Há exatos vinte anos Heleieth Saffioti publicou Gênero, Patriarcado, Violência – um de seus estudos e pesquisas que compõe a imensa e profunda coletânea que a professora, falecida em 2010, nos legou.

De acordo com a professora, para além de sua notável contribuição teórica, essa obra, cujo tema era a violência contra as mulheres, se destinava a todas e a todos que desejassem conhecer “fenômenos sociais relativamente ocultos”. Ou seja, aos que se desafiassem a saber o porquê de, em nome da “preservação da família”, não raro um homem agressor ser agraciado pelo silêncio (e, digo eu, impunidade) sobre seus atos. A obra, dizia ela, também seria de interesse das vítimas, na medida em que as ajudaria a identificar relações violentas e as encorajaria a buscar ajuda.

Magistral, mas em uma passagem do livro intitulada “O tabu do incesto” que nos tempos atuais, na linguagem da internet, mereceria a advertência “alerta de gatilho”, Saffioti choca ao descrever em minúcias experiências de violências psicológica e sexual vividas por meninas dentro de casa. E, provocando um misto de repugnância e indignação em suas leitoras e seus leitores, apresenta um caso em especial, de uma família de classe social abastada, onde ocorreriam abusos sexuais de parte de um pai. As agressões teriam sido confidenciadas por uma das filhas, em segredo, para uma amiga. Algo que, contudo, a pesquisadora não pode confirmar pelo que ela denominou de “conspiração do silêncio”.

Digo sempre, e repetirei quantas vezes forem necessárias: o ‘lar doce lar’ não é, e nunca foi, um lugar seguro para as mulheres, nem adultas, nem adolescentes, menos ainda enquanto crianças. Entretanto, o segredo garantido pela conspiração do silêncio, por sua vez, não é uma característica peculiar ao âmbito doméstico. O segredo é, e sempre foi, uma forma de ocultar outras formas de violência vivenciadas não somente no privado, como também no espaço público (ou que deveria ser verdadeiramente público).

Em artigo publicado em 2021 eu e Isadora Dourado cunhamos o termo lawfare de gênero. Um fenômeno que o aprofundamento de meus estudos permitiu conceituar mais recentemente como “a dimensão instrumental do patriarcado na qual o direito (por uso ou o abuso) converte-se em arma e os diferentes sistemas (judiciário, administrativo, disciplinar e político) em território de guerra onde, por meio do processo, toda e qualquer forma de violência de gênero é admitida para os fins de silenciar e/ou expulsar as mulheres da esfera pública em qualquer âmbito e independente do lugar que ocupam.”1

Ações e omissões específicas que têm sido possíveis de identificar como expressões de violência institucional e de violência processual encontram-se abarcadas pelo lawfare de gênero, capaz de vitimar não somente as mulheres que já se encontram como parte em diferentes processos dentro dos sistemas judicial, político, ético-disciplinar e/ou administrativo, mas também aquelas que desmascaram a real razão do silêncio, tornando conhecido o que se quer manter escondido.

Esse é o caso da jornalista Schirlei Alves, condenada como se suas matérias sobre o caso Mariana Ferrer pudessem, dentro de padrões mínimos de conhecimento jurídico e razoabilidade, serem consideradas difamatórias. Uma jornalista que, no estrito dever de sua profissão, desafiou “furar” a conspiração do silêncio para trazer a público os horrores da violência institucional e processual vividos por Mariana. Um caso escabroso sob todo e qualquer prisma.

Não é minha intenção aprofundar a discussão acerca do lawfare neste texto. Algo que farei no próximo artigo da coluna, no qual tratarei da violência política contra as mulheres.

Contudo, não há como deixar de sublinhar que Schirlei é uma vítima de lawfare. Uma verdadeira ‘inimiga’ da ordem patriarcal. E, não por outro motivo, está sendo perseguida e criminalizada.

Nesta coluna o que me interessa, em particular, é colocar em debate o tema do segredo judicial, que, desde já adianto, em minha percepção, não é (e nunca foi) uma garantia de proteção para as mulheres dentro do sistema de justiça brasileiro.

Lá se vão alguns anos desde que eu e a professora Elaine Pimentel2 escrevemos sobre o significado do “ser mulher vítima”, em especial no processo penal, a partir da análise que fizemos sobre o crime de estupro no Brasil.

Como dizíamos (e continuamos a dizer), desde a redação inicial do Código Penal de 1940 até 2009, o estupro foi entendido como um “crime contra os costumes”. De maneira que a razão de ser do segredo judicial em relação a este tipo de delito tinha como finalidade a proteção do ‘bom nome’ da família e, sobretudo, da honra dos homens que a ‘chefiavam’.

Ainda que contemporaneamente se afirme em doutrina (majoritariamente masculina) e em jurisprudência que o segredo judicial vise proteger as vítimas – o que denomino de retórica do segredo – fato é que a dignidade das mulheres nunca foram o parâmetro para essa proteção processual penal. As reportagens produzidas por Schirlei, por exemplo, assim comprovam.

A mudança ocorrida com a Lei 12.015/2009, pela qual se passa a nominar os delitos de natureza sexual como Crimes contra a dignidade sexual e crimes contra a liberdade sexual, aponta para a construção de outro paradigma na estrutura dogmática penal e, por reflexo, processual penal.

A mudança no vocabulário jurídico, entretanto, à toda vista, não foi capaz de ultrapassar a força da cultura nas relações de opressão de gênero, que estão nas bases sociais das práticas de crimes sexuais contra as mulheres e na forma como o sistema de justiça as reconhece.

Embora, muito em razão de minha formação como doutrinadora em Ciências Criminais e advogada criminalista, eu tenda a tratar aqui com maior relevo do segredo judicial na esfera penal, não quero deixar de mencionar que não é somente neste campo onde verificam-se toda sorte de violências institucionais e processuais de gênero.

Observem que o artigo 189 do Código de Processo Civil que, na regra geral, preconiza que os atos processuais devam ser públicos, excepciona para que tramitem em segredo de justiça os processos: em que haja interesse público ou social; que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; e que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.

Pergunta sincera: dentro de parâmetros mínimos de razoabilidade, tendo-se em conta que (como pesquisas sérias já publicadas demonstram, e até mesmo pelo reconhecimento do próprio Estado ao tornar a violência institucional crime de abuso de autoridade em 2022) qual a razão para que ações que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável sem o envolvimento de menores sejam postas, por determinação legal, sem consulta às partes, em segredo?

Enfim…

Sigamos!

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o princípio da publicidade dos atos processuais, motivo pelo qual o segredo dos atos processuais constitui uma exceção, sendo regra que estes sejam públicos, conforme os artigos 11, 189, caput, e 195, do Código de Processo Civil e os artigos 5º, XXXIII, LX, e 93, IX, da Constituição Federal.

Por sinal, bom que se saiba que o princípio da publicidade se relaciona com o princípio democrático, ao direito à informação e à transparência do Estado. Lecionando boa doutrina3 que, em complemento, a publicidade dos atos processuais é também o corolário do princípio da proteção judicial efetiva que pressupõe desenvolva-se o processo sob o controle das partes e da opinião pública.

Não tenho por hábito publicar colunas lotadas com citações de números de artigos e/ou de leis. Não gosto de ler e, tampouco, de escrever textos nesse estilo. De regra, quem sabe a “lei” de cor, não sabe o Direito. Enfim… (boas) lições que aprendi de um velho mestre.

Entretanto, penso que seja importante, também mencionar aqui que o Protocolo para Julgamento com a Perspectiva de Gênero, com base na Recomendação Geral n. 35 CEDAW, reafirma a obrigação do Estado brasileiro de, em nível judicial, de garantir procedimentos legais que, além de imparciais e justos, não sejam afetados por estereótipos de gênero ou interpretações discriminatórias (item III, 26, c, com remissão aos artigos 2º, d, f e 5º, a, da Convenção). Donde conclui que: “ao se considerar que o direito processual reúne princípios e regras voltados à concretização da prestação jurisdicional, como forma de solucionar conflitos de interesses – entre particulares e entre estes e o Estado é importante reconhecer que a magistrada e o magistrado devem exercer a jurisdição com perspectiva de gênero, solucionando, assim, questões processuais que possam causar indevido desequilíbrio na relação entre os sujeitos do processo.”  

A pura e simples interpretação acerca da imperatividade dos dispositivos legais que asseguram o segredo judicial representam, em minha perspectiva, uma afronta à convencionalidade e aos princípios constitucionais da publicidade dos atos processuais, da transparência, da igualdade entre os gêneros, da proteção judicial efetiva e do princípio democrático.

Assim como entendo que não reconhecer (em particular em casos envolvendo violências sexual, física, patrimonial, psicológica – todas, dentro ou fora do âmbito da violência doméstica e familiar) a autonomia de uma mulher para decidir sobre o que deve ou não estar em “segredo” viola também constitucional e convencionalmente seu legítimo agir processual o que, por consequência, vai de encontro ao equilíbrio das partes no processo como propugnado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Antes de me encaminhar ao final, e antes também que o “comando abolicionista de caça às juristas feministas” se ponha em campo, responderei à pergunta que não quer calar: Mas, e a preservação da intimidade da pessoa acusada? Também não é um direito?

Com certeza é, sim, um direito fundamental do investigado, réu e, até mesmo, condenado! A espetacularização do processo (penal) é inadmissível. E nada do que se diz aqui corresponde à admissão sequer abstrata de qualquer forma de violação de quem quer que seja, mesmo que sejam homens agressores.

A regra é clara, diria o comentarista de arbitragem: o princípio da publicidade dos atos processuais tem por escopo a proteção das partes contra juízos autoritários e secretos para todos e todas.

Essa é a regra do jogo do processo.  E, é dentro dessa regra que:

Um, violências institucionais e processuais não podem encontrar guarida no segredo;

Dois, a espetacularização do processo (penal) é inadmissível, assim como, em qualquer caso, é inaceitável a exposição da mulher e a destruição de sua imagem fora e, principalmente, dentro do processo; e

Três, o segredo de justiça, sem a oitiva da mulher enquanto parte na relação processual representa a um só tempo: uma afronta à constitucionalidade e convencionalidade na medida em que representa uma diminuição da autonomia feminina em seu legítimo agir processual; e um desequilíbrio na relação entre os sujeitos do processo pela violação à ampla defesa e/ou ao direito de livremente litigar.

A jornalista Schirlei Alves, cumpriu com seu DEVER profissional, e está pagando o preço de a bem do interesse público ter direcionado os holofotes sobre uma conspiração do silêncio que escondia violências institucionais e processuais. Está na hora de também nós, juristas, jogarmos luzes sobre a retórica do segredo judicial que, como as matérias de Schirlei mostraram no caso Mariana Ferrer, em nada protege as mulheres.  

Notas

1 – Leia mais em Criminologia Feminista: novos paradigmas, 3ª. edição, editora Saraiva.

2 – MENDES, Soraia da Rosa. PIMENTEL, Elaine. A violência sexual: a epistemologia feminista como fundamento de uma dogmática penal feminista. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Ed. RT, 2018.

3 – Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional. 18ª. edição. Editora Saraiva.

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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