Um dos mais comuns erros de natureza histórica está em identificar as origens do lawfare (ou, grosso modo, o uso do direito como arma de guerra contra inimigos políticos), seja a partir das análises estadunidenses, em textos chineses publicados no final dos anos 90, ou mesmo em literaturas mais remotas, como na obra Mare Liberum, de Hugo Grotius, no início do século XVII.

Em verdade, há milênios a utilização de sistemas de regras de conduta (ainda que rudimentares) para os fins de legitimar a eliminação de adversários da cena política é conhecido. E, de um modo muito melhor aprimorado, há vários séculos o mundo ocidental sustenta-se em estruturas normativas (particularmente de caráter penal, processual penal e disciplinar) que servem para o mesmo fim.

Não é necessário grande esforço para que nos venha à mente que, por exemplo, o Malleus Maleficarum (ou Martelo das Feiticeiras) foi uma das mais completas obras já escritas com o objetivo de perseguir os inimigos e as inimigas dos detentores do poder.

Falar deste tipo de poder não carrega, em minha perspectiva, nada de religioso, pois mobilizar a fé como instrumento de controle é mais que tudo uma ação política. Entretanto, reconheço que mencionar a inquisição e suas fogueiras é sempre um risco, pois não faltará quem, ao ler esta passagem, busque jogar no lugar comum dos filmes de Hollywood séculos de perseguição, tortura e morte – diga-se, não somente às ditas feiticeiras – todo e qualquer texto assinado por uma feminista. Particularmente, em tratando-se do tema lawfare, posto em uma mesa de debates para a qual até o momento não fomos convidadas enquanto tais, isto é, como juristas feministas.

Enfim… Sigamos e falemos sobre inimigas políticas.

Nem bruxa, nem santa, em meados do século XV, Joana D’Arc ousou defender seu território e, para tanto, vestiu uma armadura, empunhou sua espada e liderou contingentes de soldados franceses. Sua atuação foi decisiva para por fim a um conflito geopolítico até os dias de hoje conhecido como a Guerra dos Cem Anos.

Capturada por borgonheses em uma batalha, vendida aos ingleses por uma fortuna, abandonada à própria sorte pelo rei francês que lutou para coroar, presa e interrogada Joana venceu todos os argumentos acusatórios de seus julgadores. 

Mas, inimiga de guerra, foi levada à fogueira, ao final, sob a acusação de vestir-se com roupas de homem. Um crime para o qual, veja-se, havia inclusive previsão de escusa. 

Quiçá, seja essa guerreira assassinada aos 19 anos, em 1431, em um processo conduzido por um juiz reconhecidamente incompetente (!), um bom caso de lawfare. Isso, claro, para quem reconhece que as experiências das mulheres frente ao poder são, de algum modo, relevantes na história da política e do direito… 

Já se vai mais de década em que escrevi que, mais do que sujeitas primordialmente a um sistema de controle informal (e só residualmente formal), as mulheres são submetidas a um sistema de custódia que conceituei como o conjunto de tudo o quanto se faz para reprimir, vigiar e encerrar (em casa ou em instituições totais), mediante a articulação de mecanismos de exercício de poder do Estado, da sociedade, de forma geral, e da família

A custódia é, em síntese, a complexa engrenagem de poderes capaz de determinar, em termos criminológicos, quem está dentro ou fora do sistema de justiça criminal e, também, em termos políticos, quem poderá ou não entrar ou permanecer na institucionalidade executiva e/ou parlamentar. 

Como já disse em texto anterior aqui da coluna, sob a perspectiva de gênero, conceituo o lawfare de gênero como a dimensão instrumental do patriarcado na qual o direito (por uso ou o abuso) converte-se em arma e os diferentes sistemas (judiciário, administrativo, disciplinar e político) em território de guerra onde, por meio do processo, toda e qualquer forma de violência de gênero é admitida para os fins de silenciar e/ou expulsar as mulheres da esfera pública em qualquer âmbito e independente do lugar que ocupam1. De maneira que me é claro que o processo político que levou ao impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff foi expressão deste fenômeno. 

E, de igual modo, também insiro nesse contexto de análise, mais recentemente, o caso envolvendo as deputadas federais Célia Xakriabá (Psol-MG), Sâmia Bomfim (Psol-SP), Talíria Petrone (Psol-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (Psol-RS) e Juliana Cardoso (PT-SP), representadas perante o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados (arquivadas somente há poucos dias); o caso das (recém revertidas) cassações dos mandatos das vereadoras Edna Sampaio (PT – Cuiabá/MT) e Maria Tereza Capra (PT – São Miguel do Oeste/SC); o caso do pedido de suspensão do mandato da deputada estadual Mônica Seixas (PSOL – SP); e, por fim, o caso da notícia de fato interposta junto ao Ministério Público do Rio contra a deputada estadual Luciana Genro (PSOL – RS).

Com exceção do procedimento aberto contra a deputada Luciana Genro (que se encontra, por ora, em outro plano processual) todas as demais foram, ou ainda são, vítimas de perseguição na esfera das comissões de ética de suas respectivas casas legislativas por suposta “quebra de decoro parlamentar”. 

Em linhas gerais, tomando o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados como parâmetro, dentre outras hipóteses previstas, e que à toda vista não se aplicam aos casos referidos, seriam atos atentatórios ao decoro, por exemplo: perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões de comissão; praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa; praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a mesa ou comissão, ou os respectivos presidentes. 

Sinônimo de recato, comedimento, vergonha ou pudor, “decoro” é uma palavra especialmente importante na cartilha pela qual nós mulheres fomos ensinadas. 

Como registra a historiadora Carla Casagrande2 a pedagogia aplicada às mulheres a partir do período medieval entregou aos homens (pais, maridos, irmãos ou padres), ancorados em Deus e no sistema jurídico, o difícil, “mas necessário” encargo de custodiar as mulheres. E estas por sua vez, dando graças à providência divina, deveriam permanecer submetidas à autoridade masculina a qual deveriam, dispostas ou não, aceitar, mantendo-se sóbrias, castas, silenciosas e ignorantes. 

Custodiar as mulheres é conditio sine qua non da estrutura patriarcal. Por isso, para tanto, tudo o que se refere ao feminino foi normatizado. 

Os gestos não poderiam ser expressivos, mas suaves. Agitar as mãos? Jamais! E, nunca, mover demasiadamente a cabeça.

Mulheres não deveriam rir, apenas sorrir, sem mostrar os dentes. Não deveriam arregalar os olhos, mas mantê-los baixos e semicerrados. Deviam chorar, mas sem fazer ruídos. 

E, claro, mulheres não podiam entrar nos tribunais, governar, ensinar ou pregar. A palavra do juízo, do poder, da cultura, da cura e da salvação deviam manter-se masculinas. Os ordenamentos jurídicos e políticos excluíram a mulher do exercício de qualquer mínimo poder.

Voltando aos dias de hoje, o que vemos é que, no pano de fundo das imaginárias violações ao “decoro” que teriam sido cometidas pelas parlamentares que citei acima estão manifestações durante a votação do marco temporal dos territórios indígenas3, críticas veementes ao processo de privatização de estatais de fornecimento de água, denúncias sobre a existência de articulações neonazistas, defesa dos direitos do povo palestino, entre outras. 

Ou seja, todas causas que dizem respeito ao exercício de um mandato parlamentar. Algo que, por sinal, encontra-se nos exatos termos do que diz o Código de Ética da Câmara segundo o qual são deveres fundamentais de qualquer parlamentar os de promover a defesa do interesse público e da soberania nacional (art. 3º, I) e respeitar e cumprir a Constituição, as leis e as normas internas da Casa e do Congresso Nacional (art. 3º, II).

Contudo, no cumprimento de seu dever o que as imagens dos embates nos parlamentos mostram são sempre essas parlamentares atuando com altivez, destemor, falando alto e gesticulando muito. Enfim, elas estão sempre vestidas com as roupas e armas de Joana.

A “retórica do decoro” vem sendo acionada como motivação para silenciar e expulsar as mulheres da esfera pública todas as vezes em que a “estridência” das suas vozes e “rudeza” de seus gestos provoca os “instintos mais primitivos” dos detentores do poder. Por isso, o lawfare contra as parlamentares mulheres tornou-se uma cruzada de norte a sul do país. 

A mim me parece que precisamos, urgentemente, coordenar ações conjuntas antes que mais Joanas (nem santas, nem bruxas, mas guerreiras) sejam condenadas. Nenhum mandato a menos!

Notas

1 –  Vide o meu Criminologia Feminista: novos paradigmas. 3ª. edição, 2024. 

2-  CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges (orgs.). História das mulheres no ocidente. v. 2. Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. p. 99-141. 

3 –  De acordo com nota emitida pela Bancada Feminina da Câmara dos Deputados, firmada por sua coordenadora, Deputada Benedita da Silva, as representações formuladas no intuito de punir as parlamentares pelo legítimo exercício de seus mandatos caracterizam atos de violência política de gênero, nos termos da Lei nº 14.192/2021. Disponível em:  https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/noticias/coordenacao-da-bancada-feminina-manifesta-apoio-a-deputadas-vitimas-de-violencia-politica

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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