Um ano atrás nós estivemos na escadaria da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Florianópolis, chorando juntas a morte de Marielle Franco e naquela ocasião eu disse que o Estado brasileiro tinha o sangue de Marielle nas mãos.

Três dias atrás, dois ex-policiais militares foram presos pela execução da nossa companheira, Marielle Franco. Vocês não nos verão comemorar essas prisões. Não existe nada para ser comemorado em tudo isso.

O Estado brasileiro, com as mãos ainda e eternamente sujas do sangue de Marielle e das dezenas de milhares de outros pretos e pretas assassinadas/os todos os anos há centenas de anos nesse país moderno com cheiro de colônia, é incapaz de nos trazer justiça. Nós não confundimos vingança com justiça. O poder judiciário brasileiro, que chancela o encarceramento de muito outros pretos e pretas nesse sistema prisional racista e assassino, é capaz apenas de vingança, seja ela pública ou provada, mas nunca de justiça no sentido mais concreto possível da palavra.

Se o Estado brasileiro realmente estivesse empenhado em fazer justiça, entregaria ao povo um combate minimamente eficaz das milícias que se espalham pelo país, aterrorizam as periferias das grandes cidades e contribuem para o quadro da violência racial no Brasil: morre um preto ou preta a cada 23 minutos.

E isso, justiça, o Estado brasileiro não pode oferecer hoje, porque milícia e Estado se fundiram em um só, num casamento incestuoso, infértil e mortífero, e já não é possível saber onde termina um e começa o outro. O escritório do crime divide condomínio com o presidente da república. Não, esse Estado não pode nos trazer justiça. A gente continua querendo saber quem mandou matar Marielle, sobretudo porque quer ver e mostrar escancaradas as vísceras podres do poder político desse país, pra que todas vejam, pra que todas saibam, por memória e verdade. Mas não há, no Estado penal e policialesco, nenhum vestígio de justiça.

Justo seria termos nossa companheira nas nossas fileiras, nesse momento de tanta luta pelo qual passamos e no qual ela se faz tão necessária.

Justo seria a Mônica e Luyara verem Marielle chegando do trabalho toda noite. Justo seria a dona Marinete, seu Antônio e a Anielle poderem contar com a gargalhada da Marielle no almoço de domingo. E isso é impossível de restituir.

Só quem pode fazer qualquer coisa parecida com justiça somos nós, multiplicando Marielle, fazendo com que ela apareça em cada canto da cidade, na cara e no corpo de cada mulher preta que transita na cidade, fazendo seu nome e sua luta ecoarem e assombrarem o sono de quem sente a voz de Marielle ecoar no estômago e não no peito, dos da casa grande, como antes assombraram os nomes de Zumbi e Dandara, de Luíza Mahin e Luís Gama.

Quem acreditou que Marielle sumiria com a morte de seu corpo, não entendeu o que significa UBUNTU, não sabe o que significa ser sendo coletivo. Quando Marielle ocupou aquela cadeira na Câmara do Rio, se enganava quem via só uma mulher. Marielle era um quilombo e por isso não andava só, nunca andou. O projeto político que Marielle construiu e defendeu transcende seu corpo porque foi construído assim: com bases sólidas e raízes infinitas fincadas no meio do povo, no seio de mulheres pretas.

Quando seu corpo tombou, muitas outras mulheres pretas se levantaram ou se fortaleceram e hoje ocupam o seu lugar, tocam sua luta adiante, pelo país inteiro. Dona Marinete da Silva e Anielle Franco, Mônica Francisco, Dani Monteiro, Renata Souza, Thaís Ferreira, Áurea Carolina, Talíria Petrone, Andreia de Jesus, Carol Virgulino, Joelma Carla, Jô Cavalcante e Robeyoncé Lima, Mônica da Bancada Ativista e Erica Malunguinho, além de muitas outras mulheres que hoje têm em Marielle um símbolo de coragem e liberdade, como nós, como as 800 mulheres do MST que ontem ocuparam uma fazenda do João de Deus dizendo que basta de construírem riqueza sobre a exploração, a violência e o estupro das mulheres trabalhadoras.

Marielle construía um projeto político, um projeto de país. Era mulher favelada e sabia que os parlamentos não iriam até a favela, por isso levou a favela até o parlamento, fez do seu gabinete uma casa aberta. Era uma mulher socialista. Acreditava, como nós, que só é possível superar a barbárie socializando os bens da vida. Era uma mulher feminista e, adiante da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara do Rio, abriu as portas do parlamento pra ouvir as dores das mulheres trabalhadoras vítimas de violência e lutar pra que essas violências tivessem fim. Marielle era uma mulher apaixonada por outra mulher e sabia o que significa ser lésbica num mundo patriarcal, e fez dessa também sua bandeira.

Marielle era mulher preta e conhecia uma a uma as violências que se abatem sobre os corpos negros num país de um passado escravocrata tão recente; num país que tem uma elite tão tacanha, mesquinha, racista, vaidosa e exploradora, uma elite que não suporta a cor do povo e que se enoja e se amedronta quando vê os seus redutos coloniais, suas pequenas confrarias de homens brancos – tribunais, parlamentos, universidades –  pintados de povo.

O tamanho de Marielle se refere a isso também. Ao fato de que carregava tudo isso no próprio corpo e fez de tudo isso política. À compreensão de que todas essas lutas não se contradizem, mas se complementam e nos fortalecem.

À compreensão de que não é a luta LGBT, feminista ou antirracista que aparta a luta da classe trabalhadora, mas que é a permanência de violências racistas e patriarcais no seio da classe trabalhadora o que hoje nos impede de caminhar juntas.

Não há, entre nós, trabalhadores e trabalhadoras, nenhuma contradição insolúvel e nenhum obstáculo intransponível. O processo de emancipação do povo brasileiro só é possível com o povo preto e os povos indígenas adiante. Só é possível um novo mundo se pudermos nos amar livremente, amar e confiar umas nas outras sem temer. Só é possível superar a barbárie do capital e da política da morte com as mulheres.

Como diz a grande poetisa Conceição Evaristo:
“A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.”

*Lorena é advogada e integra o gabinete do vereador Marquito (PSOL) na Câmara Municipal de Florianópolis.

 

 

 

 

 

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