18 anos da Lei Maria da Penha e a invisibilidade da violência contra mulheres com deficiência
A Lei Maria da Penha é um marco na proteção das mulheres brasileiras contra a violência de gênero. No entanto, ainda há muito a ser feito, especialmente para mulheres com deficiência.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) chega hoje, 7 de agosto, à maioridade. Promulgada em 2006, ela representa um marco fundamental na garantia de proteção às mulheres brasileiras vítimas de violência de gênero, considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil, mesmo com subnotificações, conta com relatórios que tentam dimensionar essa pavorosa realidade. Em relação a meninas e mulheres com deficiência, no entanto, os dados ainda são precários e reforçam a invisibilidade a que são submetidas nas várias dimensões da vida social. De acordo com o IBGE, elas somam 10,7 milhões de pessoas, ou 10% da população feminina no país.
A última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em julho de 2024, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, não traz qualquer informação relativa a mulheres com deficiência. Já o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o próprio Fórum, incorporou pela primeira vez tais dados apenas em 2021, quando identificou que as mulheres com deficiência, sobretudo intelectual, foram as mais vitimadas em todos os tipos de violência entre a população com essa condição. A violência doméstica é a que mais as atinge.
Conhecer as estatísticas e os vários elementos associados a elas é fundamental porque a violência de gênero não afeta todas as mulheres da mesma forma, sendo urgente compreender o fenômeno, inserido na cultura machista impregnada na sociedade brasileira, sob uma perspectiva interseccional, conforme diversas pesquisadoras do feminismo negro têm alertado, como Kimberlé Crenshaw – que cunhou o termo “interseccionalidade” e, antes dela, a brasileira Lélia Gonzalez; ou seja, a partir de uma abordagem que considere a articulação entre gênero e outros marcadores sociais da diferença, como sexualidade, raça, etnia, classe e capacidade.
No caso das mulheres com deficiência, as especificidades dizem respeito, por exemplo, ao fato de, muitas vezes, o agressor, inserido no ambiente doméstico, ser o único cuidador que elas possuem, configurando uma importante barreira para que essas mulheres rompam o ciclo de violência. Tal constatação aponta para a “centralidade e urgência na elaboração de uma política pública do cuidado”, como ressalta a pesquisadora defiça (termo utilizado por ativistas com deficiência como um marcador da diferença positivado) e bacharel em Direito Thais Becker. Ela investigou, em sua dissertação de Mestrado, defendida este ano junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), as percepções de mulheres com deficiência e de profissionais da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar sobre a violência doméstica e familiar contra mulheres com deficiência.
Entre as medidas que, de acordo com ela, deveriam integrar uma política pública nesse sentido está o repasse de verba para que as pessoas com deficiência contratem um profissional ou remunerem alguém de sua rede de apoio; a ampliação do número de vagas e municípios que possuem residência inclusiva; a efetiva oferta de centros-dias às pessoas com deficiência – o que demanda a previsão e destinação de verba federal e/ou municipal nesse sentido; e a realização de grupos de discussão entre os cuidadores.
“O cuidado precisa ser reconhecido enquanto um trabalho, sendo necessário subverter a atual lógica familista”, destaca ela, na pesquisa.
Entre as barreiras identificadas por Thais no acesso à rede de enfrentamento à violência doméstica estão a ausência de intérpretes de Libras, a falta de acessibilidade espacial e o descrédito aos relatos das mulheres nos serviços, além de barreiras decorrentes da intersecção com outros marcadores sociais, em especial de raça, classe, território e maternidade. Como exemplo, ela cita o preconceito às mulheres negras com deficiência, o difícil acesso ao transporte público, a falta de acessibilidade em centros de saúde de áreas periféricas e a necessidade das mães de conciliar os horários de atendimento dos serviços que procuram com o cuidado e os compromissos dos filhos.
“Essas barreiras, que afetam desproporcionalmente as mulheres com deficiência, impactam o acesso à rede de enfrentamento e a conteúdos informativos sobre a temática, contribuindo para a não percepção da violência e a subnotificação desses casos”, avalia.
No Jornalismo, a situação não é muito diferente, considerando que a cobertura midiática pouco aborda o tema e, quando o faz, muitas vezes reproduz desigualdades relativas à visibilidade e ao tratamento às vítimas nas notícias.
Em recente pesquisa desenvolvida pelo Grupo Transverso – Estudos em Jornalismo, Interesse Público e Crítica (PPGJor/UFSC) – em que analisamos 587 matérias jornalísticas sobre casos concretizados ou tentativas de feminicídio publicadas entre março de 2015, ano da Lei do Feminicídio, e 2021, identificamos apenas uma notícia em que a vítima era descrita como uma mulher com deficiência (“deficiência auditiva”).
Seguindo o padrão das demais publicações analisadas, o crime foi noticiado sem qualquer problematização da violência de gênero que leva ao feminicídio, tampouco houve aprofundamento das questões específicas das mulheres com deficiência nessa situação. A motivação para o crime apontada no texto jornalístico foi o “ciúme exagerado” do ex-companheiro, o que teria motivado o fim da relação.
O Jornalismo, por ser uma instância formadora, que produz e faz circular conhecimento e sentidos, pode contribuir para ressignificar e transformar padrões de desigualdade que marcam a cultura e atravessam a produção de notícias. Privilegiar o respeito à diversidade humana é também abordar de forma responsável e respeitosa, humanizando sem revitimizar as mulheres com deficiência vítimas de violência.
Recomendação:
- Para conferir o conteúdo da Lei Maria da Penha em Libras com áudio e legendas, acesse o site: https://www.pcdlegal.com.br/leimariadapenha/libras-mobile/
- O Guia Feminista “Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania”, do Coletivo Feminista Helen Keller, traz capítulos específico sobre violência contra mulheres com deficiência, a Lei Maria da Penha e acesso à Justiça: https://www.crmpr.org.br/uploadAddress/Guia-Feminista-Helen-Keller[4447].pdf
Onde denunciar:
A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos oferece o Disque 100 e o Disque 180, exclusivo para mulheres vítimas de violência – o site disponibiliza atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras);
Polícia Militar (190);
Delegacia Especializada da Mulher ou Delegacia de Polícia fora do horário comercial.