Aviso de gatilho: essa reportagem contém relatos explícitos de violência sexual.

Um influente ginecologista da capital catarinense responde a um processo criminal por violação sexual mediante fraude movido pelo Ministério Público de Santa Catarina. A denúncia, oferecida em julho do ano passado, apresenta o relato de três vítimas, atendidas pelo médico entre 2018 e 2021, que descrevem situações constrangedoras durante consultas e exames ginecológicos de rotina. Dois desses relatos foram divulgados pelo Catarinas em reportagem anterior sobre o caso. A matéria jornalística foi, inclusive, utilizada no inquérito policial para contribuir com os relatos feitos pelas vítimas. O ginecologista permanece com situação regular no Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC), porém, atualmente, não está prestando atendimento em sua clínica particular. O processo ainda está em primeira instância e as audiências de instrução estão agendadas para 2024.  

Relembre as acusações de violência sexual

Uma das vítimas, Luana Vargas, de 29 anos, buscou atendimento médico em maio de 2021 para investigar uma ardência que sentia ao urinar. Ao iniciar o atendimento, o ginecologista começou fazendo perguntas íntimas para a paciente. “Chegando na sala, ele já fez uma pergunta sobre minha vida sexual, sem nem saber por quê eu estava ali, mas eu fiquei pensando que era normal. Ele perguntou se eu estava tendo orgasmo”, conta. 

Luana respondeu às perguntas, pensando que as informações poderiam contribuir com o diagnóstico, foi durante o exame preventivo que passou a se sentir abusada sexualmente. Ela conta que o médico tocou a área genital onde está o seu piercing, constatando que não era no clitóris, e perguntou se o adorno ajudava na masturbação. 

“Na hora de colocar o espéculo, ele fez movimentos vai e vem algumas vezes. Terminando esse exame, ele fez um exame de toque, segundo ele, pra ver se eu sentia dor no útero ou nas paredes da vagina. Me machucou. Eu cheguei a pular da maca com o que ele fez. Eu estava com infecção urinária”, relata. Ele teria chegado a dizer que a paciente era “apertadinha”. Além disso, ao realizar o exame, Luana comenta que o médico estava em pé, encostando o corpo na sua perna. “Ele cheirou o dedo dele após o exame, com um ar de prazer, fazendo: ‘ahhhh’, de satisfação”, recorda. 

Em sequência, o médico informou que realizaria o exame das mamas na paciente, mesmo sem o pedido dela. O procedimento foi acompanhado por outra profissional que digitava o laudo. “O exame de mamas é feito com a ponta dos dedos, ele apalpou com a mão inteira, diversas vezes, elogiou o trabalho feito pelo cirurgião plástico, apertou meus mamilos com força pra saber se eu sentia dor e, no final do exame, não me deixou secar o gel, para continuar abusando e apalpando. Na semana que aconteceu eu não conseguia tomar banho, não conseguia me olhar, não conseguia encostar em mim”, conta.

A vítima registrou o Boletim de Ocorrência no dia seguinte, foi quando descobriu que o médico tinha denúncias anteriores. Ela também publicou o seu relato nas redes sociais e passou a receber mensagens de outras vítimas que contavam terem sofrido situações similares com o mesmo ginecologista.

Através das redes sociais, Luana se conectou com outra vítima, Julia*, que na época tinha 21 anos e havia consultado com o médico dois meses antes. Na reportagem anterior do Catarinas sobre o tema, a estudante universitária relatou que buscou acompanhamento para colocar DIU, um método contraceptivo intrauterino. Na época, a vítima o nomeou como Dr. K., em referência ao sobrenome do ginecologista. 

“Logo que eu entrei na sala eu já senti que não deveria ter entrado. Ele me olhava comendo com os olhos. E fazia perguntas completamente absurdas, coisas que um ginecologista não precisa saber. Fora que ele pediu para que eu tirasse toda a roupa pra fazer o exame, sendo que toda mulher sabe que não precisa. Eu não tirei, tinha ido de vestido e só tirei a calcinha. O exame foi completamente estranho, ele ficava fazendo carinhos e carícias na minha perna, cheirando minhas partes”, conta. Ela tampouco viu o médico coletando nada para mandar a análise do Papanicolau para o laboratório, apesar de ele ter introduzido o espéculo e os dedos na sua vagina. 

Julia ainda tinha um ultrassom transvaginal para realizar. Novamente, o médico pediu para que ela tirasse toda a roupa. “Dessa vez eu tirei, não sei porque”, disse. A paciente conta que não deram uma camisolinha para ela vestir, somente um pano para tapar os seios. “Ele ficou elogiando as minhas tatuagens, falando que eu era muito bonita, que eu era muito jovem, enquanto eu fazia o exame. Depois, ele fez o exame para ver se tem nódulos nos seios, mesmo sem requisição. Ele baixou o pano e ficou pegando nos meus peitos, não de um jeito que as pessoas geralmente fazem o exame. Depois disso, geralmente não é o médico que te seca, que tira o gelzinho, mas ele fez isso. Foi muito ruim, eu só queria que aquilo acabasse”, conta. 

Além do abuso sexual, Julia conta que o médico deu orientações erradas sobre os métodos contraceptivos que ela tinha interesse, desencorajando-a sobre o uso do DIU. O abuso sexual deixou sequelas psicológicas e físicas em Julia. “Depois dessa consulta eu tive duas infecções urinárias muito tensas e, provavelmente, foi por causa dessa consulta. Eu não posso provar, mas, pra mim, foi, porque eu nunca tive infecção e tive duas seguidas em três semanas, logo após a consulta com ele”. Após conversar com Luana, Júlia se sentiu encorajada a denunciar o médico. 

Ginecologista de Florianópolis será julgado por violação sexual de três pacientes
Audiências de instrução e julgamento foram agendadas para 2024. | Imagem: Reprodução.

Audiência para ouvir as testemunhas e as mulheres foi agendada para 2024

Para a advogada Bárbara Hartmann Cardoso, assistente de acusação e advogada de Luana Vargas, o que chama atenção é a forma com que ele vitimiza as mulheres que ele atendia, sempre seguindo o mesmo padrão. 

“Como é comum esse tipo de crime e como a desculpa do criminoso é sempre a mesma, não é? Ali na defesa, ele argumentou que a forma de atendimento é protocolo, e se coloca como vítima. ‘Ai, querem arrancar dinheiro de mim, de um senhor idoso, estão fazendo um complô contra mim’. E, na verdade, é uma coisa praticamente impossível que diversas mulheres que não se conhecem contem exatamente as mesmas histórias”, afirma. 

Uma das testemunhas indicadas no processo faz parte da família do médico, e buscou Luana após ler o seu relato. “Sempre achei ele uma pessoa estranha e nunca quis consultar com ele, assim que li o relato de um ginecologista com consultório na Hercílio luz ter cometido uma série de abusos, eu soube com certeza de que era ele e entrei em contato com a advogada representante do caso”, contou para o Catarinas. 

Jéssica* relata um episódio que aconteceu em um almoço familiar, onde o ginecologista fez uma fala constrangedora sobre as suas pacientes: “Ele fez um comentário problemático, alegando que possuía muitas pacientes prostitutas e que elas gostavam muito do que faziam, após essa declaração ele fez comentários objetificando o corpo dessas pacientes, dizendo que eram muito lindas e gostosas. Ninguém na mesa soube o que falar e, rapidamente, trocamos de assunto, pois foi algo extremamente desconfortável e que demonstra o comportamento sexual inadequado dele como ginecologista”.

O fato do médico ser de uma família com influência gera preocupação tanto nas pacientes e testemunhas, quanto na defesa. “A expectativa é que haja uma condenação, que ele pague pelos crimes que cometeu, é um tipo de situação que acontece muito com as mulheres, mas que hoje elas não silenciam mais. Nem devem. Mas existe aquele receio pelo fato da influência e da família dele, eu tenho um pouco de preocupação. Não sei o que poderia acontecer”, conta a advogada. 

Apesar da alegação da defesa do ginecologista no processo, de que não existe justa causa para o prosseguimento da ação, a justiça agendou as audiências de instrução e julgamento, onde serão ouvidas as vítimas, testemunhas e o réu para agosto de 2024. “É cansativo, eu só quero finalizar isso e virar essa página na minha vida. Quando e se acontecer de novo, se tiver mais vítimas e eu tiver que depor, eu farei. Eu não vou desistir. Tenho certeza que têm muitas vítimas dele”, afirma Luana. O processo ainda não possui uma sentença, pois está sendo analisado na primeira instância. 

A Promotoria do Ministério Público de Santa Catarina responsável pelo caso não quis se manifestar sobre a ação, porque ela corre sob segredo de justiça. Já o CRM-SC, questionado se há algum processo em andamento para investigar a conduta do médico, enviou nota a seguir. 

“Os Conselhos de Medicina são impossibilitados de se manifestar sobre casos concretos que são objeto de apuração ou mesmo já julgados, excetuadas as penas públicas, as quais são devidamente publicadas no site do CRM-SC e no Diário Oficial da União. Manifestações quanto a procedimentos, seja à imprensa ou a terceiros não envolvidos, poderiam culminar em pré-julgamento e nulidade do processo, o que não se pode permitir.”

Até a publicação desta reportagem, a defesa do médico não respondeu ao pedido de posicionamento do Catarinas sobre o andamento do processo feito por whatsapp e e-mail.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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