Eu sou uma mulher ativista que chora pelo dia de hoje (28), o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Mas não vou fazer um texto sobre o direito que ainda não temos. Eu aqui tratarei do aborto legal e pra isso vou fazer um relato do que me aconteceu ainda essa semana.
Uma mulher de 31 anos chegou até mim e me pediu para ajudá-la a encontrar uma clínica clandestina de aborto. Eu a acolhi, disse que não poderia ajudá-la mas quis saber o que seu companheiro achava daquela situação. Ela secamente me respondeu que havia engravidado a partir de um estupro cometido por seu cônjuge, e ainda me disse que era impossível convencer advogados, juízes, médicos ou mesmo a sua própria família sobre sua versão dos fatos.
Choramos juntas e tive que reviver um pesadelo, que é experimentar muito de perto o que acontece com a justiça reprodutiva no Brasil.
É verdade que o acesso ao aborto legal permanece desigual no mundo, mesmo com números altos de mortalidade materna. Na América Latina, mais especificamente, o aborto é descriminalizado apenas no Uruguai, em Cuba e em dois Estados do México.
Dentro desse quadro, vale lembrar que aqui no Brasil, no Senado, uma Proposta de Emenda à Constituição chamada cinicamente e “PEC da Vida” prevê constar na Constituição Federal que o direito à vida do feto seja garantido “desde a concepção” – sobre a vida da mulher, por sua vez, não se vê nenhum cuidado equiparável. Pois essa PEC 29/2015 foi desarquivada a pedido do senador Eduardo Girão (Pode-CE), chegou a ter relatório favorável da senadora Selma Arruda (PSL-MT), e estava parada até semana passada.
Pensando em como vida das mulheres está sendo tratada, no meio dessa movimentação política, me lembro que no Rio de Janeiro, cidade onde me localizo, apenas uma unidade de saúde (a Fernando Magalhães) oferece atendimento 24 horas especializado em aborto legal.
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Olhando para o país como um todo, e fácil perceber que o quadro de constrangimento às mulheres só se confirma: aqui no Brasil o acesso ao aborto é bastante restrito, e somente permitido somente em casos de estupro (até 22 semanas), risco de morte para a mãe e o bebê ou fetos com anencefalia, essa última conquistada em uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012.
E é verdade que a defensoria tenta há anos, sem sucesso, autuar o estado com a necessidade de ampliação de direitos ao aborto legal.
Ao mesmo tempo, e pra nossa perplexidade, 2019 já se configura como a ano com maior tramitação de leis com ataques aos direitos reprodutivos das mulheres no país, inclusive pautando-se retirar o direito a alguns métodos contraceptivos como pílula do dia seguinte e DIU (O PL 261/2019, )
Em paralelo a isso, o número de estupros e o de fechamento de unidades de saúde nunca foi tão alto no Estado do Rio, e há algo de feminicida na exclusão desse debate na sociedade: mulheres sem direitos são mulheres excluídas do Estado de Direito.
Como se isso já não bastasse, uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina, o CFM, acaba de tirar das gestantes o direito à recusa terapêutica, dando aos médicos inclusive o poder de realizar procedimentos à força. Nesse sentido, a tal “objeção de consciência” (que prevê a independência de decisão dos médicos em relação ao corpo das mulheres) nos faz chegar a uma conclusão cruel: as mulheres são totalmente dependentes das amarras misógino-patriarcais.
Nesse contexto, nos cabe ao menos perguntar: a quem interessa subalternizar e humilhar os corpos femininos? Quem lucra com nosso adoecimento e com esse tipo de morte que nos rodeia?
Não é por acaso que, em muitas sociedades, o estupro é utilizado como arma de guerra. De fato, a ONU listou ano passado 21 países que têm essa prática.
Agora vejam vocês: é de se pensar, então, que há uma guerra no Brasil contra as mulheres. Afinal, temos vivido num país onde são proibidos métodos contraceptivos, o aborto em geral é criminalizado, aqueles raros abortos legais são quase inviabilizados e ainda são naturalizados os casamentos onde somos estupradas.
Parece terrivelmente claro, então, que somos tratadas como inimigas preferenciais de uma sociedade doente. E aí só nos resta mesmo afeto, união e muita luta, já que o Estado nos abortou há tempos.
Vivas nos queremos.
*Arquiteta, urbanista e feminista. Representante do Brasil no Fórum Mundial para Equidade de Gênero do Programa das Nações Unidas em 2019. É da #partidA Feminista.