caráter público e incondicionado de uma ação não se confunde com a capacidade de autodeterminar-se e decidir sobre os limites de uma proteção estatal que deve ser facultada, jamais imposta.

Em seu devido lugar, o segredo de justiça trata-se, pois, de uma prerrogativa das VÍTIMAS, as quais (ou, obviamente, a seus responsáveis) deve ser reconhecido o direito de decidir sobre sua imagem, intimidade e privacidade. 

Não raro, entretanto, essa suposta proteção estatal, particularmente quando os delitos sexuais são cometidos por um único agressor (médicos, líderes religiosos etc.) contra várias mulheres (isto é, uma VÍTIMA COLETIVA, como conceituo1), também impossibilita que outras ofendidas, reconhecendo-se na experiência vivenciada pelas que romperam o silêncio, venham a denunciar. 

E aqui entra o outro elemento da equação que dá título a esse artigo: a mídia.

Se já passou da hora de debatermos com seriedade a autonomia feminina sobre o segredo judicial, também já é tempo de discutirmos sem temor o papel FUNDAMENTAL que a imprensa responsável e profissional representa em casos como este da menina de Santa Catarina. 

Antes que os desavisados e as desavisadas corram de encontro a mim e comecem sus longos e carcomidos discursos de que as feministas são “isto” ou as feministas são “aquilo”, digo: não, não há aqui qualquer ingenuidade. Sim, o episódio da Escola Base foi um momento nefasto da história do jornalismo. E, de igual sorte, a transformação da ação do Estado sobre crime em um mórbido entretenimento “caça-audiência” ou “caça-likes” também dificulta muito a abertura do diálogo entre os campos do direito e da comunicação. 

Há acordo no diagnóstico. Contudo, as barreiras não são intransponíveis. 

Repito: há imprensa séria, profissional e responsável. De modo que a relação entre PROCESSO PENAL e MÍDIA não pode mais ser reduzida ao rótulo de mera espetacularização em todos os casos.

 Penso que o caso Mariana Ferrer e o calvário a que foi submetida a menina de Santa Catarina estão aí para mostrar a força deste argumento. E também a urgência de que encaremos este tema de frente, com compromissos mútuos e sem medo. 

Toda solidariedade às colegas advogadas Ariela Melo Rodrigues e Daniela Felix injustamente criminalizadas por aquilo que, se o tivessem feito, ao final seria seu dever. 

E também toda solidariedade aos veículos de imprensa que prestaram um serviço fundamental para que o sadismo sobre a VIDA de uma criança de apenas 10 anos, grávida em decorrência de ESTUPRO, cessasse. 

1 –  MENDES, Soraia da Rosa. Processo Penal Feminista. São Paulo: Atlas, 2021.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

Últimas