Por Soledad González².

Tradução: Izabel Belloc³.

Uma coisa são as coletividades políticas e outra são os indivíduos que fazem política. Se bem as coletividades políticas subscrevem uma ideologia, têm estruturas, regras organizativas e direções, dentro delas, as e os militantes têm, além disso, uma identidade de gênero. E esse gênero localiza em um lugar muito distinto, na estrutura de poder interna, aos companheiros e companheiras.

Na esquerda clássica sempre se propõe a luta contra o capitalismo como a principal, com a convicção que as demais opressões desaparecerão no dia que a desigualdade de classe caia. Para alguns feminismos isso não é possível: o sistema patriarcal é muito anterior ao capitalismo.

Como demonstra Rita Segato, o patriarcado é a ordem fundante da desigualdade, é o primeiro sistema de desigualdade que se desenvolve na humanidade.

É um fato e sabemos há tempos: as classes sociais estão atravessadas por outras opressões, entre as que o gênero e a raça se encontram entre as mais relevantes. Isso faz com que as pessoas negras, as mulheres, as pessoas LGBTI sofram múltiplas opressões. No entanto, não se considera que estas estruturas de poder sejam tão relevantes como a questão de classe, o que retira tempo e recursos para combatê-las com determinação. Isto acontece porque, em tese, quando o capitalismo cair, estas pessoas também serão beneficiadas pela nova ordem social.

O certo é que quem detém o poder da esquerda neste país4 são homens brancos heterossexuais. Estão muito empenhados em alcançar a justiça social, sempre que sejam eles os destituidores e repartidores do poder, assim como os futuros ocupantes dos lugares de poder.

Para enfrentar o capitalismo se pode ser mulher, trans, lésbica ou negro, mas os homens brancos da esquerda não têm nenhuma intenção de ceder o protagonismo.

É mais: parece impossível movê-los, mesmo um pouquinho, de sua história, a dos políticos que há um século fundamentavam contra o voto feminino “porque as mulheres iam votar o que os padres (de direita) lhes dissessem” e não iam contribuir com a luta por um governo obreiro.

Agora que o movimento feminista conta com uma adesão massiva, partidos e organizações começam a se interessar por se definir como feministas. Mas seus atos demonstram que preferem perder as eleições contra partidos de direita a perder poder para as feministas.

É impossível ler de outra maneira: essa é a situação em que se encontra a esquerda política e social uruguaya5.

Em 22 de dezembro, o PIT-CNT6 decidiu que no 8 de março de 2022, Dia Internacional das Mulheres, a greve geral será de homens e mulheres, e não só de mulheres como reivindicamos desde 2017. No dia 2 de março passado, a Intersocial Feminista lançou um comunicado público exortando à Mesa Representativa a votar a greve de mulheres de 24 horas. Nessa oportunidade, se escusaram de votar por “falta de tempo”.

Esta opção pelo conservadorismo não só é uma questão de protagonismos na política: é uma questão de ideias, de futuro, de utopias. Ceder poder ante as mulheres, ante a diversidade, ante as pessoas negras não é uma questão biológica: é uma questão ideológica.

Quem tem, hoje, na esquerda, uma ideia de mundo possível, vivível e justo, são o feminismo e o ecologismo, são as mulheres e os jovens que defendem a terra. Assim há demonstrado nestes dias o processo chileno: não será hora de mirar-nos nesse espelho?

Os feminismos incluem quem realmente questiona a realidade do sistema, sendo as feministas as que lutam por desarmar toda a trama das formas de produção e consumo que, em muito pouco tempo, nos colocarão em meio a uma crise ecológica que abrirá as portas a uma mudança radical nas relações de poder. Espero que, quando isso aconteça, nos encontre à altura das circunstâncias. Por hora, tudo é fictício como a neve das árvores de Natal.

Notas

1.Publicado originalmente em 27/12/2021, em Sudestada Periodismo y Transparencia, sítio web de notícias do Uruguay dedicado à pesquisa jornalística; disponível em https://www.sudestada.com.uy/articleId__699e62fd-9e37-46d3-a248-4ad55224c6f1/10893/Detalle-de-Noticia.

2.Politóloga e feminista uruguaya, integrante do Intersocial Feminista, no Uruguay.

3.Cidadã brasileira e uruguaya, advogada, servidora pública, mestra em Género y Políticas de Igualdad (FLACSO Uruguay) e doutoranda do Doctorado en Ciencias Sociales (FLACSO Argentina).

4.Nota da tradução: a autora se refere ao Uruguay, mas sua afirmação bem pode ser aplicada a muitos outros países, incluídos os latino-americanos, entre eles o Brasil.

5.Nota da tradução: mais uma vez a autora se refere a seu país e sua afirmação volta a ser aplićvel a muitos outros países, como o Brasil; vide, por exemplo, a baixíssima adesão e as críticas da esquerda ao movimento #EleNão, em 2018; ou o frequente uso pejorativo de “identitário” para se referir aos movimentos negro, feminista, LGBTQIA+, sugerindo que tais movimentos e suas demandas “dividem a luta”.

6.Nota da tradução: o Plenário Intersindical de Trabajadores – Convención Nacional de Trabajadores – PIT-CNT é a central sindical única do Uruguay.

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