Se estivesse viva, a cantora, locutora e radioatriz completaria 85 anos, neste domingo em 11 de abril.

Por Fernanda Peres.

A florianopolitana, cujo talento múltiplo começou a ser reconhecido no fim dos anos 1950 como cantora, locutora e radioatriz, tem uma trajetória que até hoje ecoa na trilha aberta para outras mulheres da música local. Mulher negra, a intérprete da primeira versão do Rancho do Amor à Ilha (Zininho), gravada em 1965 para um concurso e depois oficializada como hino da capital catarinense, tem, entre os poucos registros fonográficos que deixou, canções que tratam de questões raciais, de exaltação ao samba, ao morro e de autoafirmação.

Segundo o irmão de Neide, Maximiliano Rosa, o ambiente familiar sempre valorizou a arte e a cultura. “Uma das coisas fundamentais na formação da Neide foi a leitura, a cultura”, explica. O pai, que trabalhava como tipógrafo da Imprensa Oficial do Estado, presenteava os filhos com livros. Dessa forma, não foi problemático para a família, em plenos anos 1950, apoiar a escolha da filha de ser cantora e trabalhar na rádio. “Neide olhava as coisas sem preconceito e transitava em todos os meios sociais, sem maiores problemas”, conta o irmão. “A cultura, a arte, elas quebram qualquer tipo de preconceito, unem as pessoas”, acredita.

Fotos: acervo da família

Em Protesto, Meu Amor, canção de Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho que defendeu na 1ª Bienal do Samba de 1968, Neide entoa os versos: “deixa de lado essa gente que se vê desconhece o amor/não foi à toa que um dia assim clareou derramando esperança em nós/bem que deviam, ao menos, se lixar para essa coisa de cor/negro é o coração quando em desamor repare Deus jamais descriminou/Eu sou mais eu quando falo e me proclamo no mais alto som”.

A música faz parte do primeiro e único compacto da cantora, gravado no período em que viveu no Rio de Janeiro a convite da cantora Elizeth Cardoso. Seis anos antes, a Divina havia se apresentado em Florianópolis, onde foi ciceroneada por Neide, então estrela da Rádio Diário da Manhã. Além de receber a fluminense no aeroporto, a catarinense subiu ao palco do Teatro Álvaro de Carvalho para um número ao lado da cantora, à época no auge do sucesso.

A amizade levou Neide para o Rio de Janeiro em 1963, a bordo de um Ford 51 guiado pelo amigo, poeta e compositor Claudio Alvim Barbosa, o Zininho, com quem Neide dividia os microfones da rádio, as mesas da boemia e os palcos da vida. Ainda que não fosse mais a capital política, o Rio seguia sendo o coração artístico do país. Na cidade, Neide morou na casa de Elizeth e teve contato com diversos dos grandes nomes da música na época. O convívio trouxe à manezinha da Menino Deus a oportunidade de cantar em festivais, conviver com artistas como Elis Regina, Jacob do Bandolin e Baden Powell, e se tornar a atração principal de um espetáculo de samba que ficou em cartaz por quase um ano no Golden Room do luxuoso Copacabana Palace.

Na Cidade Maravilhosa, ainda se apresentou em programas de TV. Em um deles, o apresentador Sergio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, sugeriu a alteração do nome de Maria Rosa para Mariarrosa, acatada pela artista. Ela também fez parte do incipiente movimento Musicanossa, que reunia personalidades como Beth Carvalho, Nara Leão, Paulo Sérgio Valle e Roberto Menescau. Dessa fase, existe o LP Isto é Musicanossa!, no qual Neide interpreta a faixa Pobre Morro. “Morro, tu és esquecido quase o ano inteiro / Morro, ah se não fosse o carnaval de fevereiro! / Morro, onde o sambista leva a sério o compromisso de ver a escola desfilar e trazer para a glória da tua favela o primeiro lugar / Deixa o morro cantar!”, diz a composição assinada por Gilberto Barcellos.

Mas nem todo sucesso e a carreira promissora foram suficientes para segurar Neide no Rio de Janeiro. Em 1970, a cantora voltou para Florianópolis e o que era para ser apenas uma visita à família se transformou em um retorno definitivo à cidade. Há quem diga que ela teve um grande desgosto no Rio de Janeiro e por isso resolveu voltar, há quem diga que foi saudade. O real motivo da volta provavelmente nunca será esclarecido, e talvez nem diga respeito a ninguém, como ela mesma diz na faixa-título do primeiro e único LP, gravado em 1988 na Ilha, Eu Sou Assim.

“Que me importa o que falem de mim?/Eu não vou deixar de ser assim / Ninguém vai poder mudar meu eu / Ele é tudo o que eu tenho de meu /  Eu não vou deixar de ser assim / Meu viver só interessa a mim”, Neide proclama usando os versos do amigo Zininho.

Foto: acervo da família

A cantora faleceu em 1994, vítima de câncer, na cidade onde nasceu e à qual escolheu voltar. Seu último registro em vida, o show Cristal, realizado em 1993 no Teatro Ademir Rosa, em Florianópolis, é a prova que fica da força que a música sempre exerceu na vida da manezinha: mesmo debilitada pela doença, ela abre o vozeirão para entoar clássicos do samba, como Cordas de Aço (Cartola), Linda Flor (Henrique Vogeler / Luís Peixoto / Marques Porto) e Folhas no Ar (Elton Medeiros), e, de quebra, presenteia a posteridade com uma pequena amostra do talento e da resiliência que teve em vida.  

:: Conheça mais sobre a vida e a obra de Neide Mariarrosa no documentário Ah, que saudades da Neide! (2008).

*Natural de Florianópolis (SC), Fernanda Peres é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É coautora da grande reportagem em vídeo “Ah, que saudades da Neide!”, biografia da cantora Neide Mariarrosa, realizada em 2008 como Trabalho de Conclusão de Curso. Foi redatora nos portais Guia Floripa, Hagah, RBS TV e da versão online do jornal Diário Catarinense. Há 10 anos é jornalista do quadro efetivo da Fundação Catarinense de Cultura (FCC).

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