Centenas de pessoas pedem proteção da criança e exigem a responsabilização da juíza e da promotora que atuaram no caso.

Revolta e comoção marcaram o protesto que reuniu manifestantes na última terça-feira (21), em Florianópolis, para exigir justiça no caso da menina de 11 anos que teve o direito ao aborto legal violado. O ato ocorreu um dia após a publicação da reportagem do Portal Catarinas em parceria com o Intercept, em repúdio à conduta daquelas que seriam responsáveis por garantir o direito da vítima de estupro de vulnerável e o violaram: a promotora Mirela Dutra Alberton e da juíza Joana Ribeiro Zimmer. Com gritos de “Criança não é mãe”, manifestantes reivindicaram a garantia imediata do direito previsto em lei e a responsabilização da promotora e juíza.  

“Ela tem duplamente o direito ao acesso ao aborto legal, porque é uma gravidez proveniente de um estupro e porque põe em risco a vida dessa menina. A cada dia que passa, o risco aumenta. Por isso, exigimos com urgência que o Hospital Universitário da UFSC (HU-UFSC) cumpra o seu papel de garantir esse direito a ela”, defende Aline Soares, integrante da Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. 

A equipe médica do HU, que é considerado referência no serviço de aborto legal na Grande Florianópolis, recusou realizar o aborto legal que é permitido pelas normas da instituição até as 20 semanas. Porém, o Código Penal não impõe qualquer limitação gestacional para a realização do aborto em caso de violência sexual, tampouco autorização judicial, conforme recomendação do Ministério Público Federal feita ao hospital, nesta quarta-feira (22).

Para a vereadora de Florianópolis e pré-candidata a deputada federal Carla Ayres (PT) é necessário unir forças para pressionar a instituição a ampliar o seu entendimento sobre a normatização e a lei. 

“Devemos pressionar para ampliar o serviço, porque o atendimento é somente nas terças-feiras, o que não cobre a demanda. Muitas vezes, as pessoas que buscam o procedimento em outros dias, não são direcionadas para a equipe de terça-feira. Precisamos que esse serviço seja permanente e constante no Hospital”, argumenta. 

Ainda nesta terça-feira, o Ministério Público Federal instaurou um procedimento para avaliar a conduta do Hospital Universitário no caso. O Hospital Universitário tem até a noite desta quarta-feira (22) para dar uma resposta.  

“Criança não é mãe” foi o mote da manifestação convocada após publicação da reportagem do Catarinas. Foto: Fernanda Pessoa.

Justiça Catarinense

A indignação com a conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer, até então titular da 1ª Vara Cível da Comarca de Tijucas, e a promotora Mirela Dutra Alberton, da 2ª Promotoria de Justiça da Comarca, também impulsionou a mobilização. “Como uma promotora e uma juíza se portam daquele jeito em uma audiência? Que Judiciário é esse? Que direito é esse?”, questiona a advogada Iris Gonçalves Martins, integrante do 8M de Florianópolis.

Em entrevista para o Catarinas, a integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) de Santa Catarina, Vanda Piñedo, enfatiza a importância do judiciário assumir o seu papel em defesa do povo, das mulheres, das pessoas negras e indígenas.

“É preciso que essa promotora e essa juíza tenham as punições devidas. Elas não podem ficar imunes atrás das suas capas e das suas togas. É preciso que o judiciário se coloque em defesa dessa criança. Essa criança corre risco de vida, risco de uma vida toda apagada em função dessa decisão”, adverte Piñedo.

A promotora Mirela Dutra Alberton atuou no Caso Gracinha em 2016, onde uma mãe quilombola perdeu a guarda das filhas em um processo recheado de termos racistas, sexistas e violações dos direitos quilombolas. 

“Não é possível que uma pessoa incorra, pela segunda vez conforme é sabido, pela retirada de direitos de uma pessoa negra, dessa vez uma criança. Não é possível que essa promotora continue atuando como se nada tivesse acontecido e o judiciário seja conivente com as suas atitudes. Enquanto MNU seguimos buscando onde estão as filhas da Gracinha”, complementa.

Para Guilhermina Cunha, da Mudiá – Coletiva Visibilidade Lésbica de Florianópolis, há um caminho a ser seguido pelas organizações civis.

“O que podemos fazer enquanto organizações civis são essas manifestações, as petições e pressionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostrar que isso não é algo pontual. Essa denúncia só aconteceu por conta da mídia, tem vários outros casos que não ganham destaque. Isso afeta principalmente as mulheres, as pessoas LGBT, as pessoas negras”, aponta. 

Após a repercussão do caso, a Corregedoria Nacional do Ministério Público anunciou que irá investigar a conduta da promotora. A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua vez, abriu uma investigação contra a juíza. 

Caso levanta discussão sobre a importância da legalização e descriminizalização do aborto. Foto: Fernanda Pessoa.

Impactos da denúncia

Com apenas dois dias da publicação da nossa reportagem, notamos algumas consequências da denúncia. Diversas organizações se manifestaram em repúdio às violências praticadas contra a criança e a favor do aborto legal, entre elas a Sociedade Brasileira de Bioética, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público.  

A Febrasgo reforçou que não há limite de idade gestacional para os casos de aborto induzido permitidos em lei. Alertou sobre as taxas de mortalidade materna entre as gestantes menores do que 14 anos, que chegam a ser cinco vezes maiores do que entre as gestantes entre 20-24 anos. Além disso, apontou a posição infralegal dos limites estabelecidos em manuais ou normas técnicas do Ministério da Saúde. 

“A Febrasgo recomenda a todos os tocoginecologistas brasileiros, em especial àqueles que atuam em serviços de referência ao aborto legal, a adequação de seus protocolos e serviços. Defendemos os direitos civis, reprodutivos e constitucionais das meninas, adolescentes e mulheres brasileiras”, finaliza a nota. 

O Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, coletivo que congrega aproximadamente 400 integrantes do Ministério Público brasileiro, saiu em defesa da menina e da sua infância e em repúdio aos atos praticados pelo sistema de justiça. 

“Que o aborto legal – direito garantido a vítima de violência sexual desde 1940 – possa ocorrer com urgência, salvaguardando a menina, que clama por atuação efetiva na tutela, incondicional e intransigente, de seus direitos!”, diz o documento.

Para Júlia Andrade Ew, presidenta estadual do Unidade Popular e coordenadora do Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB), as mudanças no caso em tão pouco tempo são fruto da mobilização popular.

“Essa pressão popular, que fez com que a menina saísse do abrigo, é o que vai garantir que o processo seja efetivado com justiça até o fim. É a única aposta possível, a mobilização das mulheres, seja pela internet ou pelas ruas. Não têm outra via que garanta os nossos direitos”, ressalta. 

A representante do Movimento de Mulheres Olga Benário em SC, Juliana Mateus, acredita que somente uma reforma estrutural na sociedade é capaz de resolver os diversos problemas revelados com o caso. 

“Só vamos conseguir falar com liberdade sobre o aborto sem ter medo das represálias, que estamos sempre sofrendo. O ideal é que possamos construir uma sociedade em que as mulheres sejam livres e tenham autonomia sobre o próprio corpo, mas em uma sociedade capitalista, em que somos vistas como propriedade e como posse das outras pessoas, é impossível”, defende. 

A criminalização do aborto no Brasil, praticada pelo próprio Governo que recentemente publicou um manual com obstáculos ao aborto legal, provoca desinformação, estigmatização e cerceia os direitos garantidos em lei. Defender uma legislação irrestrita, garantindo a descriminalização em todos os casos é essencial para romper isso.   

Na avaliação de Marlete de Oliveira, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), é importante as mulheres feministas avançarem nos espaços onde o patriarcado domina: na justiça, na saúde, na política. 

“Precisamos falar que o aborto é uma questão de autonomia. Não é uma opinião minha nem sua, é uma questão de garantir o direito de escolha. Por que o Estado não legaliza? Porque é importante controlar os corpos, explorar as mulheres”, conclui. 

Outras manifestações estão previstas para os próximos dias na Grande Florianópolis e no Brasil. Informações sobre os atos podem ser enviadas no nosso email [email protected].

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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