Como qualquer retrospectiva, esta não dará conta de capturar todos os fatos ocorridos em um ano. Optei pelas informações apresentadas abaixo por sua utilidade feminista – ou seja, pela oportunidade que nos dão de imaginar um 2024 mais igualitário. Chegou o Natal, e se o aniversário é de Jesus, quem ganha o presente é você. Vamos juntas nesse adeus ano velho/feliz ano novo para que mais justiça se realize no ano que vai nascer? 

As imagens da subida de Lula na rampa do Planalto inauguraram 2023 em estilo, e entram para a História do Brasil. No dia 1º de janeiro, em rota para receber a faixa presidencial pela terceira vez, ele teve a companhia inédita de personalidades da ampla diversidade Brasileira, com destaque para o lendário Cacique Raoni. Depois de seis anos de angústia democrática, renovamos as expectativas sobre o aprimoramento do Estado de Direito, e a posse alegrou o País – mas, como veremos ainda nesta retrospectiva, a alegoria da representatividade não durou o ano todo. 

Retrospectiva_2023_Lula
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil (link)

Depois de meses de alívio com a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas, e uma mera semana de regozijo com a posse de um novo governo aparentando maior habilidade para inclusão, o 8 de janeiro ficará na memória de quem lembra exatamente onde estava e o que fazia ao saber das notícias do dia. Nenhuma retrospectiva pode apagar os ataques e depredação do patrimônio público em Brasília, por extremistas bolsonaristas, que invadiram prédios da Praça dos Três Poderes no afã de instigar um golpe contra o governo Lula e restabelecer Jair Bolsonaro como presidente. Ainda em fevereiro (13) a Advocacia Geral da União pediu à Justiça Federal do DF que 54 pessoas, três empresas, uma associação e um sindicato fossem condenados a ressarcir os cofres públicos. Uma Comissão Parlamentar Mista de Investigação (CPMI) dos Atos Antidemocráticos foi instaurada em abril (26) e concluída em outubro (18), com a aprovação do relatório da Senadora Eliziane Gama, e culminou no indiciamento de 61 pessoas, incluindo o ex-presidente.  

Em outro registro, quem também deu o que falar em 2023 foram as divas pop. A brasileira Anitta segue em ascensão internacional, mas o lançamento de BRZP Music Sessions #53, da Shakira, em 11 de janeiro, causou ondas de choque na indústria cultural, dominando tanto as paradas de sucesso como o debate público sobre traição. “As mulheres já não choram, as mulheres faturam”, diz o verso mais famoso desta canção, que inverteu a percepção pública ao substituir o costumeiro dó e vergonha da traída com exposição debochada do mau caratismo dos traidores. Na ácida letra da melodia chiclete, a colombiana demarca que lobas não são para novatos, e que se são feridas por eles, a experiência não as quebra, mas as deixa mais duras. Aúúú. 

Depois de quase seis anos correndo não com lobos, mas como líder da Nova Zelândia, a feminista e ex-primeira-ministra Jacinda Ardern renunciou ao cargo, em 19 de janeiro, alegando estar exausta. Ardern foi eleita aos 37, quebrou paradigmas levando (e amamentando) a filha no trabalho, e fez uma gestão exemplar durante a pandemia de Covid-19. Em seu lugar entrou Chris Hipkins, do Partido dos Trabalhadores, e, na sequência, foi eleito Christopher Luxon, conservador de centro-direita, cujo nome e semblante lembram o mais famoso vilão do Super-Homem.  

Retrospectiva_2023_Joanna_Burigo_lista_eventos_de_guerra_e_paz_diversidade_e_influência_inteligência_e_artifício
À Esquerda, Jacinda Ardern (link); à direita, Christopher Luxon (link). Wikimedia Commons.

Ainda sobre vilões, no dia 20 de janeiro o jogador brasileiro de futebol Daniel Alves foi detido em Barcelona por estupro. Uma mulher de 23 anos denunciou o abuso ocorrido em uma casa noturna, e em novembro o Ministério Público da Espanha pediu que Alves seja condenado a nove anos de prisão. Chamaram atenção a velocidade e discrição com que funcionários do estabelecimento e a polícia agiram, graças a um protocolo aplicado pelo governo da Catalunha, que foi estabelecido durante a gestão da prefeita Ada Colau, e que prioriza o atendimento e as palavras das vítimas. Em 1º de agosto, a Câmara Federal dos Deputados do Brasil aprovou o Projeto de Lei 3/23, apelidado de “PL Não é Não”, inspirado no protocolo espanhol. A iniciativa foi proposta por parlamentares feministas como Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Maria do Rosário (PT-RS), e visa combater e prevenir violência contra mulheres.

Uma mulher inspiradora cuja passagem se deu este ano foi a icônica Glória Maria, no dia 02 de fevereiro. A repórter e âncora foi a primeira a apresentar reportagens ao vivo e a cores na televisão brasileira, e se tornou um símbolo do jornalismo nacional com suas matérias extraordinárias e entrevistas com personalidades badaladas no mundo todo. Seu legado icônico não tem paralelo, e felizes fomos nós por termos sido suas contemporâneas. Descanse em eterna glória, Gloriosa!

Retrospectiva_2023_Gloria_Maria
Glória Maria. Creative Commons. (link)

Depois do hiato de dois anos causado pela pandemia de Covid-19, em 18 de fevereiro teve carnaval. A campanha de vacinação no Brasil iniciou em janeiro de 2021. No começo de 2023, especialistas apontavam para a grande probabilidade de aumento nas infecções e óbitos. Um levantamento realizado pela rede de saúde privada Dasa apontou, no final de fevereiro, que na semana da maior festa popular do planeta os índices de positividade tiveram alta de 20,2% em comparação à semana anterior (UOL)

No frio do leste europeu, 24 de fevereiro marcou o primeiro aniversário d​a guerra na Ucrânia, que matou milhares, fez milhões de refugiados, transformou cidades em escombros, alimentou temores de uma guerra nuclear – e ainda não acabou. No discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU em Nova York, em 18 de setembro, o presidente Lula afirmou que esta guerra escancara a incapacidade dos países que fazem parte da Organização das Nações Unidas de alcançar a paz. 

Aos 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, o Governo Federal apresentou um pacote de ações para assegurar a igualdade de gênero no Brasil. A Ministra das Mulheres Cida Gonçalves participou do anúncio, feito no Palácio do Planalto, em que propôs um pacto social contra a misoginia. “Desprezo e ódio às mulheres não podem ser naturalizados”, ela disse. O pacote é composto por medidas em prol da equidade salarial, dignidade menstrual, segurança, cotas para vítimas de violência de gênero, trabalho e transporte sem assédio, equidade no SUS, creches, formação profissional, e financiamento esportivo, nas artes, ciência e pesquisa. No evento também foi anunciada a instituição do 14 de março como Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça. A investigação do assassinato de Marielle Franco segue, e em outubro passou a tramitar no Superior Tribunal de Justiça (UOL). 

Em 10 de março uma operação conjunta entre Polícia Federal, Ministério Público do Trabalho e Gerência Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul resgatou 56 trabalhadores em condições análogas à escravização em duas colheitas de arroz no interior de Uruguaiana. Em 27 de fevereiro mais de 200 trabalhadores já haviam sido resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, em condições degradantes, durante a colheita da uva. Em 7 de julho nove trabalhadores praticamente escravizados foram também encontrados em um local de extração florestal em Triunfo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Uma reportagem do Sul21 de setembro revela que apesar dos últimos oito anos de congelamento salarial para servidores públicos, os incentivos fiscais para a iniciativa privada aumentaram 71,6% no RS – e uma fatia dos R$84 bilhões distribuídos foi para empresas que já estavam sendo investigadas por sua relação com trabalho escravo…

No dia 27 de março quatro professoras e um aluno foram esfaqueados na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo. O agressor, um aluno de 13 anos, foi desarmado por professoras e posteriormente apreendido por policiais. Menos de dez dias depois, em 5 de abril, um homem de 25 anos atacou a golpes de machado a Creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC), matando quatro pessoas e deixando cinco feridas. Ele mesmo se entregou à polícia. Em 23 de outubro um adolescente de 16 anos entrou armado e disparou contra outros estudantes da Escola Estadual Sapopemba, em São Paulo, deixando uma morta e três feridos. Ele foi encaminhado para a Vara da Infância e da Juventude. A pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, Michele Prado, atribui os acontecimentos à radicalização online que vem direcionando homens jovens ao extremismo, mas adverte que esta não é a única explicação para o fenômeno. Um aspecto destes eventos violentos, que há anos venho salientando não poder passar despercebido, é que quase 100% dos seus perpetradores são homens e adolescentes cis.

Em 15 de abril, combates entre as Forças Armadas e as Forças de Apoio Rápido eclodiram no Sudão. “A resposta internacional e humanitária à guerra no Sudão tem sido praticamente inexistente, ao contrário do que acontece na Ucrânia”, disse a professora da Universidade de Toronto Nisrin Elamin para a BBC em julho. Desde então o noticiário sobre guerras foi tomado por narrativas sobre Israel e Palestina. Existem hoje em curso sete conflitos que causaram pelo menos 10.000 mortes anuais em batalhas entre grupos identificados – além dos já mencionados Sudão, Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, há guerras grandes acontecendo em Myanmar, Maghreb, México (tráfico de drogas) e Etiópia. 

Em 09 de maio quem nos deixou foi Rita Lee, e alguns veículos das mídias tradicionais e sociais a louvaram como “inspiração para mulheres” e “ícone feminino”. Marcá-la como tal é insistir na divisão binária de gênero — a mesma que trata mulheres e o feminino como segunda categoria. Quando morrem grandes homens, os marcamos como ícones da humanidade — não do masculino. Isso está tão subentendido que a sociedade chega a se ofender caso alguma mulher ouse apontar quando e como o sujeito foi machista.

A feminilidade da Rita Lee é icônica por ser, como ela, autêntica, e por existir em confronto com ações e linguagens que enfatizam a hegemonia da masculinidade. Rita Lee é um ícone, uma pessoa incomum, que não queria luxo nem lixo e sonhava ser imortal.

Ouvindo seu repertório nos dias que seguiram sua passagem, pensei bastante sobre o verso “Se Deus quiser/Um dia eu quero ser índio/Viver pelado pintado de verde/Num eterno domingo/Ser um bicho-preguiça/Espantar turista/E tomar banho de sol”. Não me sinto capacitada para fazer a crítica, mas acho que uma não deve tardar…

Retrospectiva_2023_Rita_Lee
Rita Lee. Alexandre Cardoso. Link

Embora sejam tratados como sendo a mesma coisa, o PL 490/2007 e o Marco Temporal são instrumentos distintos. Em 24 de maio foi aprovado um requerimento acerca do regime de urgência para a apreciação do Projeto de Lei 490/2007, que restringe a demarcação de terras indígenas às ocupadas por povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Na terça-feira, 30 de maio, o Congresso Nacional aprovou este PL, com 283 votos a favor e 155 contra. O Marco Temporal das terras indígenas é uma tese jurídica construída no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, para a qual o artigo da Constituição que garante o usufruto das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros deveria ser interpretado considerando somente as terras em posse deles em 5 de outubro de 1988. Em 21 de setembro, em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a tese do Marco Temporal foi rejeitada por 9 votos a 2. Aos 20 de outubro, o presidente Lula vetou parcialmente o PL 490/2007. No dia 14 de dezembro, o Congresso Nacional derrubou estes vetos, restabelecendo certa legitimidade por parte do legislativo em relação ao tema, considerado inconstitucional pelo executivo e pelo judiciário. Entraremos em 2024 sem definição ou segurança jurídica sobre um assunto que divide os três poderes, enquanto nos preparamos para os próximos embates deste temporal de perversidade contra a humanidade

Imagem: Bancada Feminista PSOL.

No dia 01 de junho o advogado Cristiano Zanin foi nomeado para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Lula. Aprovado pelo Senado, Zanin tomou posse em 03 de agosto, ocupando a vaga que havia sido de Ricardo Lewandowski. A aposentadoria da Ministra Rosa Weber, iniciada em 30 de setembro, suscitou uma campanha internacional pela nomeação de uma ministra negra para a Suprema Corte – e sobre isso falaremos mais abaixo. 

Foi lançado no dia 12 de junho um relatório do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD) sobre o Índice de Normas Sociais de Gênero (do inglês Gender Social Norms Index – GSNI), que reflete os dados mais recentes da Pesquisa Mundial de Valores. Com o subtítulo Quebrando preconceitos de gênero: mudando as normas sociais em direção à igualdade de gênero, o estudo revela que no mundo todo, em uma década, não houve melhoria no que diz respeito ao apego a crenças em normas sociais detrimentais para mulheres. O tratamento social e político conferido às mulheres na sociedade atravessa todos os seus níveis, e influencia diretamente o contexto social e político na direção de mais paz e prosperidade. O relatório ainda aponta que desafiar normas opressivas é uma escolha que podemos e devemos fazer todos os dias, e o PNUD propõe dois blocos de ação sensíveis a questões de gênero: um visando moldar intervenções e políticas públicas e corporativas, e outro concentrado na educação especializada. Saiba mais.

Aos 30 de junho, o Tribunal Superior Eleitoral condenou Jair Bolsonaro pela realização de uma reunião com embaixadores estrangeiros, no Palácio da Alvorada, na qual difamou sem provas o sistema eleitoral brasileiro. O TSE também o declarou inelegível por oito anos.

O ministro Alexandre de Moraes disse que Bolsonaro espalhou mentiras ao longo do processo eleitoral visando instigar a população contra o sistema de votação e a Justiça Eleitoral. O julgamento começou em 22 de junho, e foram 2 votos a favor e 5 contra o ex-presidente. 

Em 4 de julho o Planeta Terra teve o dia mais quente da história registrada. Medições começaram em 1979, e o recorde foi batido mais de uma vez desde então, fazendo de 2023 oficialmente o ano mais quente. E cientistas afirmam que as temperaturas continuarão subindo. A Organização Meteorológica Mundial, agência das Nações Unidas, reiterou o alerta na COP28 dizendo que as condições extremas vividas este ano deixam “um rastro de devastação e desespero” (CBS).

Seis Deputadas Federais tiveram seus mandatos ameaçados e investigados pelo Conselho de Ética por conta da atuação política que tiveram durante a votação do PL 490/2007. As parlamentares foram acusadas de quebra de decoro ao protestarem contra o marco temporal. Os pedidos de cassação foram feitos pelo Partido Liberal. Para pressionar o Conselho de Ética e apoiar as deputadas, a Frente Parlamentar Feminista Antirracista Com Participação Popular no Congresso Nacional lançou em 04 de julho a Campanha #ElasFicam, Contra a Violência Política de Gênero e Raça no Brasil. Todos os processos foram arquivados. Vitória feminista!

Retrospectiva_2023_Elas_Ficam
Da esquerda para a direita, as parlamentares investigadas: Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Erika Kokay (PT-DF), Taliria Petrone (PSOL-RJ), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Juliana Cardoso (PT-SP), Célia Xakriabá (PSOL-MG). Arte: elasficam.org 

Aos 20 de julho foi lançado mundialmente o longa-metragem Barbie, que colocou Greta Gerwig na história como a primeira diretora solo a faturar mais de US$1 bilhão em bilheteria. Com elenco estrelado e diverso – e uma história que inverte a ordem patriarcal, contando com uma suprema corte 100% feminina, nenhum trabalho reprodutivo, e a subversão da criação no cristianismo – o filme ultrapassou os US$1.4 bilhões, ficou em primeiro lugar na venda de ingressos do ano, e também recebeu o maior número de indicações para os Globo de Ouro (oito) e Critics Choice Awards (18). Já sinto o cheirinho de fogo no Patriarcado nos Oscar 2024. Escrevi sobre este produto cultural e fenômeno de mídia tão pujantemente centrado em gênero, poder e imagem para o Catarinas, demonstrando como esse mastodonte da sensibilidade Camp no cinema mostra o patriarcado e sua urgente destruição através de lentes cor-de-rosa, deixando bem claro porque devemos seguir o caminho feminista. Aproveite a pausa de final de ano para assistir a essa comédia inteligente. É um filmaço! Saiba mais.

Retrospectiva_2023_Barbie
Margot Robbie como Barbie nesta captura de tela de cena do filme homônimo. Warner Bros. 2022.

Em  agosto foi lançado o site da campanha Ministra Negra no STF, coordenada por  múltiplas organizações dos movimentos negros, pedindo ao Presidente Lula para nomear uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal. Nos seus 215 anos de existência a Corte teve 165 ministros homens brancos, 3 ministros homens negros, e 3 ministras mulheres brancas. Mulheres negras são a maioria da população brasileira: o percentual de mulheres (51,1%) é superior ao de homens (48,9%), e o de pessoas negras (56%) superior ao de brancas (42,8%). Esta demanda justa e democrática causou debates acalorados entre a sociedade civil, mas não atingiu seu objetivo, e em 27 de novembro Flávio Dino – Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil no primeiro ano do terceiro mandato de Lula – foi nomeado pelo presidente para ser o 172º ministro do Supremo. Sua indicação foi aprovada pelo Senado em 13 de dezembro, e a posse em cerimônia na Corte deve acontecer em 22 de fevereiro de 2024. Carmen Lúcia, a única ministra mulher da composição atual do STF, disse que a chegada de Dino “honra o Poder Judiciário e o Brasil. É um homem com notável saber jurídico e que dispõe de comprovada dedicação à causa pública.” (STF)

Entre 20 de julho e 20 de agosto aconteceu a nona edição da Copa do Mundo Fifa de Futebol de mulheres, sediada pela Austrália e a Nova Zelândia, com grande sucesso de público –  o torneio gerou receitas de US$570 milhões e rendeu 84,1% de ocupação nos estádios (SportInsider). Ainda assim, esta Copa ficará manchada pela ação machista de um homem cis branco, que melou a celebração final com importunação sexual: o então presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, em plena comemoração da vitória de sua Seleção no campeonato, beijou a atacante Jenni Hermoso sem seu consentimento. O Ministério Público Espanhol abriu uma investigação contra Rubiales por suposto crime de agressão sexual, e ele acabou sendo suspenso pela Fifa. Saiba mais aqui

No dia 6 de setembro a Suprema Corte do México descriminalizou o aborto em todo o território federal, concluindo que a atual proibição do procedimento é inconstitucional por violar os direitos de mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar. A legislação de direitos reprodutivos difere entre os países da América Latina. Na Argentina hoje o procedimento está descriminalizado durante as primeiras 14 semanas de gestação, por aprovação do senado em 30 de dezembro de 2020, e este direito periga ser revogado durante a gestão do ultradireitista Javier Milei, eleito em 19 de novembro. No Brasil o procedimento continua legalizado em casos de estupro, risco de vida para gestante e feto, e anencefalia, embora o acesso seja restrito. 

Retrospectiva_2023_aborto_legal_America_Latina
Mapa do aborto na América Latina: o aborto é permitido sem restrições em Cuba, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa. Fernando Bertolo/Brasil de Fato. Link

No dia 6 de outubro a ativista iraniana por direitos humanos Narges Mohammadi recebeu o Nobel da Paz por sua luta contra a opressão das mulheres e promoção de direitos e liberdade. Em seu perfil no Instagram na terça-feira 19 de dezembro – dia que redijo estas notas – a ativista informou que não vai comparecer no novo julgamento do seu caso por se recusar a “conceder credibilidade ou autoridade a juízes leais aos serviços secretos e a tribunais que organizam julgamentos falsos”. O tribunal é o mesmo que determinou a execução de jovens iranianos que lutavam contra a opressão das mulheres. Em setembro de 2022 a jovem Mahsa Amini foi detida pela Polícia da Moralidade no Teerã, acusada de infringir o código de vestimenta. A violência policial a levou a um coma, e ela faleceu três dias depois. O caso emblemático capturou a revolta anti-machista no país, engendrando protestos contra leis compulsórias e falta de direitos. A luta das iranianas continua. 

Retrospectiva_2023_Joanna_Burigo_lista_eventos_de_guerra_e_paz_diversidade_e_influência_inteligência_e_artifício_
A vencedora do Nobel da Paz de 2023 Narges Mohammadi. Wikipédia. Link.

Entre 7 e 19 de novembro o Brasil experienciou efeitos devastadores da crise climática: uma onda de calor tomou conta das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, enquanto as chuvas inundavam a região Sul e a seca assombrava a região Norte. O termo “onda de calor” é usado quando a temperatura fica cinco graus Celsius acima da média por um período entre três e cinco dias. Uma consequência que comoveu o País foi a morte de Ana Clara Benevides, no dia 17 de novembro, quando a estudante sofreu uma parada cardiorrespiratória durante um show da turnê The Eras Tour, da cantora estadunidense Taylor Swift, realizado no Rio de Janeiro.

No dia 21 de novembro a Gênero e Número, em parceria com o Instituto Avon e o Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) do Senado Federal, lançou a versão atualizada do Mapa Nacional da Violência de Gênero originalmente feita em 2019. A plataforma reúne os principais dados públicos e indicadores de violência contra as mulheres. Confira e faça bom uso deste importante recurso. 

A COP28 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023) foi realizada entre 30 de novembro e 12 de dezembro em Dubai, Emirados Árabes Unidos. As ministras Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, e Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, assumiram a chefia da Delegação Brasileira, celebrando o protagonismo das mulheres da floresta no debate climático. Somente o tempo dirá se este evento surtirá efeitos positivos e concretos do afã de mudança presente desde a Rio-92, ou se tudo não passa de muita conversa e pouca ação de um “feirão ECO-nômico”.

Retrospectiva_2023_Lula_Sonia_Marina
Marina Silva, Lula, Sônia Guajajara. Imagem: Rede Brasil Atual. Link

Em 30 de novembro o ChatGPT (OpenAI) completou um ano desde seu lançamento público e gratuito, que revolucionou os usos da inteligência artificial. Algumas das polêmicas instauradas pela existência do chatbot são sobre veracidade das informações, plágio e origem do conteúdo disponibilizado, e direitos autorais por material produzido. Estas questões ainda não estão resolvidas, e os debates seguem fervendo. O que posso dizer como comunicadora feminista é que mais vale compreendermos os usos desta ferramenta do que nos recusarmos a interagir com esta forma de produção de linguagem. Em entrevista para o jornal O Globo de 11 de dezembro a filósofa italiana Silvia Federici nos convoca a pensar em uma crítica feminista da IA, que não perca de vista a exploração do trabalho reprodutivo tradicionalmente realizado por mulheres em troca de pouco ou nada, e que contemple ecologia, liberdade, e o potencial destas tecnologias para fomentar a alienação humana. 

No dia 17 de dezembro o programa Fantástico, da TV Globo, fez uma denúncia acerca dos jogos de azar da plataforma Blaze. A apuração para a reportagem teve início depois que alguns apostadores relataram não receber seus prêmios. A plataforma se utilizou de influencers como estratégia de promoção, e grandes nomes das redes sociais, que já fizeram publicidade para marca em seus perfis, também estão sendo investigados. 

No começo de dezembro fiz um curso de Escrita Eficiente e Ética com Ferramentas de Inteligência Artificial ministrado pela Dra. Rebeca Scalco, com quem ao longo dos últimos anos venho também trocando figurinhas sobre a indignação em comum que temos com o sucesso de retórica pseudo-científica, oportunista e charlatã empregada por muitas personalidades forjadas nas redes sociais. 

Assim, para finalizar esta retrospectiva embalada nas comemorações do aniversário de Jesus, juntei cultura influencer com ChatGPT e uma referência bíblica, pedindo ao chatbot que me informasse em quais trechos do livro aparece a exposição que Cristo fez dos “vendilhões do templo” – que é como eu e Rebeca também nos referimos à cultura influencer. (Aprendi que o evento é descrito nos Evangelhos do Novo Testamento, especificamente em Mateus 21:12-13, Marcos 11:15-17, Lucas 19:45-46, e João 2:13-17. Pode conferir.)

Nossa forma de discernir pilantras de gente comprometida, seguindo o exemplo do filho e cordeiro de Deus, é pela observação da adequação de linguagem ao local onde ela rende dividendos, discernindo entre o que é substância e o que é puro artifício. Eu sou comunicadora profissional, e Rebeca, por ter sido pentecostal por muitos anos, crê ter lugar de fala para empregar a metáfora da “língua dos anjos” aplicada à retórica falaciosa que engendra muita picaretagem nas redes sociais.

Ela fica tão furiosa quando vê coaches falando coisas como “jejum de dopamina” (uma completa falácia sob a perspectiva neurocientífica, já que não há e jamais haverá depleção total de dopamina em um ser vivo), quanto eu quando me deparo com performances de intelectualidade discorrendo sobre gênero a partir de interpretações rasas de textos anteriores aos anos 1950, que desconsideram o robusto cânone desta área do conhecimento humano que, apesar de bastante recente, é multidisciplinar e abrangente. Em áudio cômico enviado para mim enquanto discorríamos sobre nossa insatisfação conjunta com as balelas que a cultura influencer engendra, Rebeca condensou a paródia, aglutinando deboche:

“deixe que o jejum de dopamina decolonial retrógrado que está te empurrando para o fracasso se aposse da intermitência da substância afetiva do seu hipocampo ascendente”. É para rir mesmo. 

Em janeiro de 2022 escrevi uma coluna para o Catarinas perguntando: Até quando vamos fingir que a cultura influencer não é detrimental?. Ainda não tenho respostas, mas tenho para mim que o influencer é o sujeito que se coloca como canvas para que marcas se promovam, nem que para isso tenha que falar “labaxúrias” que sequer entendem, sobre qualquer que seja o tema a partir do qual decidem se destacar nas redes. Que em 2024 essa picaretagem seja cada vez mais exposta, para exercermos discernimento e não sermos vítimas de empresas e pessoas sem escrúpulos, interessadas não no amplo acesso ao conhecimento, justiça social, ou o profano/sagrado, e sim em extorquir e faturar em cima da ignorância e boa-fé de incautos. 

Desejo a todes um feliz, próspero, justo e honesto ano novo!

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

Últimas