Mulheres no Brasil enfrentam uma crescente violência política de gênero e raça, que se manifesta em ataques virtuais, campanhas de difamação, ameaças de morte e estupro, e exclusão de espaços de poder. Embora essa violência tenha sido tipificada como crime em 2021 pela Lei 14.192, até janeiro de 2024, apenas 7% de 175 casos resultaram em ações penais eleitorais.

“A violência de gênero é, na minha opinião, uma estratégia de sabotagem da democracia pelo patriarcado, para inviabilizar e intimidar as mulheres na política”, define Olívia Santana (PCdoB), deputada estadual da Bahia. 

A parlamentar já sofreu diversas formas de violência política, incluindo recentemente uma tentativa de violência física, ao comentar o Projeto de Lei 1904. Olívia relata que, ao subir à tribuna para se posicionar contra o projeto do PL da Gravidez Infantil, foi intimidada pelos deputados Diego Castro (PL) e Leandro de Jesus (PL), que avançaram sobre ela. 

Membros de sua bancada intervieram, impedindo o acesso dos deputados, mas eles continuaram a gritar contra sua fala, que atribuía à extrema direita e ao bolsonarismo a tentativa de retroceder nos direitos das mulheres. O episódio foi encaminhado à Comissão de Ética da Câmara, mas, até o momento, a deputada não obteve qualquer retorno.

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Olívia Santana fala em frente as ministras Cida Gonçalves e Macaé Evaristo e Manuela d’Ávila | Crédito: Amanda Poraí.

Interseccionalidades

Talita Barbosa, vereadora de Taubaté (SP) conhecida como Talita Cadeirante (PSB), já recebeu ameaças de morte e de estupro por e-mail. Uma das mensagens dizia: “vou te estuprar até você voltar a andar”. A mãe de Talita também foi ameaçada de morte nos e-mails recebidos. “As ameaças que eu sofri tem um recorte muito importante que precisa ser avaliado, pesquisado, quantificado e qualificado em relação a mulheres com deficiência. Recebi uma ameaça muito grave e que toca justamente no ponto da deficiência”, relata. A investigação sobre as ameaças está em andamento na Polícia Federal.

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Talita Barbosa | Crédito: Amanda Poraí.

Antes mesmo de assumir o cargo, Juhlia Santos (Psol), primeira vereadora travesti e quilombola de Belo Horizonte (MG), já é alvo de ataques virtuais. “Fui homenageada em uma peça de um bloco de carnaval da cidade e começaram a dizer que a vereadora eleita do Psol estava fomentando cenas de sexo público, o discurso clássico”, conta.

Violência política não afeta somente parlamentares

Eleita para o cargo de vereadora de Recife (PE) para o próximo pleito, Karina Santos (PT) enfrentou violência política antes de entrar na política institucional, pelo trabalho realizado nas redes sociais como comunicadora e ativista social. “Enquanto mulher que ocupa esse espaço, já sofri várias ameaças de morte contra mim e contra minha família. Teve uma situação em que a ex primeira dama Michelle Bolsonaro, expôs meu perfil e a partir disso eu sofri várias ameaças no meu e-mail pessoal de estupro coletivo, violência de gênero e principalmente xenofobia, porque eu sou nordestina”, recorda.

Vanessa Senra, advogada com perspectiva de gênero, defende a necessidade de compreender a violência política para além de mulheres que ocupam mandatos.

“Em um espaço de militância, dentro de um sindicato ou de uma entidade profissional, como, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), também pode ocorrer violência política. Sempre que uma mulher se manifesta politicamente, não necessariamente dentro do Congresso ou dentro da Câmara, pode haver violência política”, explica.

Por exemplo, assessoras, normalmente, são as primeiras a ler ameaças enviadas por e-mail ou redes sociais e também são afetadas. Izabela Vial, estudante de Relações Públicas, atua como assessora no mandato de Leninha (PT), deputada estadual de Minas Gerais, e já acompanhou momentos em que a parlamentar foi vítima de violência política de gênero e raça.

“Uma vez, eu abri os e-mails dela e tinha uma ameaça muito grave de que iria estuprá-la, que sabia onde ela morava e que ia atrás dela e da família dela. Eu fiquei bem incomodada, a ameaça não foi pra mim, mas eu senti o medo pela Leninha”, cita.

Advogadas feministas assumem um papel de defesa das pautas e das mulheres de luta e, nesse contexto, também são vítimas de violência política. É o caso da advogada Ana Carolina Fleury, especialista na defesa dos direitos das mulheres e mães, que ao defender vítimas de violência política, muitas vezes sofre agressão também. “Os agressores transmitem a forma que eles tratam as clientes, como, por exemplo, descredibilizando o nosso trabalho, nos chamando de histérica, louca, violenta e agressiva”, relata.

Sequestro de imagem

Em 2022, um trecho de fala da advogada e mestra em políticas públicas Laura Astrolabio, em entrevista à Revista Fórum, foi recortado e compartilhado em diversos canais relacionados à religião nas redes sociais.

“Tiraram minha fala de contexto e isso teve uma repercussão nacional, de maneira que eu passei a sofrer muitas ameaças e me cassaram como se fosse uma bruxa, tanto que tive que sair do Rio de Janeiro”, recorda a também co-fundadora e co-diretora executiva da organização A Tenda das Candidatas.

Naquele ano, após deixar o Rio de Janeiro, Astrolabio foi acolhida por uma família de São Paulo e raspou o cabelo para não ser reconhecida. Hoje, ela retornou ao estado e as ameaças diminuíram, mas os vídeos em que a fala é recortada seguem nas redes sociais, o que ela descreve como um sequestro da imagem. 

“Chega um momento que a sua imagem é sequestrada e você não consegue mais ter controle, porque nas redes sociais, as coisas são divulgadas na velocidade da luz. Também não sabemos onde estão esses vídeos para além das redes sociais, onde são mostrados”, descreve.

Importância de redes de apoio

Com o objetivo de traçar estratégias para enfrentar a violência política de gênero e raça, mais de 250 mulheres, entre parlamentares, ativistas, jornalistas, advogadas, líderes comunitárias e representantes da sociedade civil, se reuniram em Brasília nos dias 27 e 28 de novembro na Jornada Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil, organizada pelo Instituto E Se Fosse Você?, e pelas comissões de Defesa dos Direitos da Mulher e de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial. A ideia era construir juntas uma rede de proteção, solidariedade e cuidado mútuo entre essas mulheres.

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Dinâmica na Jornada Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil | Crédito: Instituto E Se Fosse Você?

Foi a primeira vez que Sandra Picoli (PCdoB), vereadora de Erechim (RS), participou de um evento como esse. Alvo de ameaças e publicações tendenciosas, ela chegou a ter sua participação no evento questionada em plenário. “Um adversário político usou a tribuna para criticar o meu pedido de deslocamento até o evento, sendo que ele nunca fez isso com nenhum pedido de diário dos outros vereadores. Ele disse que eu faria turismo com dinheiro público e se referiu a outras lideranças nacionais de forma pejorativa”, relata.

Picoli descreve o evento como uma oportunidade de conectar mulheres que enfrentam as mesmas lutas e ataques, criando uma rede de apoio. “Conversando nos grupos, percebemos que basicamente são violências semelhantes que todas passam diariamente e isso nos fortalece”, afirma.

Maria Fernanda Passos (PT), vereadora de Jaguarão (RS), reforça que o evento é essencial para abrir caminhos e alternativas que transformem a política, permitindo que as mulheres estejam nesses espaços sem sofrer agressões. “Nesse espaço, somos ouvidas com credibilidade e nos acolhemos”, descreve.

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Dinâmica na Jornada Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil | Crédito: Instituto E Se Fosse Você?

Vanessa Senra, advogada com perspectiva de gênero, enfatiza como os diálogos durante o evento são fundamentais para dissipar os sentimentos de solidão e culpa causados pela violência política. “Entendemos que isso não é algo que incide isoladamente na Vanessa, na Carolina, na Maria, na Joana. Passamos a não se auto responsabilizar e entender que isso faz parte de um sistema que pratica isso como um mecanismo histórico”, complementa.

Estratégias para barrar a violência política de gênero e raça já ocorrem no Brasil. Laura Astrolabio, co-fundadora e co-diretora executiva d’A Tenda das Candidatas, compartilha que a organização, em parceria com a deputada federal Samia Bonfim (Psol/SP), propôs a criação do Setembro Neon, um mês dedicado à luta contra a violência política.

“A ideia é chamar a atenção das pessoas da importância de combater essa violência que impacta diretamente a nossa democracia, porque está diretamente relacionada a subrepresentação na política”, aponta.

Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil

O primeiro dia da Jornada Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil foi integrado pelo Seminário pela Prevenção e Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça, com presença de parlamentares, pesquisadoras e ativistas. Durante a tarde, as participantes conversaram com as ministras Anielle Franco, da Igualdade Racial, Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e da Cidadania, e Cida Gonçalves, das Mulheres.

Já no segundo dia, houve uma série de dinâmicas coordenadas por psicólogas do Instituto E Se Fosse Você? para acolhimento e trocas entre as participantes sobre temas como ser mulher na política, autocuidado e estratégias de articulação.

“Como é bom se reconhecer em todas as mulheres de territórios e contextos diferentes e, dentro desse cenário político sentimos a possibilidade de esperançar”, finaliza, sobre a Jornada, Franciele Alves, mulher indígena, psicologa feminista e integrante da equipe do plantão de apoio a vítimas de violência política do Instituto.

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Participantes da Jornada Mulheres Sem Medo de Mudar o Brasil | Crédito: Instituto E Se Fosse Você?

Em abril de 2024, o Instituto promove o Festival Mulheres em Luta, em São Paulo, capital. Informações sobre o evento serão divulgadas ao longo dos próximos meses pelas redes sociais da organização. É possível realizar a pré-inscrição pelo site do Instituto.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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