A internet inaugura, no início dos anos 2000, um novo tempo para a comunicação por meio de blogs, correio eletrônico, sites de notícias e as redes sociais. Essas novidades trouxeram outras formas de nos relacionarmos, mas, infelizmente, também trouxeram outras formas possíveis de manifestação de violências. Vale dizer que não estamos falando, necessariamente, de novas categorizações de violências, mas de violências seculares, como a misoginia, ou seja, o ódio contra as mulheres, que ganham novas formas e alcances no meio cibernético.

Em uma entrevista ao jornal Le Monde Diplomatique Brasil, Viviane Lira, que é uma mulher lésbica e negra, afirmou que constantemente sofria ataques machistas e lesbofóbicos por parte de homens desconhecidos em forma de comentários no seu perfil do Facebook — até que decidiu parar de postar sobre sua orientação sexual. Na entrevista, ela disse “esse tipo de violência quebra nossas forças de imediato, afeta nosso emocional”.

O ódio às mulheres é o que, desde os primórdios, faz com que sejamos as principais vítimas da violência cometida por homens ou, ainda, culpabilizadas pelos crimes cometidos contra nós mesmas.

Nós, enquanto mulheres, nos sentimos constantemente ameaçadas por essa cultura de ódio — seja ela concretizada na forma de um xingamento na rua ou de um ataque online direto ou indireto.  

É essa opressão que afeta o estado psicológico de todas nós, ainda que em diferentes proporções. A interseccionalidade — entendida como a sobreposição dos marcadores identitários — indica o peso da opressão, como no caso de Viviane. Mulheres lésbicas, mulheres negras, mulheres periféricas sofrem mais, têm sua saúde mental afetada pelo ódio propagado contra seu gênero, mas também contra sua orientação sexual, raça, classe social entre outros marcadores que são fatores de exclusão em nossa sociedade.

Entender que a misoginia é cultural e está na base de nossa sociedade torna um pouco mais fácil compreender o quanto essa violência cometida no mundo físico é facilmente reproduzida no mundo virtual.  Como aponta Mariana Valente, em seu livro Misoginia na Internet, é importante perceber os ambientes offline e online como um sendo a continuidade do outro. 

O ódio propagado no ambiente offline alcança meninos e homens que, valendo-se da dinâmica algorítmica própria do espaço online, fazem com que a misoginia alcance grandes escalas, representando perigo para a nossa dignidade em ambos os ambientes.  

Segundo dados registrados pela organização SaferNet, entre 2021 e 2022, houve um aumento de 251% nos casos reportados de misoginia e opressão contra mulheres no meio cibernético. Essas denúncias revelam o tipo de conteúdo que vem se disseminando na internet de modo indiscriminado.

Os movimentos misóginos na internet, que antes eram organizados na deep web, recentemente se tornaram de fácil acesso em plataformas comuns a todos e todas nós. Homens, por vezes escondidos em perfis anônimos ou falsos, promovem ataques contra mulheres, ameaçam e propagam notícias falsas por vingança ou por ódio da existência do gênero feminino. 

Os chamados incels (celibatários involuntários), geralmente mais jovens, introspectivos e sem muita interação social, entendem que a falta de socialização pela qual passam é culpa das mulheres que os ignoram e, por isso, elas merecem todo ódio e violência. 

Já os redpill são muito conhecidos pelos seus cursos que prometem aos homens sucesso na carreira e métodos de como não caírem na armadilha de estar com “qualquer mulher”. Há também o MGTOW, sigla para Men Going Their Own Way, traduzido do inglês ‘Homens Seguindo Seu Próprio Caminho’, que é um movimento que propaga que homens não devem se relacionar com mulheres de nenhuma forma e isso será a solução dos problemas masculinos. 

Esses e outros grupos têm um objetivo em comum: disseminar o ódio contra mulheres por serem mulheres. A misoginia possui esse objetivo, violentar mulheres de diversas formas e, com isso, manter a subordinação e desigualdade em relação aos homens. 

Caminhos possíveis

Soluções para o combate à misoginia são diversas, passando pela educação formal e não-formal, pela discussão de normativas mais eficazes, e também, fundamentalmente, pensando em propostas que considerem a internet e as redes sociais.  

Nesse contexto é válido reconhecer a Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012) e a Lei Rose Leonel (Lei nº 13.718/2018) como exemplos de respostas institucionais à violência contra mulher, que também está presente no ambiente online. 

A primeira torna crime, por exemplo, o roubo de informações pessoais guardadas em ambiente virtual, como uma foto íntima, bem como o seu compartilhamento sem a devida autorização, com a finalidade de colocar a vítima em uma situação de vulnerabilidade. 

A segunda, por sua vez, passa a considerar crime o compartilhamento de cena de estupro ou qualquer cena de sexo ou nudez, envolvendo uma pessoa que não consentiu o registro.  

Outra lei que marca o combate a crimes de ódio cometidos em ambiente virtual é a Lei Lola (Lei n° 13.642/2018) que atribui à Polícia Federal a investigação de crimes praticados na internet que promovam conteúdo misógino.

Ainda que tais leis tenham surgido para a proteção das mulheres vítimas de casos de violência no ambiente online, elas são insuficientes para conter a disseminação de ódio às mulheres nesse espaço. Por isso, a regulação é uma discussão necessária e que pode significar a preservação das vidas e da saúde das mulheres, principalmente a mental. 

Tanto as ameaças advindas desses grupos misóginos quanto a mercantilização da misoginia são armas cabais para a deterioração da autoestima das mulheres. Isso ocorre através de cursos produzidos por homens redpill e da imposição de padrões de corpos perfeitos. Esses elementos afetam profundamente a maneira como as mulheres se posicionam no mundo. Além disso, impactam diretamente na segurança que elas terão — ou não — ao tomar decisões sobre as próprias vidas. Isso se reflete em situações como relacionamentos abusivos e casos de assédio no trabalho, por exemplo.

Sendo inevitável viver a vida virtual e física ao mesmo tempo, uma vez que é inegável que a internet se tornou o cotidiano das pessoas, pensar de maneira sistêmica as violências sofridas nesse ambiente e seus efeitos é imprescindível. A misoginia e crimes cibernéticos contra mulheres são cometidos e seus promotores seguem com a sensação de que ficarão impunes. 

Essa inação e impunidade soam como legitimação da violência contra mulher, entre elas a psicológica, gerada na internet e sentida pelas mulheres que vivem sob uma atmosfera de humilhação, ameaça e medo. O nosso momento atual pede que o combate e prevenção da violência contra mulher, especialmente a violência psicológica, tenham como estratégia a regulação e controle do mundo virtual. 


Este texto faz parte da Cartilha Violência Psicológica Contra a Mulher, produzida pelas organizações da Aliança Pelas Mulheres (APM).

Sobre a APM 

A Aliança Pelas Mulheres (APM) é uma coalizão de organizações que atua na promoção dos direitos das mulheres através de advocacy, eventos, pesquisas e a promoção de conscientização sobre violência de gênero.

A coalizão nasce do entendimento que as violências contra as mulheres e a estrutura patriarcal da qual elas nascem, sempre atreladas às estruturas racistas e classistas, são um problema complexo e que, portanto, depende de múltiplas soluções.

Ainda, a coalizão entende que a diversidade do Brasil, com suas múltiplas regiões, costumes e desigualdades, também deve ser observada ao construírem-se ações coletivas que visem a promoção dos direitos das mulheres, usando da interseccionalidade como método para pensar ações e estratégias de educação, prevenção e enfrentamento à todas as formas de violência contra as mulheres. 

Formada por organizações e consultoras residentes nas 5 regiões brasileiras, com atuações nas áreas do direito, assistência social, comunicação, educação em direitos humanos, pesquisa e psicologia, a APM traz um olhar sobre gênero multiprofissional e com foco nas interseccionalidades entre raça, classe, gênero, origens geográficas e outros marcadores sociais.

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