Fundamentalistas espalham panfletos criminosos antes de evento LGBT+ em Blumenau
Piquenique organizado pela ONG Mães do Amor reuniu 130 pessoas no Parque Ramiro Ruediger para falar de cristianismo e inclusão
No último sábado (15), Rosane Martins, presidente da ONG Mães do Amor, de Blumenau, acordou com a ligação de uma amiga que passava pelo Parque Ramiro Ruediger, onde naquela tarde a organização faria um piquenique LGBT+. O tema seria “Jesus é amor”, em diálogo com a Marcha para Jesus que aconteceria naquele mesmo fim de semana na cidade, e o professor, teólogo e pastor Tuco Egg falaria ao público sobre cristianismo e diversidade – mas os ataques começaram logo cedo. No telefonema, ela soube que o parque estava cheio de panfletos LGBTfóbicos.
Impressos nas cores do arco-íris, os papéis apócrifos (sem assinatura) afrontavam o convite publicado na página da ONG no Instagram, cinco dias antes. Na publicação, as Mães do Amor chamavam as pessoas para o piquenique dizendo que todas são filhas de Deus, independentemente de sua identidade sexual e/ou de gênero. Já o panfleto costurava versículos bíblicos para passar a mensagem de que os “pecadores”, a exemplo dos “homossexuais”, não são filhos de Deus. “Aliás, existem aqueles que são filhes do diabo”, dizia o material, em linguagem não binária.
A notícia se espalhou pelas redes sociais e chegou em Tuane Elis Patricio e sua namorada, Ana Paula Borges. Ambas chegaram no parque por volta das 11h e encontraram os panfletos fixados na grama, espetados por palitos. O casal começou a recolher os papéis e logo em seguida recebeu o reforço de Alanna Testoni, que foi ao parque com a mesma motivação, após ser impactada pela denúncia no Instagram.
“Fui tirar no canteiro que divide as pistas de caminhada e bicicleta, e a Alanna se aproximou. Vi que atrás vinha uma senhora com crachá, perguntei se ela trabalhava no parque, ela informou que sim, questionei se era permitido colocar aquele tipo de material com palitos e papel, ela disse que pelo regulamento, não. Perguntamos se ela sabia do que se tratava, ela disse que não também, depois disse que achava que era um cara que sempre fazia isso. Ela seguiu e continuamos tirando”, relembra Tuane.
Mais à frente, o grupo avistou o posto onde dois trabalhadores do parque ficavam e, ao falar com eles, Tuane diz que recebeu respostas confusas. “Reproduzimos as mesmas perguntas e ambos se contradisseram. Primeiro os flyers já estavam quando chegaram para trabalhar, depois não estavam, e todas as respostas foram tentando se esvair da responsabilidade”, afirma a moça, que é bacharel em Direito.
Quando viu o carro da Polícia Militar que costuma ficar parado dentro do parque, Tuane não teve dúvidas do que deveria fazer: registrar um BO pelo crime de LGBTfobia, porém, para os oficiais que a atenderam, o procedimento não pareceu tão óbvio. Tuane e Allana contam que os PMs argumentaram que não sabiam como tipificar o crime, e resolveram chamar o sargento Luzani.
Rosane chegou junto com Luzani, e nas imagens gravadas por Tuane, vemos que o oficial diz a ela que é católico e se indispõe com a queixa, argumentando que os panfletos tão somente reproduzem versículos bíblicos e que a postura de Rosane, que estava exigindo o registro do BO, poderia ser lida como intolerância religiosa.
“Segundo ele, nós é que estávamos sendo intolerantes e preconceituosas. Mesmo após tentarmos mostrar que havia alterações nos trechos, que havia sido editado o texto, ele se manteve na mesma postura – foi quando vimos que ele não tinha intenção nenhuma de fazer valer o nosso direito. A Rosane, entendendo tudo, interveio informando que iríamos direto na Delegacia Civil”, diz Tuane.
O piquenique
Quando Tuane saiu do parque, já passava do meio-dia. Ela guardou os materiais recolhidos para prestar queixa posteriormente e foi almoçar. Na volta, diz ter sido interpelada por um funcionário do parque. “Foi neste momento que um funcionário do parque, dizendo que tinha recebido uma ligação do chefe, ordenou que fosse tirado tudo que era de LGBT. Foi exatamente a frase que ele usou”, relata.
Há um ano, a ONG promove os piqueniques no segundo sábado de cada mês, e Rosane costuma levar consigo uma bandeira LGBT+ de dez metros e outra menor, com a logo da organização. Desta vez, ela tinha também uma faixa que dizia “Jesus é amor e no amor cabe todas as cores”.
“Informamos que não iríamos tirar, pois se tratava de um espaço público e aberto, além do que, a ONG já havia realizado outros piqueniques e isso nunca aconteceu. Inclusive, próximo a nós, havia outro piquenique rolando com mesas e cadeiras e ninguém foi convidado a retirar nada”, fala Tuane.
Mais tarde, o grupo, que chegou a somar 130 pessoas naquela tarde, recebeu outra ordem para retirar os materiais do parque. “A funcionária veio conversar pedindo, novamente, que fosse tirado tudo que era de LGBT, pois havia recebido uma ligação do seu chefe dando essas ordens. Vale mencionar que lá no começo, perguntamos quem seria o responsável pelo parque para que fôssemos conversar sobre a situação e ela informou que ele estava de folga”, afirma a bacharel em Direito.
“Eu fui falar com essa senhorinha também, e ela disse: eu faria a mesma coisa que vocês estão fazendo, mas eu só vim fazer o que estou fazendo porque me mandaram fazer. Eu respondi: olha, a senhora vai dizer pro seu chefe que nós estamos muito bravas e que se o Secretário [de Turismo] quiser falar com a gente, ele que venha falar com a gente, porque isso não tem nem cabimento”, resgata Rosane.
Mesmo sob intimidação, o piquenique se estendeu ao longo da tarde e quem esteve presente diz que foi potente. “No fim, as mães conseguiram fazer um evento extremamente lindo e amoroso juntamente com o pastor. Foi a primeira vez que fomos e foi incrível ver a garra delas em defender nossos direitos que claramente são sempre violados em qualquer mera possibilidade que aparece”, comenta Tuane.
Posicionamento da Prefeitura
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No mesmo sábado, Allana disse que leu, no perfil do Instagram da Prefeitura de Blumenau, uma nota em que o órgão assegurava que havia mandado recolher os materiais “homofóbicos” do parque. Não localizamos a publicação, mas recebemos uma nota da assessoria de imprensa da Prefeitura que, de fato, faz essa alegação.
“O Parque Vila Germânica, responsável pela administração do Parque Ramiro, ficou sabendo de uma ação apócrifa (ou seja, uma manifestação sem assinatura ou autor definido) com teor homofóbico que ocorria no local e orientou para que esse material fosse recolhido, o que aconteceu prontamente”, diz o órgão.
Allana discorda. “É mentira, eles não mandaram recolher esse material. Fomos eu, Ana e Tuane que recolhemos, inclusive perguntei para aquela senhora [a funcionária do parque] por que ela não recolheu e ela só deu de ombros, não quis ajudar a recolher. Então, a Prefeitura acabou meio que tentando se sair bem ali, né, para dar um depoimento desse, que foi uma mentira”, rebate.
Perguntamos à advogada Juliana Bertholdi, especialista em Direito Público e em Direito Penal, se a Prefeitura do município poderia cercear o piquenique, e sua resposta foi incisiva: “Jamais. É livre a reunião de pessoas, direito fundamental garantido a todos e todas pela Constituição de 1988, no inciso XVI do artigo 5º.”
Também em nota, a Prefeitura informou que “todo e qualquer evento realizado em local público, incluindo o Parque Ramiro Ruediger, precisa ter autorização – especialmente se este evento tiver qualquer material de divulgação, como cartazes, faixas, banners e panfletos. A entidade que promoveu o evento deste sábado, dia 15, não procurou a administração para preencher o formulário necessário para a realização do referido evento”.
Na versão do órgão, apenas os materiais de divulgação do piquenique foram censurados, conflitando com o que dizem as testemunhas: Allana, Tuane e Rosane disseram ao Catarinas que os funcionários pediram para tirar “tudo de LGBT” de lá.
“A administração do Parque conversou com representantes de uma associação, que promovia um piquenique no local, para que retirasse uma faixa que está sendo usada, já que não havia autorização para isso. Reiteramos também que, em nenhum momento, proibimos o referido evento de ser realizado, só orientamos que, sem autorização, não é permitido uso de faixas, cartazes, banners e outros materiais de divulgação”, informa a nota da Prefeitura.
Na última segunda (17), Rosane registrou um BO na 1ª Delegacia da Polícia Civil de Blumenau pelo crime de homofobia e solicitou acesso às imagens do parque, a fim de identificar a autoria do crime. Até o momento, ela não foi respondida. O Catarinas entrou em contato com a Prefeitura, a Polícia Civil e a Polícia Militar de Blumenau perguntando sobre as imagens e também não obteve resposta.
No mesmo dia, Rosane esteve na Corregedoria da PM para denunciar o sargento Luzani. “Foi aberto um inquérito administrativo e criminal contra esse policial militar. Eu levei as provas, os vídeos, as fotos e já tomaram meu depoimento inicial”.
A presidente da ONG acrescenta que a perseguição do município às Mães do Amor não é novidade. Como exemplo, ela cita as parcerias que realizava com o Centro Especializado em Diagnóstico, Assistência e Prevenção (Cedap), e que teriam sido proibidas.
“O Cedap é da Vigilância Sanitária e está no chapéu do SUS. Eles atuam com as populações jovens, periféricas e de rua, fazendo distribuição de preservativos e autoteste de HIV, por exemplo. Eles sempre foram nossos parceiros, distribuindo kits nos piqueniques, e a gente abria a roda pra eles falarem sobre esse trabalho. No mês passado o prefeito proibiu esse serviço do SUS de estar nos piqueniques e de colocar o nome Cedap no material de divulgação da ONG”, afirma.
Questionamos a Prefeitura sobre a proibição e também não fomos respondidas.
Injúria LGBTfóbica
Em sua análise, a advogada Juliana Bertholdi aponta que “a redação da Bíblia, em suas traduções mais tradicionais, sequer elenca os ‘homossexuais’ (como diz o panfleto) no versículo trazido (Cor 6:9-11). Ou seja: há uma adulteração proposital que indica o desejo dos autores de ofender a este grupo.”
No entanto, ela observa que a análise técnico-criminal é complexa. “O crime de LGBTfobia advém de uma equiparação pelo judiciário com o crime de racismo – ou seja, podemos emprestar deste as mesmas exigências técnicas de que o crime de homotransfobia praticado, em tese, atinja uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade daquele grupo”, descreve.
“O panfleto, analisado isoladamente, aplica a pecha de ‘pecadores’ e ‘não filhos de Deus’ a este grupo, o que representa um espaço complexo de análise, uma vez que as ofensas estão diretamente ligadas a algo subjetivo, que é a adesão a religiões cristãs”, explica a advogada. “Este dado é importante pois, em tese, serão diretamente ofendidos pela mensagem aqueles que praticam tais religiões e a quem tal pecha é ofensiva – a muitos e muitas, a pecha de pecador nada significa. Dito isso, entendo que a aplicabilidade da LGBTfobia pode ser debatida”, complementa.
A injúria LGBTfóbica, por outro lado, “parece inquestionável” para a especialista. “Qualquer membro da comunidade que exerça a fé cristã, como aqueles que estavam no piquenique, e a quem a atribuição de ‘pecador’ ou ‘filhe do diabo’ ressoe em sua honra subjetiva possui o direito de representar por este delito. Lembrando que com as edições legais recentes, a injúria racial e LGBTfóbica também não prescreve e possui penas similares ao crime de racismo/LGBTfobia.”
Sindicância
Após a publicação da reportagem*, a PMSC enviou uma nota para a reportagem informando que abriu uma Sindicância para apurar os fatos. Leia a nota na íntegra:
“No dia 15/07/2023 a Gu PM do 10º BPM embarcada na Vtr 6401 foi abordada por uma senhora que se identificou como uma das dirigentes da Organização não Governamental denominada ‘Mães do Amor em defesa da diversidade – ONG criada para acolher mães, pais e famílias da comunidade LGBTQIA+’, a qual alegou ter sofrido tratamento homofóbico.
Questionada sobre a autoria do crime, a referida senhora apresentou panfletos que estavam distribuídos pelo Parque Ramiro Ruediger, os quais continham versículos bíblicos e cuja autoria era desconhecida. A Gu PM explicou que, por se tratar de documento apócrifo e que continha apenas citações bíblicas, não seria possível a tipificação pelo crime de ‘homofobia’.
A senhora deixou o local sem manifestar interesse em registrar formalmente o fato, alegando que registraria posteriormente, na Delegacia. Diante dos fatos, a Gu PM lavrou o Boletim de Ocorrência protocolo nº 8571662.
No intuito de apurar e esclarecer os fatos ocorridos no dia em referência – sábado – o 10º BPM instaurou uma Sindicância.”
*Atualização realizada no dia 21/07/2023 às 15h30.