A bacharel em Direito Thais Becker trabalhou pela primeira vez como mesária nas eleições de 2024. Depois de participar do treinamento oferecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ela chegou cedo, no domingo, 24 de outubro, à seção para onde foi designada, na região central de Florianópolis, e rapidamente se integrou à equipe. Os voluntários e voluntárias se organizaram para revezar as atribuições ao longo do dia e garantir o fluxo das atividades durante o horário de votação. Uma atitude recorrente dos eleitores e eleitoras, que, no entanto, chamou a atenção de Thais, mulher com deficiência física e mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP).

“Eu trabalhei tanto como secretária, que é a pessoa que fica na porta conferindo a documentação, organizando os atendimentos prioritários, quanto como mesária mesmo, pegando identidade, passando o CPF para o presidente de mesa e entregando o comprovante de votação para os eleitores. O que mais me chamou a atenção foi que, nos momentos em que eu estava como secretária e ficava, em minha cadeira de rodas, posicionada na porta para receber as pessoas, do nada aparecia alguém atrás de mim. Eu me dirigia à pessoa, dizendo que podia me entregar a identidade e a resposta, em geral, era a mesma: achei que você estivesse na fila, não sabia que estava trabalhando”, contou.

Intrigada com a situação, Thais reparou que quando outro voluntário, sem deficiência, assumia a função, o mesmo não ocorria. “Pensei que poderia ser o lugar onde eu estava me posicionando e tentei mudar, me colocar mais de frente para quem chegava. Tentei outros arranjos também, mas em todos os contextos as pessoas continuavam pensando que eu estava na fila e não trabalhando.

Isso me fez pensar no quanto a gente naturalizou enquanto sociedade que o lugar das pessoas com deficiência é o lugar de espera, um lugar passivo. Não estamos acostumados a presumir que pessoas com deficiência estejam em lugar de destaque, ativo, ainda que a função de mesária não seja super concorrida”, avaliou ela.

A presunção de um lugar passivo nas diversas instâncias da vida social, incluindo a política, pode ser a razão que explique, em boa medida, o baixo número de candidatos e candidatas com deficiência eleitos e eleitas. É como avalia a vereadora Talita Cadeirante (Taubaté-SP), do Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma das poucas com essa condição que venceram o pleito deste ano. De acordo com o TSE, apenas 8% (381) das 4696 candidatas e candidatos com deficiência à vereança em todo o Brasil conquistaram o cargo em 2024

Por que precisamos de mais pessoas com deficiência na política?
Thaís Becker (no centro) em palestra no lançamento da série de vídeos educativos “Porque esse é uma tema de Direitos Humanos das Mulheres?”. Crédito: Acervo CDHM/USP

“Isso ainda faz parte do lugar que a pessoa com deficiência ocupa no imaginário que é construído pela sociedade. Ainda choca ver nossos corpos, dissidentes, em espaços de agência, de liderança e isso tem a ver com a descrença de que um corpo como o meu tenha capacidade de elaborar políticas públicas que toquem as pessoas, de realizar um trabalho sério e responsável, que represente a pluralidade das nossas pessoas”, disse ela, que, aos 27 anos, foi reeleita.

A vereadora Talita ressalta, ainda, que, mesmo quando pessoas com deficiência ocupam espaços de liderança, não estão livres de sofrer preconceitos, como o capacitismo

“O cargo político que eu ocupo não vale de nada, por exemplo, no momento em que vou pegar um uber ou quando estou em um show, ainda que na área de acessibilidade. O transporte, muitas vezes, continua me sendo negado, dirigem-se à minha acompanhante, e não a mim, para falar comigo, fazem perguntas intrusivas, inapropriadas. E as experiências nesse sentido vão se acumulando, sobretudo porque, além de ser uma pessoa com deficiência, sou mulher e lésbica. Mas continuo acreditando que é possível construir diálogos com outros grupos minoritários e avançar nessa pauta por meio de políticas públicas”, acrescentou. 

Para a professora Luanda Botelho, pesquisadora da área da deficiência relacionada a gênero e trabalho, é possível atribuir a baixa presença de pessoas com deficiência entre os vereadores eleitos a partir de três eixos: 

1) barreiras que as pessoas com deficiência encontram para a participação na sociedade de modo geral, ou seja, menos recursos financeiros, falta de acessibilidade nos meios de transporte, nos espaços públicos e privados em geral, ausência de rede de apoio e política pública de suporte;

2) barreiras específicas para a participação política, como capacitismo nos próprios partidos politicos e discriminação por parte do eleitorado, em razão de concepções inadequadas sobre a deficiência, que a associam à falta de capacidade, doença etc;

3) dinâmicas eleitorais que dificultam o sucesso de candidaturas. 

Nesse sentido, ela afirma que “as candidaturas de pessoas com deficiência ainda são pouco estudadas, mas ‘aproveitando’ achados de pesquisas sobre desigualdade de gênero, sabemos que campanhas com mais recursos e  candidaturas à reeleição têm mais chances de sucesso. Então a tendência, sem mudança nas dinâmicas eleitorais, é que as desigualdades se perpetuem”, disse ela, que mantém o perfil Papo Defiça, no instagram.

Também a partir de conclusões associadas aos estudos sobre desigualdade de gênero, ela enfatiza, por outro lado, que a representatividade pode ter um “efeito de ciclo virtuoso”, já que a presença de políticos com deficiência pode estimular outras pessoas com deficiência a perseguirem esse caminho.

A diversidade traz uma maior pluralidade de perspectivas. Não quer dizer que toda pessoa com deficiência eleita vá necessariamente contribuir para a luta da pessoa com deficiência, até porque ela também se norteará por outros elementos, como disciplina partidária, grupos de interesses. Porém, do mesmo modo que as estatísticas mundiais indicam que a maior participação feminina nos parlamentos levou à introdução de novos temas na pauta política, pode-se esperar que o mesmo ocorreria com a maior participação das pessoas com deficiência”, concluiu.

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  • Thais Araujo

    Jornalista, mestra e doutoranda em Jornalismo (UFSC), pesquisadora nos grupos Transverso e DhJor (Jornalismo e Direitos...

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