A mãe quilombola perdeu a guarda das filhas por ser “descendente de escravos”, segundo a justiça catarinense.
O caso Gracinha completa seis anos neste ano e o Portal Catarinas relembra a história dessa mãe quilombola que perdeu a guarda definitiva de duas filhas sob alegação de ser incapaz de criá-las e educá-las. A decisão foi tomada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), em 2016, em um processo recheado de termos racistas, sexistas e violações dos direitos quilombolas.
Maria das Graças de Jesus é moradora da Comunidade Remanescente do Quilombo Toca de Santa Cruz, localizado no município de Paulo Lopes, litoral sul catarinense. Em 2014, o Ministério Público Estadual recebeu uma denúncia anônima e em menos de um ano retirou duas filhas do convívio com a mãe. As meninas foram encaminhadas ao acolhimento institucional e depois adotadas por uma família branca.
Em uma das representações, a juíza do caso, Elaine Cristina de Souza Freitas, chegou a associar a descendência de Gracinha à não aptidão em educar as filhas: “Denota-se o caso atípico da presente demanda, já que a genitora é descendente de escravos e sua cultura não primava pela qualidade de vida, era inerte em relação aos cuidados com higiene, saúde e alimentação”. Em outro trecho insinuou que o fato de Gracinha ser analfabeta piora ainda mais a situação das crianças.
A palavra “promíscua” também aparece em uma tentativa de estigmatizar Gracinha, uma mulher negra e solteira.
“O caso dela foi uma questão de profunda discriminação com a pessoa pobre, especialmente por ser mãe solo e negra, além é claro do desconhecimento da questão quilombola por parte do Ministério Público Estadual”, diz a procuradora do Ministério Público Federal em Santa Catarina, Analúcia Hartmann.
Na época o caso teve grande repercussão nas redes sociais e mobilizou diversas entidades dos direitos humanos e organizações antirracistas. O Movimento Negro Unificado de Santa Catarina (MNU/SC) tomou a frente do processo da Gracinha tanto jurídica quanto politicamente.
O MNU se mobilizou para levar o caso ao Congresso e uma audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher foi realizada em 2016, na Câmara dos Deputados, em Brasília para discutir as violações de direitos cometidas contra a quilombola.
A tentativa tinha o objetivo de chamar atenção de autoridades para que o caso que, corria em segredo de justiça, fosse levado para o âmbito federal justamente por se tratar de uma comunidade tradicional, como prevê a constituição federal. Entretanto, o pedido foi negado pelo TJSC com a justificativa de se tratar de poder familiar e Gracinha acabou perdendo o direito de ser mãe.
“No caso de destituição de pátrio poder, a situação da localização, o grupo étnico a que a pessoa pertence, tem um valor menor do que o fato em si que é a adoção. Quando se trata de perda ou suspensão do poder familiar prevalece a área da infância e juventude, cuja atribuição é do MP estadual e justiça estadual”, explica Ivens de Carvalho, corregedor-geral do Ministério Público e procurador de justiça de Santa Catarina.
A alegação do MP é a de que Gracinha não tem capacidade mental de criar as meninas, tampouco de zelar pela higiene da casa em face de uma “compulsão de acumular inúmeras coisas em casa”.
Para a procuradora do MPF, Analúcia Hartmann, a assistência social poderia ter se atentado a ajudar a genitora. “Acumulação é uma questão grave, é uma síndrome e é muito arriscado pra saúde das pessoas, agora ao invés de retirar as crianças da mãe, a assistente social do município poderia ter providenciado ajuda. Por que não ajudaram a mãe? Por que não deram tratamento psicológico? Capacitação para essa mãe? Um acompanhamento mesmo”, questiona Hartmann.
O Movimento Negro Unificado de Santa Catarina (MNU/SC) acompanhou de perto o caso e contesta o estudo social anexado ao processo que embasou a apreensão das crianças. “Eles não levam em conta os processos históricos que alimentaram o racismo e o preconceito do qual Gracinha é vítima. A série de eventos deste caso revela a lógica racista do judiciário brasileiro”, afirma Maria Lourdes Mina, coordenadora do movimento.
Outro questionamento é o fato do Ministério Público Estadual ter desconsiderado um parecer antropológico, necessário quando se trata de comunidades tradicionais. A justificativa do MPE é a de que Gracinha nem sempre manteve vínculos com a comunidade quilombola, muito menos vivencia as culturas da comunidade.
A promotora do caso, Mirela Dutra Alberton, chegou a negar a identidade quilombola de Gracinha com a justificativa de que ela não vivia como tal. “Ao invés da cultura da subsistência, cujo objetivo é a produção de alimentos para garantir a sobrevivência própria e/ou da comunidade, a requerida desempenha tão somente a mendicância”, declara a promotora nos autos.
Para a procuradora Analúcia Hartmann houve falta de sensibilidade por parte do MPE. “Existem muitas diferenças, mas existe uma falta de conhecimento no judiciário em relação aos quilombolas, a maior parte do tempo se depara com questões fundiárias e não de cultura familiar, então existe o desconhecimento sobre a causa”, explica Hartmann.
O caso de Gracinha traz à tona uma questão pouco discutida na sociedade, o racismo institucional, que basicamente é o tratamento diferenciado entre raças no interior de organizações, empresas e instituições. Além do termo “traços culturais” aparecer nos processos administrativos e jurídicos, nos bastidores das audiências o racismo se tornou visível.
De acordo com uma fonte, desembargadores que julgaram o caso usaram palavras chulas ao se referirem aos quilombolas. Um dos magistrados chegou a mencionar que “é preciso tomar cuidado com eles porque são perigosos”.
Entramos em contato com Gracinha, mas ela não quis se pronunciar. “Se não for ajudar para as meninas voltarem, então não vou falar”, afirmou. Esta tem sido sua posição nos últimos anos. Segundo pessoas próximas de Gracinha, ela tem vivido tempos difíceis. Todo ano, chora bastante no Dia das Mães e sente muita falta das meninas.
Entenda o caso
Em 2014, o Ministério Público Estadual recebeu uma denúncia anônima de maus tratos e omissão nos cuidados básicos de duas crianças com idade entre 1 e 4 anos da Comunidade Quilombola Toca de Santa Cruz. As meninas eram as filhas de Gracinha.
Foram solicitadas visitas de assistentes sociais à casa da genitora entre maio e outubro daquele ano. Três relatórios foram produzidos, mas de acordo com o MNU/SC apenas um deles foi levado em consideração em todo processo, justamente o pedido pela promotora Mirela Dutra Alberton, que atuava na época na Comarca de Garopaba.
O primeiro relatório feito por uma funcionária da Prefeitura de Paulo Lopes relaciona a dificuldade de Gracinha em manter a limpeza da casa por ter sido criada da mesma forma pela avó e bisavó, mas que a mesma levava as filhas ao posto de saúde com regularidade e mantinha a carteira de vacinação das crianças atualizada. A funcionária conclui que Gracinha necessitava da ajuda do poder público.
O peso do sexismo
O segundo relatório foi feito por uma assistente social da comarca de Garopaba. O documento desqualifica Gracinha, chamando-a de “promíscua”. “A promotora queria algo contra, então ela pegou uma assistente social do fórum em que ela trabalhava. Pelo relato dá pra ver que a assistente foi orientada e seguiu artigo por artigo para destituir o poder familiar dizendo que ela era promíscua, que as pessoas tinham medo dela, que ela era pedinte”, diz a advogada de defesa, Patrícia Soares de Oliveira.
De acordo com a descrição feita pela assistente, um dos filhos de Gracinha teria relatado: “antes do nascimento das meninas, homens da comunidade entravam e saiam da casa a noite toda”. Quando questionado pela advogada sobre a fala, o rapaz negou. ”Nós conversamos com o filho que disse que nunca falou com assistente social nenhuma, muito menos teria falado isso sobre a mãe dele”, revela a advogada.
Em uma das visitas, a juíza chegou a ir junto com uma assistente social até a casa de Gracinha. Na ocasião a magistrada teria perguntado quantos homens ela trazia para dentro de casa, ao que Gracinha rebateu a mesma questão ao dizer que não chegaria na casa da juíza perguntando esse tipo de coisa que não é da conta dela.
A identidade da mulher negra como objeto para o prazer obsceno e extra conjugal vem de um legado das teorias racialistas do século XIX. No artigo “Raça, psiquiatria e medicina-legal: notas sobre a “pré-história” da psicanálise no Brasil”, a psicóloga Jane Russo explica que a mulher negra é associada à noção de criminosa, sexualmente promíscua e inculta:
“É toda uma concepção de ser humano que está em jogo aí: de um lado, a ideia do indivíduo livre e igual e, de outro, a noção de um indivíduo escravo de sua constituição biológica, diferenciado por ela, incapaz, portanto, de um completo livre arbítrio e, por isso, de responder por seus atos. Aquele ‘o cidadão soberano’, este ‘um sujeito potencialmente tutelável’ pelos especialistas. Lá, o homem branco, educado, polido. Aqui, a mulher, o criminoso, os não-brancos, as “classes perigosas” e incultas. Lá, o civilizado; aqui, o primitivo”.
O terceiro registro aponta equívocos nos estudos sociais antecedentes e relaciona a situação de Gracinha à falta de amparo do poder público e da humildade, ignorância e dificuldades socioeconômicas da genitora.
Aulas de balé
“Gracinha estava vivendo a sua vida miserável, do seu jeito, no seu canto, com o seu lixo, criando, carregando, esmolando, cuidando de suas filhas do seu jeito, à sua maneira, sem ninguém realmente lhe mostrar que algo estava errado. E, ao que consta, todos os dias ela estava na prefeitura, no conselho tutelar, no posto de saúde. Sua filha frequentava a escola e ia até a aulas de balé.
Eis que, de uma hora para outra, todos resolvem invadir a sua casa, a sua vida, as suas migalhas, a sua miséria, e passam a lhe dizer que tudo está errado, que nada presta, que assim não pode ser, e lhe retiram as filhas. O motivo? Gracinha não tem condições mentais, psicológicas, intelectuais, morais e sabe-se lá mais o quê para criar as suas filhas. Até agora, tudo bem! Mas o problema é que elas vão crescer.
A pergunta é: como será que ela conseguiu fazer isso durante 5 anos? Porque, apesar das limitações e dificuldades, as crianças estão aí, ao que consta, na medida do possível, saudáveis.”
O estudo social datado de 10 de outubro de 2014 anexado ao processo de perda do poder familiar cita a insalubridade e o mau cheiro da casa e conclui que Gracinha é uma acumuladora: “Maria das Graças apresenta as mesmas ações e reações da avó que a criou, cultivando mendicância, acúmulo de roupas e outros objetos que ganha, a ponto de não ter espaço para se movimentar em casa, não possui noções de higiene, necessita do poder público para prover o mínimo cuidado que as filhas necessitam e reage a contrariedades com gritos e xingamentos”.
É necessária apenas uma visita à Comunidade da Toca para entender que não é só Gracinha que vive em condições desumanas. “Se você for lá vai ver a imagem nítida de segregação da cidade com relação à comunidade. Onde começa a comunidade, por exemplo, acaba o calçamento da estrada, não tem água potável, o recolhimento de lixo é precário, a energia chegou há pouco tempo”, afirma a antropóloga Raquel Mombelli, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) que produziu parecer antropológico sobre o caso.
Leia a entrevista completa com a antropóloga Raquel Mombelli:
Gracinha rompeu com a Casa Grande e perdeu duas filhas para o Estado
“A casa em que Gracinha morava desabou, então a prefeitura junto à Caixa Econômica Federal construiu uma casa pra ela, só que dentro de um cemitério. A propriedade tem diversos problemas estruturais. E o poder público utilizou dessas condições que eles mesmos causaram para respaldar a decisão de tirar suas filhas”, conta Maria Lourdes Mina, coordenadora do MNU/SC.
Conforme disposto no artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.
O estudo também traz informações importantes que indicam a existência de afeto entre mãe e filhas, mas que não foram consideradas pelo judiciário. “Com as filhas pequenas (Gracinha) denota apego afetivo, mas da forma que é capaz, mantendo as crianças sempre junto a si em qualquer situação e ambiente”, diz o trecho. Em outra parte repete-se que Gracinha mantinha sempre as filhas “à tiracolo”, o que demonstra que ela não as abandonava, nem as deixava sozinhas em casa.
“No último relatório da assistente diz que tem amor entre elas, a promotora disse que apesar de ter amor a Gracinha não tem condições e a juíza também diz isso na decisão, há amor entre mãe e filha…é um ciclo vicioso do judiciário”, afirma Patrícia.
O estudo ainda cita que além da aula de balé que a filha mais velha frequentava, as meninas iam regularmente ao posto de saúde: “todas as terças-feiras pela manhã Gracinha leva as filhas no Posto de Saúde local, independente do estado de saúde das crianças. Assim estas têm a saúde vigiada e a vacinação em dia, bem como é orientada quanto aos cuidados, higiene das filhas e recebe leite especial para ambas”.
Na ação de retirada das meninas do lar, expedido em novembro de 2014, a juíza Elaine Cristina de Souza Freitas cita um laudo pericial assinado pelo psiquiatra Wagner Correa Albino, que atua na cidade de Tubarão, a 100 quilômetros de Paulo Lopes. Na época a magistrada teria pedido um laudo pronto para um médico do município de Paulo Lopes, mas o profissional negou por não poder avaliar sem a presença de Gracinha. Em face disto, a juíza fez o pedido ao psiquiatra Wagner que concluiu que Gracinha possui déficit intelectual importante e incapacidade cível de criar as filhas.
A defesa nunca foi intimada para comparecer em nenhuma das perícias, mas encaminhou Gracinha para uma perícia no INSS em que o perito atestou que Gracinha possuía déficit intelectual leve, ou seja, era analfabeta.
Em um claro gesto de preconceito social, a juíza afirma na ação que o analfabetismo de Gracinha prejudica o desenvolvimento das crianças: “Maria das Graças não apresenta condições intelectuais plenas, o que, por óbvio, acaba por ocasionar, também, o retardo intelectual das crianças”. Em resposta, o MNU enviou uma carta à magistrada discordando do fato “pois sabemos que pais com baixo nível de escolaridade não interferem na capacidade intelectual de seus filhos, temos exemplos disso em várias famílias.”
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Apesar da descendência quilombola e do direito à autodeclaração, a justiça catarinense não reconhece Gracinha como integrante do quilombo. O argumento do MP é que os quilombolas são definidos como “toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos, vivendo de uma cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”. E, para eles, Gracinha não vive do que planta, mas se sustenta tão somente da mendincância.
Diante dos termos com caráter racista usados no processo foi instaurado um pedido de providências contra a juíza, Elaine Cristina de Souza Freitas, na Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de SC. O corregedor nacional de Justiça que avaliou o caso, ministro João Otávio de Noronha, entendeu que um pedido de desculpas por parte de Elaine já estava de bom tom. Na decisão escreveu: A magistrada retratou-se da expressão utilizada e a Corregedoria local recomendou a ponderação dos termos adotados em suas decisões. Em 30 de outubro de 2017, o processo contra a juíza foi arquivado.
As herdeiras do território nunca mais voltaram
Em 27 de novembro de 2014, dois policiais militares e uma assistente social bateram à porta de Gracinha com um mandado de busca e apreensão expedido pela juíza, porém um estranho fato se sucedeu. As autoridades falaram para Gracinha que iriam levar as meninas para uma consulta médica, a menina mais nova que ainda dormia o sono da tarde foi levada junto a mais velha. Nunca mais as meninas voltaram. “Eles mentiram para a mãe, além de já estarem retirando as crianças de casa, eles ainda mentiram, como pode?”, questiona Maria de Lourdes Mina.
As crianças foram levadas para o Lar Chico Xavier, em Biguaçu, distante 60 quilômetros de Gracinha. Um relatório psicológico divulgado pelo abrigo atestou que as duas meninas não sofriam regressão infantil, nem sofrimento psicológico e sugeria a liberação de visitas monitoradas da mãe. O pedido foi aceito pela justiça. “As visitas eram de dar pena, no momento da despedida, as meninas choravam pedindo para irem junto da mãe”, lembra a advogada.
Foram três anos entre petições, recursos e 17 julgamentos suspensos em uma corrida contra o tempo para que as meninas voltassem a conviver com a mãe ou com membros da comunidade quilombola. Mas no dia 30 de novembro de 2017, a 1ª Câmara de Direito Cível do TJSC foi favorável à destituição de poder familiar de Gracinha por unanimidade. O julgamento foi conduzido pelos desembargadores, Raulino Jacó Brüning, Sebastião César Evangelista, Jorge Beber e André Carvalho.
“Daqui a pouco essas meninas estão com o útero maduro e como vai ser?”
A cultura jurídica que teima em não captar a intenção racial também foi exposta durante as audiências, marcadas por frases xenofóbicas e machistas por parte dos desembargadores. Em uma das sessões, um dos magistrados chegou a comentar que tinha que tomar cuidado com os quilombolas dando a entender que eles seriam perigosos.
A estigmatização do negro e quilombola violento é uma forma de racismo estrutural que discrimina e exclui ainda mais essa parte da população, como explica a pedagoga Gisely Pereira Botega na dissertação de mestrado realizada sobre o Quilombo Toca de Santa Cruz. “As pessoas de lá eram mal vistas pelos moradores de Paulo Lopes e os próprios comunitários eram responsabilizados pela violência que sofriam”.
A advogada Patrícia recorda uma conversa que teve com o desembargador Domingos Paludo. “Primeiro, ele me perguntou minha religião porque na sessão ele disse que era católico, acho que ele queria saber se eu era umbandista, eu respondi que não tinha religião e perguntei se isso afetava a decisão dele, ele me respondeu que não, que acreditava também no espiritismo. Achei estranho essa indagação dele, a fala carregada. Então, ele começou a falar que Gracinha era promíscua e eu disse que não entendia o termo promíscua sendo que ela tinha tido apenas dois namorados na vida, então ele continuou dizendo que ela saía com todo mundo. Logo mudou de assunto, falou da adoção que não poderia esperar muito tempo porque daqui a pouco essas meninas estão com o útero maduro e como vai ser?”, revela.
“O judiciário é pouco heterogêneo, quando se olha para a hierarquia do judiciário quanto mais sobe mais vai ficando branco e masculino”, relata Marta Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça de 2010, mostra que pouco mais de 15% dos magistrados se declaram negros, quando se olha para os demais servidores do judiciário trabalhadores, hierarquicamente inferiores aos juízes, o índice de negros sobe para 29%, mesmo assim é minoria. “Todas essas falas de minimização do negro vem de juízes brancos que nunca sofreram discriminação”, afirma Marta.
Adoção à brasileira
Gracinha é uma mulher conhecida no município e sempre recebe ajuda dos moradores, tanto é que as filhas são apadrinhadas por importantes pessoas de Paulo Lopes. O ex-prefeito Evandro João dos Santos é padrinho de uma delas, a vereadora Eliziani Santos Oliveira, madrinha da caçula e uma assistente social chamada Suzana, madrinha da menina mais velha. Segundo consta nos autos, o Conselho Tutelar e o MP fizeram contato com eles com a proposta de ficarem com as crianças, mas todos negaram.
Para o MNU, o fato viola o direito dos quilombolas como prevê o artigo 28, parágrafo 6, artigo 1 do ECA: que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal; “O Ministério Estadual feriu o ECA. Somente duas pessoas da comunidade foram consultadas, no entanto a prima da Gracinha, Dona Verônica, que gostaria de ter ficado com elas não foi procurada, então eles foram oferecer para os brancos”, indigna-se Maria de Lourdes.
Entretanto, como explica o Corregedor-Geral do MPSC, Ivens José Thives de Carvalho, quando envolve a destituição do pátrio poder o que predomina é o bem-estar da criança. “Se a criança não estiver recebendo cuidados e há perigo da própria vida, não há como afastar atribuições baseada na etnia ou cultura quilombola ou indígena. A proeminência é dada à vida e dignidade da criança”.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem, aproximadamente, 47 mil crianças e adolescentes em situação de acolhimento no Brasil. Destas apenas 9,5 mil estão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Em Santa Catarina, são 283 menores a espera de uma família adotiva contra 47 pretendentes. O processo de adoção no Brasil é visto como longo e burocrático, mas no caso da Gracinha este trâmite foi mais rápido do que o normal.
Em 2015, antes mesmo do processo de perda ou suspensão do poder familiar terminar as meninas foram encaminhadas a uma família adotiva. “Enquanto o processo ainda estava em julgamento no tribunal a juíza libera as crianças para uma família que não passou por uma preparação de pais adotivos e sequer estavam cadastrados no Cadastro Nacional de Adoção”, conta Patrícia. Em menos de seis meses de convívio com a nova família aos finais de semana, as crianças passaram a morar definitivamente com os novos pais.
“Existe um problema sério no ECA, acontecia mais antigamente, mas se faz muito ainda, a adoção à brasileira, de furar a fila de adoção. Nossa legislação criou um sistema bem fechado para que as adoções passem por uma lista geral, para que passe por psicólogos, assistentes, juízes e desembargadores, nós não temos na legislação uma preferência para família estendida”, comenta a procuradora Analúcia.
O fato da nova família ser branca foi bastante contestado pelos apoiadores de Gracinha já que ao sair do território quilombola, as crianças perdem o direito de viverem a própria identidade cultural. Para a antropóloga Raquel Mombelli, a retiradas das meninas do quilombo pode ser interpretada como etnocídio. “Não há análise criteriosa desses processos, não são respeitadas as questões étnico-raciais, identitárias, culturais. Por que isso é feito? Tem a ver com a questão do genocídio, da limpeza étnica, uma ‘purificação’ de determinados grupos sociais, limpeza cultural, racismo. São mecanismos muito presentes na estrutura jurídica se reproduzindo com força, o que nos deixa revoltadas e assustadas em relação à força com que esses processos ainda acontecem no país”, afirma.
Devolvam nossas crianças
Indignados com a ação da justiça, membros da comunidade Toca e movimento negro organizaram uma campanha em 2016 intitulada “Devolvam nossas Crianças”. Por duas vezes protestaram em frente ao TJSC em defesa de Gracinha.
“Ninguém entendeu o ocorrido, pois todos avaliavam que Gracinha era uma boa mãe e que nunca havia se descuidado das meninas. As crianças frequentavam a escola. Nunca se soube de maus tratos e nem abandono”, diz a liderança da comunidade em entrevista dada à antropóloga Raquel Mombelli, no artigo “Caso Gracinha: Pele Negra, Justiça Branca”.
A tese da antropóloga traz ainda o depoimento da professora de uma das crianças escrito em dezembro de 2014:
“E contrariando todas as perspectivas previsíveis de um histórico de rótulos e estigmas desde os seus ancestrais, Gracinha é extremamente responsável com o processo pedagógico da filha. Embora sendo analfabeta, sempre que recebe algum recado da escola, vem prontamente até minha residência ou até mesmo em outros lugares com intuito de estar a par de todos os assuntos relacionados à escola. A aluna é assídua e apresenta diariamente uma boa aparência de bons cuidados, assepsia com o corpo e suas roupas. É muito organizada com seu material escolar o que não é comum em alguma crianças dessa idade”.
Para a Associação Quilombola Santa Cruz o pertencimento étnico-racial e coletivo foi ignorado no estudo social produzido. “Há uma descontextualização dos processos de exclusão social e econômica que a população negra enfrentou ao longo da formação histórica do país. Ainda há a negação dos efeitos perversos do racismo à população negra, justificando a segregação econômica, descriminalização, e frequentemente, a culpabilização dos negros”, afirma a associação.
Basta uma visita ao quilombo Santa Cruz para compreender condições precárias em que vivem. As casas são minúsculas, de madeira e sem estruturas básicas, não há rede de tratamento de esgoto.
Onde para uns denota-se falta de higiene, para os moradores é a falta de políticas públicas por parte do Estado que os mantém marginalizados. “Os protestos da comunidade revelaram que nenhum política pública se produziu ali para reparar anos de injustiça e descaso. O poder público surge para tirar os filhos da comunidade, sob alegação de “falta de higiene”, quando não há e nem nunca houve qualquer política de saneamento básico”, escreve a antropóloga Raquel Mombelli no artigo.
Quem é Gracinha?
Maria das Graças de Jesus é uma mulher negra, quilombola, mãe de cinco filhos. Natural de Paulo Lopes, perdeu a mãe muito cedo quando tinha dois anos de idade e foi criada pela avó. Vó Bia que dizia ter conhecido a escravidão, ganhava a vida “perambulando” pelas ruas, Gracinha sempre a acompanhava.
Aos 16 anos, Gracinha teve o primeiro filho, mas foi levado logo quando nasceu por alegarem que ela não tinha condições de criá-lo. Nunca soube do paradeiro dele. Aos 20 anos casou-se e teve dois filhos que hoje são adultos. As duas meninas alvos do processo nasceram quando ela já tinha 40 anos.
Gracinha é uma mulher de olhar forte e poucas palavras. O silêncio é uma maneira de dar fim aos preconceitos enfrentados na vida. Como se ao se expor, as dores ganhariam vida e se perpetuariam por gerações. Além é claro, do silenciamento imposto aos negros desde a colonização que os colocou como subalternos e sem voz. Das poucas vezes que falou, Gracinha contou o motivo pelo qual evadiu da escola ainda na infância. Segundo ela, logo nos primeiros dias de aula se tornou alvo de chacotas dos outros alunos. Zombavam que ela ia descalça já que não tinha condições de comprar sapatos, zombava do cabelo dela. Um dia não aguentou mais e partiu pra cima de uma menina branca. Nunca mais voltou para lá e por isso não saber ler, nem escrever.
Nunca teve emprego fixo, com Vó Bia aprendeu a perambular pelas ruas, garantindo a condição de mobilidade e de resistência ao negar submissão aos brancos com o papel de babá e empregada doméstica. Quando não conseguia o suficiente para manter os filhos, era ajudada pela vizinhança. Poucas vezes pôde contar com o suporte do pai das crias.
Como constam nos autos, o respeito à história, ao território, à memória, à ancestralidade e aos conhecimentos tradicionais não foram considerados. O MPSC justifica a retirada das filhas de Maria das Graças por não conseguir se situar no tempo e espaço, não exercer função remunerada, viver perambulando pelas ruas do município de Paulo Lopes e implorar ajuda da comunidade.
Ser mãe quilombola
É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança. O ditado africano passa a mensagem de que além dos pais, a responsabilidade em educar uma criança também é da sociedade e no quilombo isso é praticado diariamente. As crianças passam muito tempo entre as casas de tios, tias e vizinhos. A noção de tradição e parentesco para os quilombolas é fundamental, pois se trata de terras tradicionalmente ocupadas.
Porém o laço que estabelecem pelo território, vai além da moradia. O reconhecimento do ser quilombola inicia-se logo no nascimento e é visto como uma forma de resistência.
Em dissertação de antropologia, Raquel Mombelli explica: “Há de se considerar que a construção de vínculos de parentesco nessa comunidade quilombola assumem configurações especificas que extrapolam noções de consanguinidade e aliança que estão para além do compadrio e que só podem ser compreendidas a partir de um olhar mais cuidadoso. Essas relações de parentesco envolvem uma noção de parentesco mítico, parentesco por adoção e pertencimento ao território. Essa noção especifica de parentesco detém uma lógica presidindo as definições do que é ser parente, “ser da comunidade de Santa Cruz”, revelando vínculos que articulam redes de ancestralidade, patrilocalidade e matricentralidade. Esses vínculos, por sua vez, buscam outras formas de expressão mediadas pelo idioma de parentesco, como o conhecimento e saberes sobre ervas medicinais, ajuda no parto entre outras formas de solidariedade”.
Na Toca, a organização é matriarcal, como em quase todos os quilombos. As mulheres encarregam-se da liderança na estrutura social e familiar do local. Inevitavelmente o maternar se torna coletivo.
Os direitos e a identidade quilombola
Os quilombos são reconhecidos como comunidades negras rurais com trajetória histórica própria e forte relação com seu território desde a Constituição Federal de 1988. A Comunidade de Santa Cruz recebeu a certidão de reconhecimento de Comunidade Remanescente de Quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em 2007.
Em 2010, o INCRA iniciou o processo de regularização das terras ocupadas há mais de um século pelas famílias da Toca.
Atualmente, existem normas federais, estaduais e municipais que garantem direitos aos quilombolas.
Contraponto
Fizemos contato com a assessoria do Poder Judiciário e do Ministério Público sobre as afirmações contidas nos autos, mas não houve possibilidade de entrevista por se tratar de um processo protegido pelo segredo de justiça.