Plataformas digitais facilitam desinformação sobre aborto, indica estudo
Débora Salles, coordenadora de pesquisa do NetLab/UFRJ, fala sobre o impacto desse tipo de campanha, a necessidade de regulação das big-techs e o papel das redes sociais em temas como o aborto.
À medida que o julgamento da descriminalização do aborto, até a 12ª semana de gestação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), se aproximava, um movimento opositor à discussão se organizava em diferentes plataformas. É o que revela o relatório ‘Temos que dar um basta’: a campanha multiplataforma em 2023 contra a ADPF 442 e o direito ao aborto no Brasil, conduzido pelo Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O estudo detalha como organizações como Brasil Paralelo, Instituto Plínio de Oliveira e Citizen Go, juntamente com perfis ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, lideraram a disseminação de conteúdos antiaborto em redes sociais como WhatsApp, Telegram, Facebook e Instagram.
Em entrevista ao Catarinas, Débora Salles, coordenadora de pesquisa do NetLab, explica o impacto dessas campanhas de desinformação, destacando como o modelo de negócios das plataformas incentiva o engajamento por meio de conteúdos sensacionalistas e polêmicos. A entrevistada aponta para a necessidade urgente de regular as big-techs para garantir a transparência e a qualidade da comunicação digital.
Protocolada em 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e apoiada pela Anis – Instituto de Bioética, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 442,propõe a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
O NetLab coletou e analisou publicações sobre a ADPF 442 e o debate sobre direito ao aborto de 1º de agosto a 30 de novembro de 2023, em diferentes plataformas digitais. Também mapeou a produção e circulação de narrativas antiaborto nesse ecossistema e identificou os principais personagens e casos associados à discussão.
Foram encontrados 4.200 anúncios que custaram cerca de R$860 mil e alcançaram 61,5 milhões de visualizações. A Brasil Paralelo predominou, sendo responsável por mais de 3.208 anúncios (76%) e investindo até R$688 mil, o que representou 80% dos investimentos totais. Os anúncios da produtora tiveram até 35,6 milhões de impressões, destacando-se no ecossistema digital antiaborto.
“Isso revela que anúncios com desinformação ou ataques à igualdade de gênero podem alcançar um público-alvo específico com pouco investimento e poucas restrições”, afirma Salles.
O laboratório fiscaliza a atividade dessas plataformas no Brasil e, recentemente, a Meta (dona do Facebook, do Instagram e do Whatsapp) tentou desqualificar os pesquisadores após eles apontarem falhas e negligência na moderação de anúncios da empresa.
Frente ao impacto das redes sociais em temas como o aborto, a pesquisadora conversa com o Catarinas sobre a necessidade de estratégias eficazes para enfrentar a desinformação e melhorar a comunicação baseada em evidências científicas. Confira a entrevista.
Quais foram os principais desafios enfrentados durante a elaboração do relatório e com quais vocês se deparam na realização de pesquisas em geral?
Além das questões orçamentárias, pois não existe investimento público para esse tipo de pesquisa no Brasil, a coleta de dados está cada vez mais limitada. Temos visto um movimento das plataformas para dificultar o acesso aos dados e isso gera dificuldade para realizar os estudos e também abre um campo de pesquisa em si para discutir essa falta de transparência. Hoje dependemos da boa vontade e proatividade dessas corporações para ter acesso a dados que não têm garantia de qualidade ou de completude. Eles podem oferecer os dados do jeito que quiserem, com a profundidade que lhes for conveniente.
Quando olhamos para um fenômeno de desinformação, não adianta só olhar para uma plataforma, para um perfil específico. As campanhas são feitas multiplataformas, cada ferramenta vai ser usada com uma finalidade, elas são articuladas e isso faz com que o monitoramento e a análise fiquem mais complexos. Outro desafio é o cenário político que tem a ver com a ausência de regulação e de disposição política para regular as big-techs.
Como o laboratório tem acompanhado e se posicionado sobre essa questão?
Nós advogamos pela necessidade de regular, especialmente para garantir transparência porque, independentemente do que for regulado, das obrigações que forem colocadas, é preciso uma forma de fiscalizar o que está acontecendo. Atualmente isso não é possível. Seja os anúncios ou os posts orgânicos, não conseguimos auditar, ter acesso a tudo, pelo contrário. Com transparência é possível fazer diagnósticos melhores e também fiscalizar o que mais for necessário para a regulação.
Essa necessidade se mostra com o caso da União Europeia. Eles aprovaram e colocaram em vigor a Lei de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) que regulamenta as obrigações, contrapartidas, as responsabilidades e as iniciativas de transparência que as plataformas digitais têm que oferecer. Não é uma garantia de que tudo vai mudar e ficar perfeito, mas a partir dessa obrigação os pesquisadores estão começando a ver problemas que antes não eram possíveis de serem vistos.
Mesmo com a lei, várias plataformas estão sendo multadas e questionadas por não atenderem aos critérios estabelecidos. É uma briga difícil. Mas entendemos a regulação, especialmente em prol da transparência, como um caminho necessário.
Pelo que você está falando, como não fica claro como elas operam também fica mais difícil cobrá-las de suas responsabilidades.
Essas políticas de moderação são completamente opacas. Não fica nem um pouco claro o que está sendo moderado, quando, com que frequência.
As plataformas têm uma postura muito contrária à ideia de moderação. Publicamente, toda vez que se coloca isso em discussão, argumentam em favor de uma suposta liberdade de expressão ou alegam que moderar é censurar as pessoas. No entanto, o que não fica explícito é que essas plataformas já realizam um trabalho constante de moderação através de suas práticas de mediação, que incluem seleção, prerrogativa, desvalorização e restrição de conteúdos.
Isso é um trabalho de moderação constante e não vemos disponibilidade ou boa vontade da parte delas de atuar ativamente.
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Já fizemos alguns relatórios denunciando práticas que vão contra os termos de uso das plataformas que, muitas vezes, são questionáveis do ponto de vista legal, e as coisas não mudam. Na verdade, pioram porque medidas de transparência que existiam, como é o caso do CrowdTangle, a ferramenta oferecida pela Meta para acesso aos dados, serão encerradas mundialmente em agosto, conforme anunciado por eles.
Isso significa que os pesquisadores não terão mais acesso aos dados oficiais do Facebook e do Instagram. Eles dizem que vão oferecer outra ferramenta, mas ela parece ser muito pior. Não existe nenhuma obrigação, eles não precisam nos ajudar a entender que tipo de conteúdo é moderado, que tipo de conteúdo é divulgado. Não existe essa disponibilidade por isso a defesa tão incisiva da regulação.
O relatório destaca o tipo de linguagem usada na campanha antiaborto, que tende a ser mais sensacionalista, chocante e com muita desinformação. Quais estratégias são eficazes para fazer frente a esse tipo de conteúdo?
Existe um problema anterior que é: o modelo de negócios das plataformas incentiva o engajamento através de conteúdos sensacionalistas, extremos e provocativos, que geram mais consumo e interação. Assim, mesmo que melhoremos nossas estratégias, parece insuficiente para combater a desinformação disseminada nesses ambientes.
Precisamos impor limites a esse modelo de negócios, pois toda indústria tem seus limites para não se tornar predatória e esse é o limite. A autorregulação atual das plataformas não considera seu impacto público, político e social significativo.
Não é um espaço privado como a minha casa ou uma empresa fechada. Elas têm funções muito mais amplas na sociedade.
Mas elas dependem de anúncios em escala, de conteúdos ultrajantes que deixam as pessoas querendo comprar briga, defender pontos. Eu entendo que é complicado. Produzir informação de qualidade é muito mais caro e fazer as pessoas se engajarem com conteúdo de qualidade também não é banal.
Sobre a abordagem das plataformas em relação a temas sensíveis, como é o caso do aborto. Existe algum privilégio percebido na forma como esses temas são destacados em comparação com outros assuntos menos polêmicos?
Com base nos dados que temos, é difícil afirmar definitivamente sobre esse tipo de privilégio. Até fizemos um relatório sobre o sistema de recomendação do YouTube, destacando como a plataforma privilegiou conteúdos da Jovem Pan durante as eleições de 2022. É possível fazer, mas não em escala justamente porque para obter esses dados é preciso usar métodos pouco convencionais. Não é uma coleta tradicional de dados.
Já nessa pesquisa, observamos que existe uma estrutura de comunicação muito profissional, heterogênea e diversa entre grupos contrários ao aborto. Eles utilizam desde políticos influentes até lançamentos de documentários justamente quando a ADPF estava sendo votada. Essa articulação inclui influenciadores de diferentes escalas, desde políticos renomados até pequenos influenciadores nas redes sociais, além de blogs e abaixo-assinados.
Existe uma articulação muito boa, pois quando há algum problema, eles já têm influenciadores de todos os tamanhos. Do deputado mais votado ao pequeno influenciador no X (antigo Twitter) ou TikTok. Também tem os sites de desinformação, os anúncios. Uma diversidade de estratégias para conseguir fazer barulho. E eles fazem não só no âmbito da comunicação, mas também com incidência nas políticas.
Com relação ao impacto das redes, especialmente em temas sensíveis, até que ponto esse impacto pode ser medido? No caso desse relatório, é possível avaliar a influência das redes em decisões tomadas no mundo físico, digamos assim?
Isso tem sido estudado em vários contextos e os resultados mostram, em geral, que o impacto é muito grande, mas varia de acordo com a situação, a campanha, o país. Nosso esforço tem sido entender o investimento e a audiência alcançada. Apesar das várias limitações de transparência, observamos que mesmo com investimentos modestos é possível atingir uma audiência significativa.
No relatório da ADPF 442, encontramos 4 mil e 200 anúncios que custaram aproximadamente R$860 mil e alcançaram 61,5 milhões de visualizações. É uma audiência enorme para um custo relativamente baixo. Isso revela que anúncios com desinformação ou ataques à igualdade de gênero podem alcançar um público-alvo específico com pouco investimento e poucas restrições.
O impacto é muito grande e o investimento necessário não é tão alto assim. E com poucas amarras, né? Não existem muitos obstáculos. Com pouco dinheiro é possível fazer um grande estrago.
Como fazer frente a esse tipo de estratégia? Qual é a visão de vocês para uma comunicação ideal, especialmente considerando o papel crucial da ciência, que nem sempre é facilmente compreendido?
Existe uma necessidade da defesa da regulação. As organizações que lidam com diferentes temas dentro da sociedade civil são atravessadas por esse cenário desregulamentado. Então, essa conscientização é importante. Não é porque a sua pauta é gênero ou direitos sexuais que as plataformas não são personagens importantes na sua luta.
Além disso, por mais que a gente queira entender o campo da extrema direita e como eles agem, é preciso levar em conta que não queremos ultrapassar os limites éticos. É essencial buscar soluções inovadoras que não comprometam a ética, especialmente porque a estrutura da extrema direita pode ser manipulada de forma problemática em termos de conteúdo.
Devemos resistir ao sensacionalismo e manter-nos fiéis às evidências de qualidade, atendendo à demanda por uma cobertura mais rigorosa, seja por parte dos jornais, influenciadores ou organizações de comunicação.
O Catarinas aborda temas que se beneficiam muito das evidências científicas e frequentemente colabora com universidades, unindo o conhecimento do jornalismo, da ciência e também dos movimentos sociais. O NetLab também segue essa linha de integração entre diferentes áreas. Pode comentar sobre?
Sim, trabalhamos com essa mentalidade. Buscamos esse diálogo com a sociedade civil porque isso dá sentido para o que fazemos e, a partir do diagnóstico que encontramos, é possível tomar decisões. Sejam elas de comunicação, jurídicas ou de governança. Nosso trabalho enriquece com a colaboração com organizações especializadas em diversos temas, como direitos sexuais e reprodutivos.
Nosso objetivo é qualificar a cobertura de assuntos que são foco do laboratório, como clima, gênero, política e eleições. A qualidade da cobertura sobre produção científica precisa melhorar e a pandemia foi um exemplo disso. A imprensa desempenhou um papel crucial em fornecer serviço público, mas muitas vezes a complexidade do processo científico não é compreendida pelo público em geral.
A ciência é um processo contínuo de refutação e avanço, algo que não necessariamente é entendido por todas as pessoas. Além disso, tem a deslegitimação das universidades, um problema que se intensificou ao longo do governo Bolsonaro, mas que não é uma questão nova. Então, projetos que partem da produção de conhecimento, divulgação e articulação do conhecimento científico com o público são essenciais nesse sentido.