A moradora do quilombo Toca de Santa Cruz, em Paulo Lopes, é símbolo da luta das mulheres escravizadas no Brasil 


Quilombola, mãe solo e analfabeta, Maria da Graça de Jesus, a Gracinha, teve suas duas filhas arrancadas de seu convívio há mais de
seis anos. Foi quando uma assistente social e um policial bateram à porta de sua casa, no Quilombo Toca de Santa Cruz, em Paulo Lopes (SC), com a justificativa de que levariam suas filhas a uma consulta médica. Depois desse dia, as crianças nunca mais voltariam.

::Confira a reportagem:
Caso Gracinha: há 6 anos a quilombola perdia as filhas para o Estado 

Mãe e filhas chegaram a se encontrar poucas vezes em um abrigo, distanciadas pelo tempo e espaço. A decisão da justiça não levou em conta o apelo do Movimento Negro Unificado (MNU), tampouco o parecer antropológico da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) que recomendou o retorno das herdeiras do território quilombola, de onde não deveriam ter sido retiradas. 

Aos olhos da antropologia, ciência que estuda a dimensão cultural dos fatos sociais, o sistema de justiça catarinense não teve a capacidade de compreender as violências históricas das quais a identidade de Gracinha é resultado. Pelo contrário, os estereótipos suscitados no transcorrer do processo são reveladores do que condenou Gracinha a viver sem as duas filhas: o fato de ser mulher negra, quilombola, mãe solo e analfabeta.

Pela lente da antropologia o que se viu foi uma mulher resistindo à sina de um destino comum ofertado às descendentes africanas que foram escravizadas no Brasil. E é com esse olhar que Raquel Mombelli nos apresenta sua análise sobre o caso.

“Vejo em Gracinha um símbolo atual e muito potente da luta das mulheres negras pela autonomia e liberdade. Num futuro próximo, suas filhas conhecerão a sua própria história e se juntarão ao quilombo para somarem-se ao movimento vidas negras importam”, afirma em tom de esperança.

Nossa entrevistada é doutora em Antropologia Social pela UFSC e vice-coordenadora do Comitê Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia. Raquel é também pesquisadora vinculada ao Instituto Brasil Plural e Nova Cartografia Social da Amazônia. 

Foto: Arquivo Pessoal

Catarinas: Você elaborou um Parecer Antropológico pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) sobre o caso Gracinha, apontando as irregularidades ou vícios do processo. Por que ocorreu esta manifestação? 
Raquel Mombelli: A manifestação da ABA nos autos do processo  conhecido publicamente como “Caso Gracinha” ocorreu a partir de solicitação do Movimento Negro Unificado de SC (MNU/SC) em  2014,  diante da intervenção do Poder Judiciário da  Comarca de Garopaba/SC, de suspender o  poder familiar da mãe Gracinha, sob a alegação de que a mesma era incompetente para exercer a identidade social de mãe.

Gracinha é da Comunidade Quilombola de Toca Santa Cruz, localizada a 40 quilômetros de Florianópolis. Entretanto, os autos do processo simplesmente desconsideram este fato e todos os direitos quilombolas que deveriam ser considerados no caso. Diante dessa situação o MNU solicitou um parecer no sentido de sensibilizar o Poder Judiciário para resguardar os direitos previstos na Constituição Brasileira de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Então, o parecer foi elaborado por mim destacando estes direitos, mas também o fato de que se tratava de uma comunidade em processo de regularização fundiária pelo Incra, com Certificado de Auto-reconhecimento emitido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e, também, destacava o  pertencimento da Gracinha a essa comunidades.

Ela e as filhas são quilombolas e, portanto, estes direitos tinham que ser respeitados e assegurados dentro do processo. Ocorre que o Parecer Antropológico foi anexado aos autos do processo, mas não produziu o efeito esperado. Analisando, hoje, todo este processo jurídico eu penso que o documento parece nem ter sido lido pelos operadores do direito. A peça parece ter sido totalmente desconsiderada pela Justiça.

A evidência disso é que a sentença final sequer menciona os direitos quilombolas na Constituição Federal ou aquilo que prevê o ECA no que diz respeito aos direitos das crianças quilombolas e indígenas.

A Justiça negou o pertencimento de Gracinha à Terra Quilombola?
A Justiça não reconheceu nos autos o pertencimento quilombola da Gracinha, nem os direitos quilombolas ao território, nem o direito à autoidentificação, previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho aos povos e comunidades tradicionais. Além disso, ocorreu nestes autos uma grave agressão ao  ECA, que  assegura em situações envolvendo crianças e adolescentes provenientes de comunidades  indígenas ou quilombolas a obrigatoriedade de se considerar e respeitar a identidade social, cultural, os costumes e as tradições. O ECA ainda determina nestes casos a formação de equipes multidisciplinares, com a produção de relatórios e estudos para acompanhá-los, assegurando a essas crianças o respeito e o direito à identidade, à cultura, ao seu modo de vida e a sua tradição.

Mas nada disso aconteceu com relação ao Caso Gracinha. O que se assistiu foi a reprodução de práticas coloniais do sistema jurídico.

Na atualidade esta prática tem se identificado pelo termo “Adoção Compulsória”, ou seja, quando uma criança é arrancada da mãe e encaminhada para um abrigo sem considerar o seu destino, mesmo quando existe a chamada família extensa.

Nestas situações as mães pobres são as mais discriminadas e sofrem uma violência cruel, pois são impedidas de exercerem o direito de ser mãe, de cuidar ou de ser cuidada. Uma criança só deve ser encaminhada para adoção se for comprovada negligência da mãe e da família. E no que diz respeito ao Caso Gracinha nunca houve negligência por parte da mãe. As crianças da Gracinha foram encaminhadas para adoção desrespeitando todos os direitos resguardados e sem considerar a existência da família extensa que poderia cuidar delas.

A adoção compulsória das crianças foi um ato violento do Estado, pois foram impedidas da convivência familiar e comunitária e isto é condição relevante para a proteção e para o desenvolvimento pleno e digno de crianças quilombolas, de viverem de acordo com sua identidade e tradição.

Essa questão de adoção compulsória tem relação com o que denominamos etnocídio, ou seja, um processo de rompimento com aquela cultura?
Este processo todo aconteceu de forma absurda a partir de denúncia anônima de uma vizinha da Gracinha. E este evento desencadeou  várias situações inusitadas e violentas.  Entre elas, o fato das crianças serem retiradas de casa, com o apoio de força policial armada e de assistentes sociais, que diziam que iriam  levá-las  para exames de sangue. As crianças ainda dormiam quando foram levadas para um abrigo.

Gracinha nunca foi negligente com as filhas. Os depoimentos dos agentes de saúde do município dizem que ela sempre cuidou muito bem das filhas e que tinha, por exemplo, a carteira de vacinação em dia. Quantas mães tem as carteiras de vacinação de seus filhos perfeitamente em dia? 

Entretanto, nada disso foi considerado e a sentença foi avassaladora. Gracinha perdeu a guarda familiar das crianças num processo repleto de vícios. Nós, um grupo de pessoas voluntárias e representantes de organizações que se juntaram para tentar reverter esta situação absurda, só tomamos conhecimento de que as crianças não estavam mais no abrigo depois de três meses que elas já tinham sido realocadas para uma família desconhecida. Nem a advogada de defesa de Gracinha foi  comunicada.

A família extensa havia solicitado a guarda das crianças, mas não se cumpriu o rito processual. Elas foram adotadas por um casal externo à comunidade quilombola, segundo fontes informais. Porque oficialmente nada foi dito sobre o paradeiro e o suposto novo lar das crianças. O MNU interpreta esta situação como sequestro. Eu diria que o Estado roubou estas crianças.

Muitas questões ficam em aberto: por que o Estado em momento algum se movimentou para dar o apoio necessário para que Gracinha  permanecesse  com as crianças? Por que não  aguardar o trâmite do  processo de guarda pela família extensa para permitir que as crianças permanecessem no quilombo? Afinal, o que  tudo isso  significa? Em minha avaliação, a resposta é simples e dolorosa de se admitir: significa que para os juízes que decidiram o caso nenhuma família ou mulher da comunidade quilombola de Toca é competente para exercer a função social de mãe. E, nesta lógica, isto significa também que outras mães quilombolas poderão perder a guarda de seus filhos.

Como você analisa a sequência de argumentos que buscavam desqualificar a Gracinha, descaracterizar a identidade dela como quilombola, ou até mesmo usar essa identidade contra ela, tanto nas posições do Ministério Público  e Judiciário de SC quanto na omissão do MPF?
O MPF entendeu à época que como se tratava de um tema do campo de direito de família, não havia como intervir. Nós discordamos deste argumento porque ele é restritivo com relação a efetivação dos direitos quilombolas. Pois não se está diante de uma família nuclear, mas de família quilombola, com uma cultura e uma tradição própria que deveria e deve ser respeitada segundo o que reza a nossa Constituição. Isto foi totalmente negligenciado dentro dos autos do processo. 

Nossa compreensão é que o MPF deve atuar ativamente nos casos que envolvem a retirada de crianças e jovens indígenas e quilombolas de suas comunidades, pois estamos diante de situações que ultrapassam o campo do Direito de Família, na forma como é tratado na esfera da justiça  estadual. Mas parece não haver até o momento muita sensibilização do Poder Judiciário para este debate. O direito de família pode ser aplicado, mas ele precisa extrapolar padrões hegemônicos instituídos por outras matrizes culturais eurocêntricas. Esta perspectiva precisa ser superada porque é um mecanismo que reafirma e alimenta o racismo institucional no campo jurídico.

Então, quando a promotora expressa nos autos o argumento de que “por ser Gracinha descendente de escravos não prima pela educação e limpeza”, isto é um argumento racista que ganha força em todo o processo.

Primeiro porque ninguém é descendente de escravos, trata-se de africanos que foram escravizados neste país. Segundo, a associação pela promotora entre “descendente de  escravo” e  ausência de limpeza e educação reitera uma classificação pejorativa, desqualificadora e de inferioridade atribuída historicamente ao comportamento da população negra. No caso Gracinha, nos autos ainda são encontrados noções de raça e da condição da mulher negra vinculada a um universo sexualmente promíscuo.

Promotores e juízes não enxergam nas próprias comunidades a potencialidade que elas historicamente demonstram de cuidar das suas crianças. Nem a força das mulheres de enfrentarem um cotidiano marcado por distintas formas de violência e racismo e, apesar disso, o quanto cuidam dos seus filhos,  de forma exemplar. Estamos falando de mães e crianças incríveis, com capacidades múltiplas em enfrentar a dureza da vida. Por isso foi algo assustador, impressionante, em pleno século 21 a gente ouvir no Tribunal de Justiça de Santa Catarina a reprodução desse discurso jurídico ancorado em percepções racialistas. Como é possível ainda a justiça estar vinculada a ideias deploráveis do século 19 com tanta força? O que isso significa? Por que tem que ser assim?

Foto: Rafaela Martins/Catarinas

Como foi conhecer a Maria da Graça de Jesus?
Maria da Graça é uma mulher maravilhosa, gentil, cândida, uma mãe maravilhosa. Como muitas mulheres negras deste país, ela é vítima da violência institucional histórica. Em uma de nossas conversas ao longo dos últimos anos ela me contou que deixou de estudar porque sofria muito no colégio em Paulo Lopes. Não tinha sapatos e quando frequentava as aulas o seu cabelo era ridicularizado pelos colegas. Só agora, adulta, ela retomou os estudos, especialmente diante da necessidade de lutar pela retomada da guarda das crianças. Ela está concluindo a sua formação escolar através da Educação Escolar Quilombola.  

Maria das Graças criou outros dois filhos. Eles são adultos, trabalham e têm suas próprias vidas.  Por que ela não teria condições de criar as duas meninas? Ela tem plenas condições de exercer a maternidade.

Gracinha encontra-se em profundo sofrimento por esta violência que está vivenciando. Ela sente falta das crianças. As outras crianças, especialmente as primas, sentem falta das crianças. Toda a comunidade quilombola sente falta das crianças. Todos querem o retorno das crianças para o quilombo.

As assistentes sociais, que fizeram os estudos para subsidiar a ação de destituição familiar, relataram à época, entre outras questões, que Gracinha era acumuladora e que isso interferia na higiene e cuidado com os filhos. O que você ouviu em relação aos apontamentos para a destituição do poder pátrio da Gracinha sobre as filhas?
O ECA é uma grande conquista da sociedade para proteger nossas crianças e adolescentes, mas ele por si não basta. Pois há muitas particularidades superpostas em torno da infância e da adolescência, especialmente quando se fala de quilombolas e indígenas. Os profissionais que atuam neste campo precisam estar preparados para compreender melhor o racismo institucional que opera na sociedade brasileira. Precisam conhecer os direitos das crianças quilombolas e indígenas e os modos de vida das comunidades tradicionais e suas famílias. É preciso também superar o olhar etnocêntrico e eurocêntrico que se naturalizou  historicamente sobre estes grupos sociais e suas formas de criação e cuidados.

Parece-me que tem um olhar que se sobressai em quem ocupa um lugar  confortável, um olhar branco que não viveu os  processos históricos de exclusão e que não entende o que é ser negro no Brasil. Assim, sem reflexão, acaba descrevendo uma realidade distorcida porque está olhando a partir dos seus próprios parâmetros, do próprio umbigo e não compreende que contexto é aquele que produziu Gracinha. Não consegue perceber suas precárias condições financeiras e de toda comunidade, nem compreender as estratégias de organização e sobrevivência que as próprias mulheres criam, reinventam para resistirem naquele lugar, numa sociedade extremamente racista e num município que historicamente se constituiu sob a mão de obra escrava.

Se você for à Toca vai ver a imagem nítida de segregação da cidade com relação à comunidade. Onde começa a comunidade, por exemplo, acaba o calçamento da estrada, não tem água potável, o recolhimento de lixo é precário, a energia chegou há pouco tempo. O que isso significa? Por que as políticas públicas não chegam para o quilombo?

E por que historicamente as mulheres da comunidade quilombola sempre tiveram que trabalhar como babás ou  empregadas domésticas? Agora, em função da pandemia, muitas mulheres perderam seus vínculos de trabalhos. Foram simplesmente dispensadas, sem nenhum direito.

Enfim, uma série de relações que vai demonstrando a cara do racismo institucional, de como funciona esse mecanismo e produzindo uma exclusão que é secular.

No caso Gracinha é emblemático porque representa todo esse pensamento e mecanismo de reprodução do racismo, porque poderia ser qualquer outra mulher da comunidade, inclusive uma das promotoras falou isso, alegou nos autos que nenhuma das mulheres da comunidade teriam condições de criar e cuidar das meninas. Não é só sobre a Gracinha que estamos falando, mas sobre o olhar que se constrói sobre aquele lugar em que os negros vivem, sobre o modo de vida que tomam para si, da sua própria tradição. O simples fato de serem negros aciona toda um imaginário e discurso pejorativos.

Produz-se uma ideia de que a retirada dessa criança é uma forma de ‘civilizar’ ou até mesmo branquear essa população. Velhos bordões do século 19, esses discursos ainda são muito fortes na nossa sociedade. A ideia de que progresso e desenvolvimento são prerrogativas dos brancos. Gracinha e todas as mulheres da comunidade tentam lutar pelos seus direitos, direitos básicos à educação, moradia. Só recentemente conseguiram um projeto de moradia. Esse projeto de melhoria das condições está vinculado à luta dos próprios direitos quilombolas, aquilo que está na Constituição, artigo 68, que resguarda o processo de regularização dessas terras, áreas ocupadas pelas comunidades quilombolas.

Coincidência ou não, o caso da Gracinha ocorre justamente num momento em que o processo de regularização fundiária da comunidade estava avançando.

É uma comunidade quilombola e como tal era preciso resguardar todos os direitos ali presentes e as meninas foram tolhidas desse direito porque são herdeiras de um território, do quilombo, de uma cultura, tradição e hoje por viverem fora, estão sendo impedidas de vivenciar essa dimensão da sua própria existência. Elas nem foram ouvidas no processo. Sabemos que há vínculos afetivos, emocionais muito fortes entre elas. No abrigo as meninas choravam que queriam voltar com a mãe, as despedidas eram sempre desesperadoras. A justiça catarinense agiu nesse caso da mesma forma que agiu historicamente, desconsiderando todo o processo de escravidão, da violência contra as mulheres negras, dos direitos quilombolas em nome não sei do que, a não ser da reprodução de uma ideologia, de uma narrativa de um pensamento, talvez falte afirmar justamente essa branquitude da justiça brasileira.

Gracinha e militantes do MNU têm esperanças de reverter esse processo. Na sua avaliação, há possibilidade?
Penso ser muito difícil porque a sentença já foi dada e a justiça é muito conservadora no Brasil. Nem mesmo a  OAB/SC  conseguiu fazer uma nota de manifestação com relação aos vícios do processo.   Nesse olhar sobre essas comunidades ainda está muito presente a visão eurocêntrica, O direito produzido por essa sociedade branca ainda é muito forte, difícil de ser criticado e rompido. Com o avanço dos movimentos de extrema direita e o  fascismo  tomando conta das instituições a revisão da sentença está muito longe de acontecer. A menos que uma força externa a essa engrenagem coloque os autores das decisões em uma situação de constrangimento público. Mas acho difícil acontecer.

Por outro lado, penso que as crianças de Gracinha vão crescer e logo vão saber o que houve com elas pois o caso foi muito publicizado nas redes sociais.  Essa entrevista fará parte desta história. Há trabalhos acadêmicos, produções jornalísticas, documentários feitos e em produção. Junto com tantos outros, o Caso Gracinha está se tornando um símbolo na luta contra o racismo em Santa Catarina e no Brasil. Assim, ao se tornarem adultas e independentes tenho certeza de que as crianças vão tomar conhecimento sobre como tudo aconteceu e vão querer retornar para a sua família e para a comunidade quilombola.

Afinal, elas são herdeiras de um território quilombola, de uma cultura e de uma tradição. Elas carregam a memória afetiva com a mãe e com os parentes da comunidade. Penso que logo isso vai acontecer, elas vão querer resgatar os vínculos com esta grande família que é o quilombo da Toca.  

Também acredito  e valorizo a força histórica dos movimentos negros e do atual movimento vidas negras importam como potenciais de produção de grandes transformações na nossa sociedade e pela luta pela igualdade racial. Estes movimentos são o epicentro das transformações que precisamos e logo serão capazes de alavancar mudanças no sistema jurídico.  

De que forma a Justiça poderia ter atuado neste caso?
A Justiça perdeu uma grande oportunidade neste caso de reconhecer o racismo da sociedade brasileira e de iniciar uma política antirracista no campo jurídico a partir do Caso Gracinha. E nós também perdemos, porque todo o processo serviu para reforçar o racismo institucional que sempre permeou a justiça brasileira. A Justiça também feriu direitos, desrespeitou a CF e dos direitos das comunidades quilombolas. Em nenhum momento transpareceu qualquer esforço para compreender o contexto de pertencimento étnico, cultural e social da Gracinha e suas crianças à comunidade quilombola. A Justiça desrespeita também o direito a autoidentificação de Gracinha e da comunidade quilombola e o direito destas crianças a proteção à sua cultura e à convivência familiar, condições fundamentais para o crescimento e desenvolvimento digno das crianças quilombolas.

Prevaleceu o etnocentrismo e a incapacidade de se importar com as vidas negras, com a vida de crianças negras e quilombolas, infelizmente. A Justiça não compreende a trajetória das mulheres negras e suas lutas históricas para sustentar suas famílias.

No caso da Gracinha, esta trajetória é emblemática. Muitas mulheres livres vendiam seus produtos na rua como forma de sobreviver e de recusa para retornar ao trabalho na Casa Grande – as denominadas “negras de ganho”. Gracinha como a sua vó Bia, que conheceu a escravidão, fizeram esta opção e se recusaram a trabalhar como empregas domésticas ou babás na Casa Grande, com vínculos muitas vezes irregulares e com baixa remuneração. Elas escolheram o caminho da autonomia e da liberdade no quilombo.

A Gracinha não é acumuladora como foi dito nos autos. Mesmo que fosse, isto é argumento para se retirar os filhos de uma mãe? Ocorre que Gracinha se recusou a conviver com a Casa Grande, ela rompeu com a Casa Grande, com a ordem imposta pela sociedade branca quer controlar o seu destino. Penso que foi por isto que a Justiça não permitiu que ela permanecesse com a guarda das crianças.

Por fim, vejo em Gracinha um símbolo atual e muito potente da luta das mulheres negras pela autonomia e liberdade. Num futuro próximo, suas filhas conheceram a sua própria história e se juntarão ao quilombo para somarem-se ao movimento vidas negras importam!  

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Palavras-chave:
  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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