Um grupo de trabalho interinstitucional de atenção integral à saúde das pessoas em situação de violência sexual lançou em junho a Cartilha de Atenção Humanizada à Interrupção Legal da Gravidez em SC. Voltada para profissionais da saúde, a publicação tem o objetivo de colaborar com a ampliação e o aprimoramento do serviço de interrupção legal da gravidez (ILG) na rede de saúde catarinense. Entre outras questões, o texto aponta que não há limite gestacional para a realização do procedimento, tampouco há necessidade de apresentar documentação que comprove a violência sexual sofrida ou autorização judicial.

A iniciativa tem o desafio de sensibilizar e qualificar as/os profissionais a respeito da realização de um procedimento humanizado, como explica o promotor de justiça Douglas Roberto Martins, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Saúde Pública do MPSC. “É um documento técnico que se baseia em orientações do Ministério da Saúde, decisões judiciais consolidadas por parte dos tribunais superiores e entendimento compartilhado por todas as instituições que o subscrevem. Ele visa trazer informação e garantir os direitos de mulheres e meninas quando decidem pela interrupção da gravidez nas hipóteses previstas em lei, o que é um direito que lhes deve ser assegurado e o grupo tem trabalhado para garantir que isso aconteça aqui em Santa Catarina”, afirma Martins. 

O grupo começou a se reunir em agosto de 2021, após a iniciativa do MPSC, que solicitou representação dos outros órgãos e estendeu o convite a pesquisadoras da área e profissionais dos serviços de referência. Assinam a cartilha o Ministério Público de Santa Catarina, a Secretaria de Estado da Saúde, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, Defensoria Pública de Santa Catarina, Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, Tribunal de Justiça do Estado, Ministério Público Federal, Polícia Civil e Polícia Científica. 

“O GT vem se encontrando periodicamente com o objetivo de coletar dados sobre os serviços de interrupção legal da gestação em SC, construir um diagnóstico para melhor compreensão do contexto catarinense, articular estratégias com os órgãos competentes para facilitar o acesso de mulheres e meninas à interrupção da gestação e, também, elaborar a cartilha com informações didáticas e acessíveis”, diz a defensora pública Anne Teive Auras, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública do Estado. 

No Brasil, o aborto é legal em casos de gravidez decorrente de estupro, para salvar a vida da pessoa gestante e em caso de fetos com anencefalia.  

Cenário em SC

Em um primeiro momento, o grupo trabalhou para a realização de um diagnóstico para entender a atual situação dos serviços de interrupção da gravidez em SC. Um extenso questionário foi encaminhado aos 295 municípios, 179 responderam informando como fazem o atendimento da demanda, quais os fluxos que utilizam, quais são os hospitais e os serviços de referência etc. Outro questionário foi encaminhado para 66 hospitais e maternidades estaduais que atendiam a critérios como possuir equipe suficiente para uma habilitação como serviço de atenção e terem realizado procedimento de interrupção legal da gestação nos últimos cinco anos. Metade deu retorno. 

“Nós fizemos o cruzamento dessas respostas, tanto dos municípios quanto dos hospitais, para entender e diagnosticar a situação no estado”, explica Martins. Este diagnóstico é apresentado na parte introdutória da Cartilha. Em junho de 2021, havia cinco serviços de referência – públicos ou conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS) – para interrupção de gravidez nos casos previstos em lei.  No entanto, entre janeiro 2018 e junho de 2021, ao menos 27 estabelecimentos de saúde registraram abortos por razões médicas e legais de acordo com o Sistema de Informações Hospitalares (SIH). 

No mesmo período, no Brasil, aconteceram 6.668 abortos por razões médicas e legais no SUS registradas no SIH, cerca de 1.900 ao ano. Em Santa Catarina, foram registrados 310 procedimentos, cerca de 89 por ano. Do total dos registros do período no estado, 138 (44,5%) aconteceram fora do município de residência da pessoa usuária. Ainda conforme o SIH, mais da metade dos procedimentos do período (51,9%) se concentraram na Grande Florianópolis. Residentes de todas as macrorregiões fizeram o procedimento na Capital ou nas proximidades, o que pode significar até 600 km de distância e 9 horas de deslocamento de automóvel para ter acesso a um direito. A situação foi abordada em reportagem anterior feita pelo Catarinas. 

Para a defensora pública Auras, no mapeamento fica evidente o tamanho do desafio. “Os obstáculos para o acesso de mulheres e meninas ao aborto legal envolvem falta de capacitação de profissionais de saúde, número ínfimo de serviços de referência, concentração espacial dos serviços de referência, falta de informação e orientação adequada às mulheres, imposição de barreiras administrativas (como a exigência de boletim de ocorrência, de ordem judicial etc), dentre outros”, diz. 

Neste cenário informativo, o que chamou a atenção do promotor de justiça foi a ausência de cumprimento e desconhecimento, pelos municípios e pelos hospitais, dos fluxos estabelecidos e da linha de cuidado do Estado. “A maioria dos municípios indicava como referência hospitais que não realizam ou que não são referência para realizar a interrupção legal da gestação. Outros indicavam hospitais que depois encaminhavam as pacientes para outros hospitais, demonstrando que havia uma peregrinação bem significativa de serviço em serviço até, de fato, chegar a um serviço de referência”, comenta Martins. 

Além disso, há um desconhecimento geral sobre o direito ao aborto legal, sobre como acessá-lo e quais os requisitos. Essa falta de informação também está presente entre profissionais da saúde, como aponta a defensora pública coordenadora do Nudem. “Profissionais de saúde não raro exigem documentos desnecessários para a realização do procedimento (como decisão judicial, boletim de ocorrência, laudo pericial etc). Sem falar na resistência à realização do procedimento e na objeção de consciência oposta por muitas/os profissionais”, diz Auras.

Com a contribuição de diversas pesquisadoras da área, a cartilha apresenta uma série de estudos que analisam o cenário da interrupção legal na região. A impossibilidade de realizar o aborto previsto em lei no seu local de residência, diminui as chances de acessar um procedimento seguro. “Todos esses elementos contribuem para um cenário de violação aos direitos das mulheres e meninas, tornando a interrupção legal da gestação inacessível principalmente para aquelas mais vulnerabilizadas (pobres e negras) e forçando-as ao aborto clandestino e inseguro que coloca as suas vidas em risco”, afirma Auras. 

Hoje, há somente quatro serviços de referência em SC, todos em regiões litorâneas. A população das regiões Sul, Oeste, Meio-Oeste e Serra estão desassistidas. 

Instituições de Santa Catarina lançam cartilha de atendimento humanizado ao aborto legal
Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago é um dos quatro hospitais de referência em SC. Foto: Divulgação.

Derrubando mitos: interrupção sem limite de idade gestacional 

A servidora pública Simone Andréa Rodrigues, que atuou mais de vinte anos no Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Savs) – orientando em relação às interrupções legais de gestação e, quando necessário, acompanhando o atendimento nos hospitais de referência – elogia a linguagem usada no documento, principalmente no formato de perguntas e respostas com aspectos jurídicos e técnicos relativos ao atendimento e o registro de dispositivos da Rede de Atenção Intersetorial. 

“A cartilha tenta suprir um débito de instâncias como o Ministério da Saúde e a Secretária de Estado da Saúde, que há anos não munem de informações atualizadas as/os profissionais e a população quanto a esta temática”, comenta Rodrigues. A segunda parte da publicação traz esclarecimentos fundamentais sobre dúvidas comuns a respeito do procedimento de interrupção legal da gestação, que desconstroem alguns mitos como a questão do limite para idade gestacional, a objeção de consciência e a falta de necessidade de documentação que comprove a violência sexual sofrida. 

Sobre o tema do limite de gestacional para a interrupção da gravidez, o documento aponta que “não há limite máximo”. Ainda que as Normas Técnicas do Ministério da Saúde recomendem que a interrupção aconteça entre a 20-22 semanas em gravidez decorrente de estupro, a cartilha reforça que “as normas técnicas devem ser interpretadas à luz do que preconiza a Constituição, as leis e as evidências científicas”. O Código Penal brasileiro de 1940 tampouco coloca prazo. 

A ausência de limite para o procedimento está de acordo com as duas últimas publicações da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os serviços de atendimento ao abortamento. Em Abortion care guideline, de 2022, o tópico que trata de interrupções em gestações avançadas diz que “a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional”, e que os limites da idade gestacional “não são baseados em evidências, mas restringem o aborto legal, que pode ser fornecido por qualquer método”. 

No manual intitulado Clinical practice handbook for quality abortion care, de junho de 2023, a OMS detalha as orientações para a assistência clínica ao abortamento. O texto recomenda que seja considerada a realização da assistolia fetal para evitar sinais de vida durante o aborto medicamentoso ou se a expulsão fetal ocorrer após a preparação cervical, além de descrever as etapas do processo.  

Este procedimento foi explicado em uma entrevista feita anteriormente pelo Catarinas pelo médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam). Ele explica que a interrupção da gravidez pode ser realidade em qualquer idade gestacional, mas que, por definição, na obstetrícia, a interrupção abaixo de 22 semanas é chamada de indução de aborto ou abortamento, e acima de 22 semanas é chamada de antecipação ou indução do parto. 

“O procedimento de interrupção deve ser realizado sempre que a equipe de saúde entenda ser seguro e adequado, atendendo à escolha e ao consentimento da mulher, menina ou de sua/seu representante legal. É importante destacar que a ILG em gestações avançadas é um desafio para todas as pessoas, considerando que o direito legal e a assistência integral e humanizada às meninas e mulheres precisam ser garantidos. Diante disso, em gestações acima de 22 semanas, a equipe técnica avaliará cada situação individualmente, compreendendo-se que a idade gestacional não determina a não realização do procedimento”, consta em um trecho da publicação. 

A cartilha também informa alguns aspectos legais como a falta de necessidade de um boletim de ocorrência ou de autorização judicial para realizar o procedimento. “O atendimento para realização da ILG à menina ou mulher em situação de violência sexual não está condicionado ao registro de Boletim de Ocorrência (B.O)”, trecho retirado da cartilha. Outra parte ressalta que “a realização da ILG não depende de decisão judicial, consistindo em prática ilegal sua exigência por parte da/do profissional de saúde”. 

A questão da objeção de consciência, que consiste na recusa das/dos profissionais de saúde a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência” também foi mencionada no documento. Sobre este tópico, a defensora pública Anne Auras reforça que “a objeção pode ser alegada por profissionais individualmente, mas sem prejudicar o acesso da paciente ao direito previsto em lei – o hospital precisa contar com profissionais não objetores que realizem o procedimento”, afirma. 

Nos termos da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, a objeção de consciência não pode ser invocada em situações em que haja risco de morte para a pessoa grávida; inexista outra/o profissional que realize o abortamento legal; a recusa profissional possa acarretar danos ou agravos à saúde da pessoa gestante; no atendimento de complicações derivadas do abortamento inseguro, por se tratar de urgência; e no cuidado pós-aborto.

Cartilha apresenta fluxo de atendimentos para ILG

A Cartilha apresenta em primeira mão o fluxograma estadual de assistência para interrupção da gestação nos casos previstos em lei, que descreve os processos que devem ser seguidos ao atender uma pessoa que tenha direito ao procedimento. O fluxo é parte da Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde das Pessoas em Situação de Violência Sexual, aprovada em dezembro de 2022. 

“A definição do fluxo de encaminhamento dos casos por parte dos serviços de Saúde foi construída em conjunto com a Secretaria Estadual de Saúde e racionalizou o protocolo de atendimentos das mulheres que buscam o serviço em suas cidades e precisam ser encaminhadas para os serviços de referência da sua região”, explica Martins.  

De acordo com o promotor de justiça, a atualização da linha de cuidado caminhou junto com uma tentativa de ampliação dos serviços em Santa Catarina. 

“Até o momento, não tivemos por parte do Estado a ampliação dos serviços, mas é algo que segue em discussão. A gente segue trabalhando com a necessidade de habilitar novos serviços, mas houve um redesenho dos fluxos, uma melhor organização das referências e da regulação dos atendimentos, para que, quando o acolhimento acontecer, a mulher ou a menina seja encaminhada para o serviço correto de forma rápida e não fique peregrinando ou aguardando para ser atendida, o que gera uma série de outros problemas associados e decorrentes”, afirma Martins. 

A juíza Naiara Brancher, cooperadora técnica da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), acredita que o caráter interinstitucional do grupo que formulou a cartilha pode transmitir segurança aos integrantes da rede de atendimento e evitar eventuais violações dos direitos constitucionais à dignidade humana.   

“Acreditamos que pelo fato de a cartilha ter sido produzida por um grupo de trabalho multidisciplinar e contado com a colaboração dos diversos órgãos do Estado, conseguiremos auxiliar os profissionais que atuam na Rede de Atenção à Saúde, principais destinatários do documento, para garantir a concretização do direito ao serviço de interrupção legal da gestação. Assim, qualificaremos o atendimento prestado às mulheres e meninas que necessitam do serviço”, comenta.

O Catarinas entrou em contato com a Secretaria de Estado da Saúde e com o Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU), porém não teve retorno até a publicação desta reportagem.

Questionamos a Secretaria da Saúde se houve alguma mudança no serviço de aborto legal, realizado somente nos quatro Hospitais de Referência do estado, mesmo em casos de anencefalia e de risco de morte para a pessoa gestante. Para o HU, perguntamos se houve alguma alteração no protocolo de atendimento ao aborto legal em gestações acima de 20 semanas, tendo em conta a recusa do estabelecimento em realizar o aborto legal no caso da menina de 11 anos, em maio de 2022.

Também enviamos questões ao Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e à Polícia Civil, através da delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila, e não tivemos resposta. O Ministério Público Federal, por sua vez, preferiu não comentar a iniciativa.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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