Quando a deputada federal Carla Ayres (PT-SC), suplente em exercício e à época vereadora, sofreu assédio de um colega durante sessão na Câmara Municipal de Florianópolis, ela reuniu sua equipe para agir coletivamente contra a violência, de maneira pública e judicial, abrindo quatro frentes de denúncia contra o ex-vereador Marquinhos da Silva (PSC-SC).
Ele a agarrou e tentou beijá-la no rosto à força em 8 de dezembro de 2022, no dia em que foi aprovada a criação da Procuradoria Especial da Mulher, órgão da Casa que visa atuar no combate à violência e discriminação de gênero.
A cena foi registrada pela TV Câmara e ganhou repercussão nacional, mas Silva escapou de ter o mandato cassado e foi apenas advertido por escrito pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar que também não considerou o caso como violência política de gênero. A vereadora Maryanne Mattos (PL) foi a relatora.
Já no judiciário o caso teve uma resposta. A Justiça de Florianópolis condenou o ex-vereador a indenizar Ayres em R$15 mil por danos morais. A sentença, proferida pelo juiz Luiz Cláudio Broering do 1º Juizado Especial Cível de Florianópolis, foi divulgada no dia 7 de junho.
Procurada, a defesa de Marquinhos da Silva disse que, a princípio, ele não irá se manifestar e que também não irá recorrer do caso. Também ressaltou que a denúncia de violência política de gênero foi arquivada, bem como a de assédio sexual. Segundo a defesa, “Marquinhos deseja encerrar o assunto e vai respeitar a decisão imposta”.
Para Ayres, embora exista uma lei para prever esse tipo de violência, as instituições ainda não estão plenamente preparadas para aplicá-la.
“É crucial que a Câmara reconheça e combata a violência política de gênero de forma mais assertiva. E isso não se restringe a casos de assédio físico, mas também abrange situações de violência mais sutis no ambiente cotidiano entre vereadores. É importante que sempre que aconteça esse tipo de situação a gente fale sobre isso com muita responsabilidade”, afirma.
Desde o ocorrido, ela relata que já foi alvo de outras violências, inclusive ameaças de morte.
Casos Isa Penna e Benny Briolly
Ainda em junho, no dia 4, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) confirmou a sentença de condenação do ex-deputado Fernando Cury por importunação sexual contra a ex-deputada Isa Penna. Em dezembro de 2020, ela foi assediada por Cury durante sessão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
No fim de 2023, ele foi condenado a 1 ano, dois meses e 12 dias de prisão, em regime aberto. Depois essa pena foi substituída pelo pagamento de multa de 20 salários mínimos (R$26.400) a serem doados para entidades públicas ou privadas com destinação social, além de prestação de serviços comunitários.
A violência política de gênero começou a ser tipificada como crime em agosto de 2021, quando a Lei 14.192 foi sancionada. Mas só em maio deste ano, houve a primeira condenação pelo crime no Brasil, a do deputado estadual Rodrigo Amorim (União Brasil) por ofender a vereadora de Benny Briolly (PSOL), primeira travesti eleita em Niterói (RJ).
Os casos ilustram como após quase três anos da legislação as instituições ainda não estão preparadas para prevenir, identificar e combater esse tipo de violência.
O que é violência política de gênero
Segundo Marlise Mattos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (Nepem), a violência política de gênero abrange qualquer ato, ameaça, conduta ou omissão que provoque dano, sofrimento físico, moral, psicológico e econômico às mulheres, com o objetivo de impedir o exercício da cidadania política plena.
“Isso pode ocorrer por razão de gênero, sexo, orientação sexual, raça, cor, etnia, idade, escolaridade, religião, deficiência, identificação ideológica, xenofobia, pertencimento a movimentos sociais. Inclusive, a definição não se restringe à política parlamentar porque as lideranças, as defensoras de direitos humanos, também estão apanhando nesse país”, explicou ao Catarinas.
Leia mais
- De liderança estudantil à vereança: as mulheres que ocupam a política institucional em Florianópolis
- O que é a machosfera e como ela afeta a vida das brasileiras
- De liderança estudantil à vereança: as mulheres que ocupam a política institucional em Florianópolis
- Retrospectiva 2024: jornalismo, educação e direitos para transformação social
- Mulheres sem medo: escuta e acolhimento contra a violência política no Brasil
Para a pesquisadora, a prática virou uma linguagem usada contra a democracia e um modo de operar da extrema direita para conter a chegada das mulheres negras, lésbicas, trans e indígenas ao parlamento brasileiro. Ela defende que esse tipo violência não seja naturalizada, nem encarada como se fosse inerente ao jogo político.
“A política sempre foi um lugar masculino, branco, cis-heteronormativo, isso ninguém tem dúvida. Mas o uso da violência contra mulheres de perfis muito específicos, é um fenômeno relativamente recente. É um modus operandi da extrema direita e das candidaturas de direita para conter esse avanço”, completa.
Dados do Boletim Técnico do Observatório da Mulher contra a Violência, divulgado em abril de 2023, apontam que 32% das mulheres já foram discriminadas no ambiente político por causa do seu gênero, enquanto apenas 10% dos homens relatam ter sofrido alguma discriminação do tipo.
Interrupção na fala, desqualificação em função do gênero e agressão sexual são as ocorrências mais citadas entre as mulheres.
Mattos conta que, em 2023, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) aprovou um projeto de lei específico para reprimir os constantes ataques contra deputadas, que incluem ameaças de estupro e morte. O PL 2.309/20, que cria o Programa de Enfrentamento ao Assédio e Violência Política contra a Mulher, é de autoria das deputadas Ana Paula Siqueira (Rede), Andréia de Jesus (PT), Beatriz Cerqueira (PT) e Leninha (PT).
Instituições não entendem gravidade da violência
De acordo com Beatriz Carvalho, pesquisadora no Grupo de Investigação Eleitoral da Escola de Ciência Política da Unirio (GIEL) tanto pelos relatos das parlamentares quanto pela recorrência desse tipo de violência, as instituições e seus membros têm dificuldade de entender e reconhecer esse fenômeno.
Carvalho é Doutoranda em Ciência Política da Rutgers University, Estados Unidos, e pesquisa casos de violência contra mulheres na política brasileira, ajudando a categorizar esses casos.
Para ela, a violência contra mulheres na política precisa ser vista como algo distinto da violência política, pois enquanto a última geralmente tem como pano de fundo “apenas” disputas ideológicas e partidárias, a primeira costuma procurar a exclusão daquela mulher do espaço de tomadas de decisões pelo fato dela ser mulher e ter poder na posição para a qual foi eleita.
“Essa violência está totalmente ligada à manutenção do patriarcado como objetivo político. Pela falta de amparo e escuta que as parlamentares vêm relatando, não parece que os órgãos e as autoridades competentes entendem essa distinção com a gravidade necessária. Não é uma questão puramente política, envolve o campo de direitos das mulheres”, analisa.
Entrada, permanência e sucesso das mulheres na política é minada pela prática
Além disso, ela pontua que a violência política de gênero atrapalha a participação de mulheres na política institucional, porque impõe barreiras no alcance da mulher nos momentos de fala, de votação e do trabalho como representante. “Um dos tipos de atitudes violentas mais comuns contra mulheres é o silenciamento, por exemplo, ou a objetificação e importunação sexual”, aponta.
Já Marlise Mattos emenda que casos como o de Ayres e Penna, não apenas ferem a dignidade pessoal, mas também intimidam e desestimulam a participação feminina na vida pública.
“Isso cria um ambiente hostil que perpetua a desigualdade de gênero e enfraquece a representatividade democrática”, afirma.
Ela destaca que a falta de apoio e reconhecimento por parte de órgãos como o Conselho de Ética da Câmara evidenciam a necessidade de uma reestruturação profunda das políticas internas dessas instituições públicas e de treinamento contínuo sobre questões de gênero para todos os membros que as integram.
A pesquisadora aponta ainda a criação de comitês especializados e independentes para lidar com essas questões. Tais comitês devem ser compostos por especialistas em direitos humanos e em violência de gênero, garantindo que todas as denúncias sejam tratadas com a seriedade e a imparcialidade necessárias. Além disso, campanhas de conscientização e treinamento sobre violência política de gênero devem ser promovidas regularmente para todos os funcionários e legisladores.
Segundo Mattos, é necessário um esforço coletivo para criar redes de apoio, oferecer proteção legal e psicológica às vítimas, e promover uma cultura de respeito e igualdade, pois somente através de uma abordagem integrada e contínua será possível garantir um ambiente político mais seguro e inclusivo para todas as mulheres.
Para contribuir, o Nepem elaborou uma cartilha com orientações à sociedade civil e às parlamentares, candidatas, defensoras dos direitos humanos e outras lideranças sociais sobre o tema, a partir de uma perspectiva interseccional. O material destaca que, além dos desafios institucionais, é crucial considerar o impacto pessoal e psicológico que a violência política de gênero exerce sobre as mulheres envolvidas na política.
“Por isso é necessário que esse tema seja debatido e que a lei seja aplicada. Também é importante que parlamentares que se dizem comprometidos com uma agenda progressista/pró direitos femininos trabalhem para tornar a política institucional um espaço seguro para mulheres”, conclui Beatriz Carvalho.