Os casos recentes de violência contra meninas e mulheres nos convocam à coragem para defender o direito ao aborto diante do fascismo que avança na dominação dos nossos corpos

Há dois anos eu estava na frente do Cisam quando uma menina de 10 anos fazia o aborto legal e seguro a que tinha direito. Do lado de fora, fundamentalistas com uma Bíblia na mão, ódio nos olhos e tortura que saía pela boca, chamando a criança estuprada de assassina. Na última semana vimos uma juíza e uma promotora, a sangue frio, com voz mansa, pedir a outra criança de 10 anos que suportasse mais um pouco para segurar uma gravidez, fruto de outro estupro, para levar para adoção.

Vimos uma atriz, também vítima de estupro, ser condenada por colunistas sociais por que resolveu dar o bebê para adoção. Vimos o direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos ser derrubado. Aqui no Brasil, o Ministério da Saúde publicou um manual do aborto legal que prevê que as vítimas de estupro que recorrem ao direito sejam investigadas pela polícia. São muitos retrocessos. O fascismo avança na direta dominação dos nossos corpos. Nossos úteros são alvo, nossas vidas não importam.

É preciso ter coragem pra defender o direito ao aborto para todas e todes. Ninguém aborta de bom grado, as mulheres abortam porque precisam. Precisam porque foram estupradas, porque não têm condições de criar mais um filho com a geladeira vazia, porque não aguentam parir mais um filho que irá passar fome. As mulheres ricas pagam pelo aborto, as mulheres pretas e pobres morrem vítimas de abortos inseguros. Mesmo com os ataques que estamos sofrendo, as mulheres e pessoas com útero irão continuar abortando. Sempre foi assim, desde os chás das nossas antepassadas e sempre será. Porque as pessoas precisam ter autonomia sobre seus próprios corpos.

No Brasil, o aborto é descriminalizado em três circunstâncias: risco de vida para a gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia do feto. Mas os fascistas estão no poder: nos executivos, nos legislativos, no judiciário e também nos centros de saúde, dificultando o acesso ao aborto legal. Durante a pandemia, um levantamento realizado pela revista AzMina, com as organizações Gênero e Número e Artigo 19, em junho de 2020, mostrou que apenas 55% dos 76 locais de atendimento para acesso ao aborto legal e seguro continuavam funcionando. A dificuldade em acessar o sistema de saúde e a falta de informações sobre o direito ao aborto levam a milhares de nascidos-vivos de crianças menores de 14 anos. A cada 20 minutos, uma criança de se torna mãe no nosso país. São 70 partos por dia. Todas essas meninas teriam direito ao aborto, algo que está no código penal desde 1940. Há 82 anos conquistamos esse direito que, hoje, querem, com voz mansa de juíza, retirar da gente.

É urgente estancar esses retrocessos. É preciso colocar feministas no poder. Feministas que têm a coragem de defender a legalização do aborto. Precisamos avançar, ocupar os espaços de poder, para que não percamos os direitos já conquistados. O que aconteceu nos Estados Unidos é o nítido sinal do que o conservadorismo faz quando chega ao poder. Lá, a decisão da Suprema Corte, majoritariamente conservadora, derrubou a decisão histórica do caso Roe contra Wade, de 1973, e hoje dá autoridade para que os estados da federação passem a permitir ou não a interrupção da gravidez. Após essa decisão, 26 estados conservadores já estão prontos para proibir o aborto por completo. Alguns estados mais progressistas, no entanto, resistem e anunciaram planos para garantir o aborto por lei e acolher as mulheres e pessoas com útero de outros estados que precisem do serviço.

Essa é a política da vida e da morte. O que aconteceu em Santa Catarina, ou em frente ao Cisam, não é um caso isolado. No Brasil, o Governo Bolsonaro, através do Ministério da Saúde, organiza estratégias para dificultar o acesso ao aborto, criminalizando as mulheres que buscam seus direitos. Em agosto de 2020, o MS editou a Portaria n° 2282/2020 que obriga médicos e profissionais de saúde a notificarem à polícia os casos de aborto por estupro.

Aqui em Pernambuco, de 2010 a 2020, mais de 14 mil meninas com menos de 14 anos de idade se tornaram mães. Todas tinham direito ao aborto legal e seguro e não conseguiram ou não souberam acessá-lo. Por isso, lançamos uma campanha para que o Governo do Estado crie um Disque Denúncia, um canal específico para denúncias e orientações para crianças vítimas de violência sexual. Informação e cuidado é poder e pode salvar vidas.

É urgente tirar esses fascistas do poder, da mesma forma que é urgente colocar no poder mulheres feministas, que tenham coragem para defender nossas crianças, nossas mulheres e todas as pessoas com útero. Vamos juntas, sociedade civil, movimentos feministas e parlamentares pela luta pela autonomia dos nossos corpos e por uma maternidade digna e desejada. Até que todas sejamos livres.

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