A machosfera se revelou um negócio lucrativo, conforme aponta a pesquisa “Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube”. O estudo identificou, ao menos, 137 canais brasileiros com conteúdo misógino, que juntos acumulam 3,9 bilhões de visualizações, 105 mil vídeos publicados e uma média de 152 mil inscritos.

Entre esses canais, 80% utilizam estratégias de monetização, como anúncios, Super Chat, doações e vendas de produtos. “Essa combinação de mecanismos transforma discursos misóginos em um negócio lucrativo, tanto para os criadores quanto para o YouTube, que também recebe quando produtos são anunciados nos canais”, coloca Luciane Leopoldo Belin, uma das coordenadoras da pesquisa.

Como os mecanismos de transparência do YouTube são limitados, não é possível saber exatamente quanto um canal recebe com publicidade, conforme explica Belin. Porém, a pesquisa identifica valores cobrados por produtos e serviços.

Aprenda-a-evitar-este-tipo-de-mulher-estrategias-discursivas-e-monetizacao-da-misoginia-no-YouTube-pesquisa-netlab.
Menores e maiores valores cobrados por produtos e serviços vendidos por influencers mapeados pela pesquisa | Crédito: Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube.

O estudo integra o Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, parceria do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Ministério das Mulheres.

Embora a Lei Lola Aronovich de 2018 estabeleça que crimes cometidos na internet com conteúdo misógino, ou seja, aqueles que propagam ódio ou aversão às mulheres, devem ser investigados pela Polícia Federal, a pesquisa revela que a misoginia ainda é uma prática comum no ambiente online.

Entenda o que é a machosfera, como identificar conteúdos que fazem parte desse ecossistema e os impactos desses conteúdos na vida das brasileiras.

O que é a machosfera

Luciane Leopoldo Belin, pesquisadora associada ao NetLab, explica que o termo “machosfera” vem sendo usado nacional e internacionalmente para se referir a uma rede de sites, canais, grupos e comunidades digitais onde são compartilhados conteúdos direcionados a homens. Esses materiais abordam temas como comportamento e masculinidade, como, por exemplo, desenvolvimento pessoal, físico, mental e financeiro, além de relacionamentos com mulheres, entre outros.

“Embora nem todos os participantes destas comunidades sejam misóginos, parte significativa dessa rede adota uma perspectiva machista e reacionária aos avanços feministas, promovendo discursos de controle e desprezo às mulheres”, aponta.

O ecossistema da machosfera distribui os conteúdos desde grupos em fóruns e os “chans”, até em aplicativos como Telegram e WhatsApp e sites como o YouTube.

Como a machosfera afeta a vida das brasileiras

Em geral, conteúdos da machosfera ensinam técnicas de desprezo às mulheres e defendem papéis tradicionais de gênero e a submissão feminina, além de reforçar comportamentos discriminatórios e hostis contra as mulheres.

“Quando generalizam características e comportamentos, ao dizer, por exemplo, que ‘mães solteiras são aproveitadoras’ ou que ‘mulheres com mais de 30 anos são rodadas’ e já não são ‘mais adequadas para se relacionar’, eles contribuem para criar novos ou perpetuar antigos estereótipos que dificultam a igualdade de gênero e incentivam, direta ou indiretamente, práticas de violência moral, psicológica, econômica e até mesmo física”, cita.

Aprenda-a-evitar-este-tipo-de-mulher-estratégias-discursivas-e-monetização-da-misoginia-no-YouTube-Luciane-Belin
Luciane Leopoldo Belin, uma das coordenadoras da pesquisa | Crédito: Dandara Lima/Ministério das Mulheres.

Por exemplo, o estudo identificou que entre 2021 e 2024, o volume de vídeos da machosfera aumentou significativamente. Ocorreu o mesmo com a violência contra a mulher no Brasil. Em 2020, foram registrados 63 mil casos de violência sexual contra crianças e mulheres. Em 2023, foram 84 mil ocorrências, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Na pesquisa, também foram identificados canais que encorajam violência psicológica ou moral contra mulheres. Conforme o estudo, a ideia disseminada é de que as mulheres são inimigas, oportunistas ou “parasitas emocionais” dos homens. Essa ideia é usada para justificar táticas de manipulação e abuso psicológico, com o objetivo de afirmar a “dominação” masculina e de “destruir o ego” ou “acabar com a autoestima” das mulheres.

“Outra prática nociva da machosfera é a deslegitimação de direitos conquistados pelas mulheres, por meio de vídeos que atacam leis, como a Lei Maria da Penha, criando narrativas que enfraquecem a proteção jurídica contra a violência de gênero”, destaca a pesquisadora.

Como identificar que um conteúdo integra a machosfera

A pesquisa destaca que, entre os elementos comuns nessas comunidades, estão tanto a linguagem quanto os conteúdos compartilhados. Ela também alerta para uma estratégia utilizada para disfarçar a mensagem, que é o emprego de humor, sarcasmo e ironia, formas que muitas vezes mascaram o real teor de discriminação e misoginia presentes nesses espaços.

Os influenciadores usam termos próprios que contribuem para criar uma espécie de identidade coletiva. “São usadas expressões como ‘homem de alto valor’ e ‘redpillado’, além de termos depreciativos para se referir às mulheres, como ‘MSOL’ para mencionar mães solo e ‘balzaca’ para mulheres com mais de 30 anos”, exemplifica Belin.

Aprenda-a-evitar-este-tipo-de-mulher-estrategias-discursivas-e-monetizacao-da-misoginia-no-YouTube-machosfera.jpg
Termos ofensivos/pejorativos usados para se referir a mulheres. Crédito: Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube.

Há uma tendência de criticar homens com posturas progressistas, que são acusados de fracos e submissos às suas companheiras, com o uso de termos como “bentinho”, “beta”, “gado”, “escravoceta”, “mangina”, entre outros.

Atacar o feminismo e as feministas é uma característica em comum na machosfera, identificada em 89 canais analisados. O discurso propagado afirma que é um movimento social opressor que subjuga os homens e prejudica as próprias mulheres.

A objetificação e a sexualização das mulheres é outro conteúdo habitual. Nos vídeos analisados, são usadas expressões como “cavala gostosa”, para mulheres que possuem corpos dentro dos padrões estéticos propagados nos canais, e “melões”, em referência aos seios, “baranga” e “fofolete”, adotados para ridicularizar e humilhar, além de comparações degradantes, como “peppa” – uma referência à porca que protagoniza o desenho animado “Peppa Pig”.

O ataque ao caráter e à moralidade das mulheres, além do menosprezo intelectual, também é uma marca. É comum o uso de expressões como “interesseira”, “histérica”, “surtada”, “burra” e “só fala merda”.

A comunidade “red pill” é a mais numerosa dentro da machosfera. Para identificar um conteúdo dentro dessa vertente é preciso prestar atenção a referências ao consumo da pílula vermelha, uma alusão ao filme Matrix. Segundo os seguidores dessa comunidade, a pílula entrega supostas “libertação” e “verdade” em relação às mulheres e ao feminismo.

“Essa é outra característica da machosfera: uma espécie de visão conspiracionista da sociedade segundo a qual as mulheres são as verdadeiras opressoras, e não os homens, o que contraria séculos de História”, ressalta Benin.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

Últimas