O público lotou o cinema da Fundação Cultural Badesc, na última terça-feira (12), para a estreia do documentário peruano “Gênero sob ataque” em Florianópolis. Dirigido pelo jornalista Jerónimo Centurión Aguirre, o filme aborda a ofensiva e perseguição aos estudos, políticas públicas e ativismos de gênero na América Latina. A estreia em Florianópolis foi promovida pelo Portal Catarinas em uma parceria com o Consórcio Latino-americano contra o Aborto Inseguro (Clacai), realizador do documentário. O evento integrou a programação do 8M em Santa Catarina, construção Florianópolis.

O contexto político de Costa Rica, Peru, Colômbia e Brasil são retratados por meio de entrevistas com especialistas e pessoas que vivem sob a mira dessa ofensiva. Apesar de trazer à cena apenas quatro países, o documentário analisa o ataque transnacional em curso que atinge mais fortemente a América Latina pela ausência do Estado na oferta e garantia de serviços públicos essenciais, mas não somente, está presente também em países da Europa. De acordo com as/os especialistas entrevistadas, inimigos históricos como a Igreja Católica e as igrejas evangélicas uniram-se em uma estratégia compartilhada nesses países.

“Eu já ouvi muitos dos meus colegas, até mesmo de esquerda, que gênero não era importante que deveríamos mesmo pensar na questão de classe, que a questão de gênero era secundária. Nós, as feministas e pessoas que temos estudado gênero no Brasil desde a década de 80, temos dito há muito tempo que gênero é questão chave, temos que estudar e dar importância política. Achei o documentário fenomenal, porque mostra como o gênero está no centro das questões políticas e das relações sociais, porque implica muito fortemente nessas hierarquias e relações de poder”, colocou Cristina Scheibe Wolff, integrante do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC, durante o debate.

Da campanha latino-americana Con mis hijos no te metas ao Escola sem Partido, no Brasil, as forças conservadoras acionam o pânico moral através de um modus operandi comum de desinformação e falácias para conter políticas públicas e principalmente uma educação que promova equidade de gênero e respeito às diversas formas de ser e amar.

“Fui processada como se tivesse ensinando ideologia de gênero num curso de história e relações de gênero e como se eu tivesse fazendo uma perseguição religiosa por conta de um capítulo do livro de uma teóloga alemã ‘Eunucos pelo reino de Deus’. Isso me custou muito. Se por um lado, me pegou de surpresa, transformei essa perseguição numa bandeira de resistência e de luta”, afirmou Marlene de Fáveri, historiadora e professora da Udesc, arrancando risos da plateia pela ironia de ser processada por exercer seu ofício no campo de estudos para o qual dedicou parte de sua vida.

Marlene abordou o processo pelo qual se tornou ícone do movimento escola sem mordaça/Foto: Rafaela Martins

Marlene integrou a mesa de debate que ocorreu após a exibição. A professora recentemente venceu em primeira instância o processo por danos morais movido contra ela por Ana Carolina Campagnolo, eleita deputada estadual de SC pelo PSL na última eleição, e expoente do Escola Sem Partido. Desde que foi processada em 2016, a historiadora tornou-se ícone do movimento Escola sem Mordaça. “Dou aula de história e relações de gênero há 25 anos, tanto que na Udesc coordeno o laboratório de relações de gênero e família há muito tempo. Essas questões são muito caras pra mim. Acredito que gênero e feminismos são imprescindíveis aos direitos humanos, cidadania, democracia, justiça social, soberania e liberdade”, colocou.

Mariana Franco, vice-presidenta da União Nacional LGBT (UNA) de Santa Catarina, que também integrou a mesa, afirmou que por meio de uma pesquisa na internet identificou 31 países que estão adotando o conceito de “ideologia de gênero” para conter os direitos da população LGBT e das mulheres. “Esse é um movimento em nível mundial. No Brasil veio muito forte nos últimos anos motivado muito pelas eleições. Mas é um assunto que está em pauta há muito tempo através da parte mais conservadora da Igreja Católica. O livro ‘Tudo sobre a TFP’ sobre a associação Tradição, Família e Propriedade traz todos os princípios conservadores da Igreja Católica que vêm se espalhando no mundo todo sempre com debates reacionários”, argumentou Franco.

Mariana falou sobre os efeitos do preconceito sobre a população LGBT/Foto: Rafaela Martins

Movimentos reacionários, que segunda ela, já estavam posicionados contra o divórcio na década de 60, e contra o direito ao aborto quando a pauta foi introduzida em 70. “Esse debate veio mais incisivo principalmente para população LGBT após os anos 80, quando ficou muito claro que toda a parte da OMS correlacionava a AIDS a uma doença de pessoas LGBT. Isso persiste até hoje, se você é LGBT automaticamente pode estar vivendo com HIV. Dados principais disso é que ainda não podemos doar sangue. Eu posso me relacionar com um homem casado e ele doar sangue, mas eu não posso. Isso é motivado por essa linha de preconceito”.

“Primeiramente, Marielle presente, mais do que nunca hoje”, abriu sua fala Sônia Alvarez, cientista Política e professora da Universidade de Massachusetts, referindo-se ao fato da prisão dos suspeitos de matar a vereadora ter ocorrido no mesmo dia do evento. A pesquisadora assinalou que o moralismo não vem só do lado religioso, mas se utiliza da palavra religiosa para atacar os direitos conquistados ao longo quatro décadas de lutas.

“Precisamos de mais eventos como esse, justamente para pensar a realidade de Florianópolis, do Brasil, para pensar num contexto mais global, não só latino-americano, mas mundial, porque o que vem aí é realmente uma coisa avassaladora que vem de longe histórica e geograficamente. Não é de hoje que começou isso tudo, é uma onda global em ascensão da extrema direita que chamo de direita anti-direitos, com um projeto político conservador, ultramoralista. É um novo conservadorismo, não é o conservadorismo do PSDB, nem sequer da ala militar. É um conservadorismo revanchista que tem base católica e evangélica como destaca o documentário”, analisou Alvarez.

Sonia definiu os objetivos desse movimento conservador/Foto: Rafaela Martins

De acordo com ela, o movimento anti-gênero tem ganhado força por meio de alianças de cristãos e muçulmanos desde a  IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995 em Beijing, como resposta aos avanços daquele encontro. Explica que aos poucos a Igreja foi sistematizando os sentidos do que chamam de “ideologia” até que o conceito passou a aparecer nas discussões das igrejas latino-americanas na IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe em 2007. Resultado da conferência, o Documento de Aparecida diz que “entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana”.

“Por que surge nesse momento como projeto político explícito do catolicismo e de outras forças conservadoras? Por que haviam avanços, porque tínhamos conquistas nas Américas e no mundo em relação aos feminismos, à sexualidade e direitos dos povos indígenas e afrodescendentes. É uma reação explícita à extensão dos direitos. Começam a perceber que as nossas vitórias eram irreversíveis e montaram uma batalha e acham que estão ganhando, mas não estão”, colocou a debatedora.

Representando o Portal Catarinas, Cauane Maia, doutoranda em Antropologia Social, defendeu a necessidade de encontros que promovam discussões e formação frente ao cenário conservador. “Me agarro nesses espaços onde há mulheres dialogando, pessoas que estão de fato preocupados com o que está por vir. Precisamos avançar no sentido de sobreviver, resistir e seguir na luta, no grito organizado para que se transnacionalize também. Há limitações materiais, a bancada do boi, da bíblia e da bala não só acessou as comunidades populares, massificou seu discurso através de um recurso midiático potente como também através das igrejas. Enquanto esquerda, precisamos repactuar tudo para seguir”, propôs.

Maia intercedeu pela importância de se analisar o contexto político pela lente do feminismo interseccional, identificado as camadas que oprimem os povos, tais como raça, gênero e classe. Munida de dados, ela apontou que são as mulheres negras os maiores alvos de um política ainda colonizadora de corpos na América Latina. As  mulheres negras formam um quarto da população brasileira, representam 50% do total de mulheres, conforme o Dossiê Mulheres Negras, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2013.

Cauane defendeu o feminismo interseccional como lupa para entender as opressões/Foto: Rafaela Martins

“De acordo com o Mapa da Violência, ser mulher e negra e estar na faixa etária dos 12 aos 17 anos é um fator de risco. O feminicídio de mulheres negras aumentou 54% nos últimos dez anos, de 2003 a 2013, quando no mesmo período caiu 9% para mulheres não negras. Existe um fator relevante que é pensar esses corpos dentro de uma sociedade que não dá conta de problematizar lugar e gêneros de maneira adequada. Esse documentário trouxe o modus operandis na América Latina de uma política de controle de corpos, de controle de comportamentos”, apontou a pesquisadora.

Ela lembrou de autoras negras, como Lélia Gonzalez que na década de 70 propôs outra nomenclatura para a América Latina, de maneira a dar sentido a toda complexidade de uma américa negra e indígena, influenciada pelo pensamento colonizador.

“Países dessa Améfrica Ladina se reconectem, dialoguem, porque há muitas semelhanças nessa forma de operar relações de poder, nessa necropolítica de definir quais são os corpos matáveis que não geram sensibilização e comoção social”, afirmou referindo-se ao pensamento de Lélia Gonzalez.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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