Caso de menina de Santa Catarina exemplifica ciclo de violência perpetuado pelo Estado
O caso da menina de 11 anos pressionada por uma juíza em Tijucas, Santa Catarina, a interromper uma gestação após estupro expõe como a criminalização do aborto no Brasil está relacionada a diversos ciclos de controle e assimetrias de poder. Uma criança, em situação de vulnerabilidade emocional e social, pressionada por uma magistrada a “segurar mais um pouquinho” é mais um retrato de um Estado que determina quem terá seus direitos garantidos com base em critérios arbitrários.
Ainda que a legislação brasileira autorize a interrupção da gravidez quando a gestação representa risco para a vida da pessoa; após estupro/violência sexual; e em situações de feto anencéfalo, as barreiras para realizar o procedimento se multiplicam e se impõem conforme os marcadores sociais de quem precisa fazê-lo. O cenário é ainda mais alarmante considerando que os números oficiais não levam em conta os abortos feitos ilegalmente, deixando à margem uma parcela significante da população.
Um estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná, divulgado com exclusividade pelo Portal Catarinas em 2021, revela que uma criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil. De acordo com o levantamento “Estupro presumido no Brasil: caracterização de meninas mães em um período de dez anos (2010 – 2019)” nos últimos dez anos, 252.786 meninas de 10 a 14 anos, além de 12 crianças com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos. São em média 25.280 casos de gravidez de vulnerável por ano, ou 70 crimes por dia.
Portanto, todas elas teriam direito ao aborto legal, já que são consideradas vítimas de “estupro de vulnerável” de acordo com o artigo 217 do Código Penal. O texto da lei não deixa margem para discussões sobre consentimento quando se trata deste crime: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Isso porque pela lei uma menor com menos de 14 anos não tem entendimento para verdadeiramente consentir.
Meninas negras: mais notificações, menos acessos
O estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná também traz ainda um recorte por cor e raça e mostra que das 252 mil meninas mães, 71,1% eram negras (pretas e pardas). A proporção de meninas mães negras foi maior que a proporção da população negra na população total em todas as regiões, com exceção da região Sul, em que foi um pouco inferior. As regiões Norte e Nordeste tiveram as maiores proporções, sendo 84,8% e 83,8% respectivamente, de meninas mães da raça/cor negra, seguidas da Centro-Oeste com 64,9%, Sudeste com 60,9% e Sul 22,4%.
Em entrevista ao Catarinas, Emanuelle Góes, enfermeira, doutora e pesquisadora em saúde pública, destaca que as meninas negras são as que mais chegam pra realização da notificação da violência sexual, mas são as que menos acessam todos os serviços relacionados à essa violência. Tanto o acesso ao aborto legal como a todo o aparato que é dado nas primeiras horas de atendimento pós-violência como pílula de emergência, profilaxia para DST e profilaxia para HIV. Góes ressalta que as notificações de meninas indígenas também repetem esse mesmo padrão, mas em menor proporção.
“As assimetrias raciais se impõem também na hora do encaminhamento, naquela hora de dar acolhimento após a situação de violência. Elas já vão sofrer as barreiras por serem meninas e isso vai se adensar com a questão racial. Então, as meninas negras e indígenas estarão em pior situação entre aquelas que conseguem chegar até esses serviços”, completa.
Para seus estudos, a pesquisadora levantou dados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e os compartilhou nesta entrevista. Em 2020, 16.991 adolescentes (10 a 19 anos) notificaram violência sexual, sendo que 92,6% eram meninas e 61,8% negras. Outro recorte do levantamento aponta que 1.956 adolescentes que notificaram estupros estavam grávidas e apenas 100 acessaram o serviço de aborto legal.
Ainda segundo a Góes, as informações do primeiro ano da pandemia de Covid-19 foram impactadas pelo distanciamento social e isolamento e por isso apresentam números relativamente menores, mas são igualmente expressivos em relação a anos anteriores. Ela reforça que o caso recente de Santa Catarina não é uma exceção, especialmente em meio a um quadro de subnotificação.
“Não é um caso isolado. No Brasil em 2020, por exemplo, nós tivemos um número absurdo de meninas grávidas que chegaram a parir, que denunciaram violência sexual, denunciaram estupros. Com a pandemia essas notificações diminuíram porque as meninas e as mulheres estavam presas dentro desse ciclo de violência por conta do distanciamento, do isolamento. Denunciar, chegar ao serviço onde o aborto legal é realizado também foi impactado pela pandemia. Mesmo assim é um cenário semelhante aos outros anos”.
Para a coordenadora de projetos da ONG Criola, advogada e mestra em Direitos Humanos, Lia Manso, outro ponto também deve ser considerado ao analisar o caso de Santa Catarina, para além da racialização na consequência da violência. Ao Catarinas, ela reforça que é fundamental entender como as dinâmicas de violência estruturam o Estado e tudo o que o constitui, desde instituições a leis e o próprio sistema de justiça em si.
“É importante compreender que essa violência está na raiz e isso posiciona pra nós uma luta que é justamente no entendimento do racismo como eixo. Pra nós, é urgente assimilar que o Estado brasileiro e o sistema de justiça, são, tem sido e sempre foram constituídos a partir dessas forças estruturantes do racismo, do sexismo e da cis heteronormatividade”.
Lia Manso chama a atenção para a conexão da violência do estupro, que é uma violência dentro das categorias jurídicas sob a qual se desdobram uma série de leis e de normativas que deveriam proteger a vítima, mas quando essa vítima passa para o âmbito institucional, essas leis desaparecem, assim como os direitos que deveriam ser assegurados a ela, enquanto novas violências são permitidas.
“A violência institucional que essa menina passou é parte de um contexto que permitiu que ela e sua família estivessem numa situação de vulnerabilidade que é o racismo. Nesse caso, a gente viu que a violência foi de forma mais cruel, da forma mais terrível. A juíza e a promotora não só deixaram de fazer o que deveriam fazer como fizeram o oposto, produzindo ainda mais violência” afirma.
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A advogada reforça que a violência por parte do estado também se dá em como ele se comporta para evitar que crianças e famílias fiquem em situação de vulnerabilidade, resultado do racismo, de uma segurança pública violenta, da falta de direitos, da falta de suporte do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência. Dessa forma, ele também se coloca na posição de responsável pelo crime ocorrido, pois também está dentro dessa esfera de delito.
“Esse caso não está desconectado de todos os casos mais cruéis que nós temos visto de desmonte dos direitos sexuais reprodutivos. Mortalidade materna de mulheres negras e pessoas que gestam, ausência de políticas de planejamento produtivo. Não está desconectada também do contexto da segurança pública, do encarceramento de mulheres. É isso que a justiça reprodutiva informa pra gente”.
Só a lei não basta
Outro direito negado à menina de 11 anos durante audiência foi o direito a uma escuta especializada. A Corregedoria-Geral da Justiça abriu um inquérito para apurar a conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer que pressionou a criança a manter a gestação, com perguntas que ignoravam o bem-estar da vítima. Desde 2017, a Lei do Depoimento Especial orienta a Justiça a ouvir crianças e adolescentes em qualquer processo com a escuta de uma equipe profissional com psicólogos e assistentes sociais, o que não aconteceu neste caso.
Depois que a legislação entrou em vigor, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina designou a Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude como responsável pela estruturação do depoimento especial nas comarcas do estado. A coordenadoria confirmou que a comarca de Tijucas dispõe de um entrevistador externo — psicólogo ou assistente social capacitado pelo judiciário para tomar o depoimento especial.
Segundo um dos instrutores do curso de capacitação do depoimento especial oferecido pela coordenadoria, o psicólogo Ricardo Luiz de Bom Maria, o depoimento especial ocorre em situações em que há suspeita de que uma criança ou adolescente sofreu violência e quando é verificada a necessidade de tomar esse depoimento. Ele foi ouvido pela jornalista Schirlei.
“[Antes da lei] era uma Via Crucis, pois a criança era ouvida de forma repetida por diversos profissionais [policiais, pessoas da rede de atendimento e profissionais do sistema de justiça], bem intencionados, mas sem a técnica adequada. Isso acabava gerando problemas na construção de provas e, às vezes, sem querer, as informações eram distorcidas por práticas inadequadas, essa criança acabava sofrendo algum tipo de molestar ou violência pela repetição da entrevista”, esclareceu Maria.
A coordenadoria de SC capacita servidores, em sua maioria psicólogos, assistentes sociais e oficiais de justiça, para tomarem o depoimento especial. Como a demanda é grande, foram abertas duas turmas para profissionais que não fazem parte do quadro de servidores do judiciário, que são os chamados “entrevistadores”. Todas as comarcas dispõem de um profissional habilitado.
As perguntas não podem humilhar ou causar algum desconforto na criança e não devem ser sugestivas. “A pergunta sugestiva é quando a pessoa não te disse algo e você a induz a te responder. Por exemplo: a pessoa nunca disse que foi a Blumenau e você pergunta: ‘me conta como foi em Blumenau’. Você traz uma situação que ela não disse”, explicou Maria.
A conduta da promotora de Justiça Mirela Dutra Alberton também está sendo apurada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a Corregedoria-Geral do Ministério Público catarinense (MPSC). Ela ajuizou uma ação para que a menina fosse colocada num abrigo, supostamente para proteger a vítima do agressor. Alberton também induziu a menina a manter a gestação.
“Em vez de deixar ele morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ele morrendo ali agonizando, porque é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele. Ele vai nascer chorando, e não vai ser dado medicamento para ele morrer”, alegou a promotora erroneamente.
Emanuelle Góes observa que o comportamento das magistradas envolvidas no caso reproduz algo presente em diversos outros episódios relacionados à população negra. A desumanização da vítima, a assimetria de poder e a blindagem presumidamente assumida por quem faz parte das instituições públicas.
“Eu não consigo entender como uma mulher age dessa forma. É realmente o pacto de branquitude. Acreditar na blindagem da branquitude para que essa pessoa não se perceba mulher, não perceba esse campo de gênero. Isso que aconteceu não é a justiça. Isso é violência. Não é o estado atuando como deve pelo que a gente entende como justiça para as pessoas”, pontua.
A promotora Alberton também atuou no caso Gracinha em que uma mãe quilombola perdeu a guarda definitiva de duas filhas sob alegação de ser incapaz de criá-las e educá-las. A decisão foi tomada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), em 2016.
Na época o caso teve grande repercussão nas redes sociais e mobilizou diversas entidades dos direitos humanos e organizações antirracistas, pois o processo era recheado de termos racistas, sexistas e violações dos direitos quilombolas. O Movimento Negro Unificado de Santa Catarina (MNU/SC) tomou a frente do processo da Gracinha tanto jurídica quanto politicamente.
A advogada Lia Manso ressalta que, guardadas as proporções de diferença, essa é a mesma resposta que o sistema de justiça sempre dá à população negra quando ela recorre a direitos básicos e constitucionais de acesso à justiça, bens e serviços públicos.
“Quando meninas e mulheres dependem do Estado para ter saúde, para ter o seu bem-estar garantidos, elas mais uma vez ficam à mercê da violência e é nesse lugar que o Estado se estabelece no que diz respeito a esses direitos sexuais produtivos”.
Organizar a revolta
O episódio reforça como as leis que regulamentam o aborto são essenciais, mas ainda não são suficientes para assegurarem esse direito. Mobilizações da sociedade civil continuam sendo necessárias para que se construa redes mais eficientes de acolhimento quando a violência ocorre e ações que ampliem os mecanismos de proteção, como também ressalta Góes.
“É uma luta incansável. Um trabalho de formiguinha porque a gente está no modelo contra hegemônico do que a grande mídia e grande parcela da sociedade define sobre direito. É preciso alcançar as meninas, as mulheres, dizer para a sociedade que não é só um problema nosso! Os homens também precisam se engajar. É preciso dialogar com profissionais de saúde, com gestores, rever as políticas para que fique mais nítido o que é direito e quais são os papéis de quem está na assistência, de quem está no jurídico, e nas diversas esferas”.
E Lia Manso completa:
“É uma luta mais ampla. É uma luta por devolver aquilo que há muitos anos arrancaram da nossa população que foi a possibilidade de existir com dignidade. Não é só sobre uma legislação, uma mudança na lei. É pela vida mesmo! E é importante comunicar a população. Localizar a nossa luta e impedir que setores fundamentalistas se refiram a nós como pró-morte e a eles mesmos como pró-vida quando a gente sabe que a última coisa que eles querem preservar é a vida”.