Educação e políticas públicas contra preconceitos e normas abusivas de gênero
Joanna Burigo e Izabel Belloc avaliam Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD que mostra como desenraizar preconceitos de gênero – e por quê
Por Joanna Burigo e Izabel Belloc*
O relatório do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), sobre o Índice de Normas Sociais de Gênero (do inglês Gender Social Norms Index – GSNI), que reflete os dados mais recentes da Pesquisa Mundial de Valores, é um choque de realidade para quem pensa que a igualdade de gênero pode acontecer por puro desejo e boa vontade, ou apenas por esforço feminista. Nele, o PNUD recomenda dois blocos principais de ação para acelerar esse processo: o fortalecimento da formação e educação sobre o tema, e a garantia de políticas públicas específicas desenhadas por especialistas para esses fins.
Lançado no dia 12 de junho, com o subtítulo “Quebrando preconceitos de gênero: mudando as normas sociais em direção à igualdade de gênero“, o estudo revela que, no mundo todo, e em uma década, não houve melhoria nenhuma no que diz respeito ao apego a crenças em normas sociais detrimentais para mulheres. Citando dados e estudos de caso de diversos países e setores, a robusta análise é uma excelente ferramenta para demonstrar o tamanho e a complexidade da questão global de gênero.
Neste artigo, para além da habitual raiva sem surpresa feminista frente a compilações de dados que comprovam a existência e os efeitos da misoginia, seguindo orientações de Audre Lorde fazemos da raiva instrumento de contra-ataque a tanto ódio machista, e avaliamos positivamente as recomendações por educação e políticas públicas feitas pelo PNUD.
Também apresentamos uma breve análise comparativa entre Brasil, Argentina e Uruguai, países que constam no relatório e que, apesar da proximidade geográfica, apresentam diferenças substanciais em termos das recomendações e dados sobre machismo ali apresentados.
A pesquisa indica que o desmonte dos direitos das mulheres, observado em contextos recentes da história, tem levado a um aumento de violações dos direitos humanos de forma ampla. Essa conclusão não é nova, o livro “Sex and World Peace” (Valerie M. Hudson, Bonnie Ballif-Spanvill, Mary Caprioli e Chad F. Emmett; Columbia University Press) em 2012 já desestabilizava uma série de suposições e lugares-comuns paternalistas dos discursos políticos e sociais demonstrando que a segurança autônoma das mulheres garantida pelo Estado é o fator mais crucial para a paz e prosperidade nele.
Os dados também mostram que nove em cada dez pessoas mantêm preconceitos de gênero, que metade da população mundial ainda acredita que homens são melhores líderes políticos do que as mulheres, e que 25% das pessoas acreditam ser justificável um homem agredir fisicamente sua mulher. As normas sociais a que o relatório se refere atrapalham em muitas frentes. Uma delas, a sub-representação das mulheres em cargos de liderança: a média de mulheres chefes de Estado está estagnada em 10% desde 1995; mulheres ocupam apenas 22% dos cargos ministeriais, e a maioria é nos ministérios de mulheres, crianças, jovens, idosos, deficientes ou setores ambientais. No mercado de trabalho, menos de um terço dos cargos de liderança é ocupado por mulheres, que têm mais educação do que nunca, e mesmo assim os homens continuam ganhando mais: em média, 40%.
O estudo enfatiza o papel fundamental do Estado para alavancar a mudança das normas sociais sobre gênero. Por exemplo, políticas de licença parental têm alterado percepções sobre responsabilidades acerca dos trabalhos de cuidado.
A diretora da Equipe de Gênero do PNUD global, Raquel Lagunas, ressalta a importância de reconhecer o valor econômico dos trabalhos não remunerados feitos desproporcionalmente por mulheres. “Isso pode ser uma forma muito eficaz de desafiar as normas de gênero em torno da forma como o trabalho de cuidado é visto“, ela diz, complementando que em países com os maiores níveis de machismo é estimado que mulheres passem seis vezes mais tempo do que homens realizando trabalhos não remunerados.
Fica sedimentada no relatório a urgência pelo investimento em medidas de promoção da igualdade, que incentivem, ampliem e fortaleçam mecanismos de segurança, proteção social, e trabalhos de cuidado que resultem do aprimoramento da legislação e das políticas públicas. Fica também patente a recomendação pela ampliação do alcance de educação especializada, que possa propor e executar intervenções que desafiem atitudes patriarcais, estereótipos de gênero, e a naturalização da ampla aceitação da crença em normas comprovadamente detrimentais para mulheres.
O que diz o relatório
O texto aponta que direitos políticos e liberdades civis estão em declínio em todo o mundo há pelo menos uma década. Isso foi acompanhado pela reificação de crenças que naturalizam a misoginia e a exploração das mulheres, o que ajuda a explicar a reação abjeta contra a igualdade de gênero e os direitos das mulheres do período – como notado em artigo de 2016, que hoje consta no livro “Patriarcado Gênero Feminismo” (Editora Zouk, 2022). O relatório também diz que essa reação negativa aos avanços de gênero pode ser observada sob a forma de campanhas orquestradas pela desinformação sobre gênero que vêm colocando práticas democráticas sob pressão e pondo em risco a participação das mulheres nos espaços cívicos – aqui no Brasil, pense no “kit gay”, ou na “ideologia de gênero”, ou no combate à “linguagem neutra”, ou na fixação que uma ala parlamentar da extrema-direita cristã tem em atrapalhar o andamento de projetos e leis alavancadas por mais e melhores direitos sexuais e reprodutivos.
O relatório traz uma combinação rica e frutífera de pesquisas acadêmicas e estudos de casos em diferentes contextos para demonstrar que, sem lidar com normas sociais preconceituosas sobre gênero, não alcançaremos a igualdade de gênero.
O preconceito de gênero, o estudo reconhece, é um problema generalizado em todo o mundo, e as normas sociais que persistem ao longo do tempo devem ser desafiadas com educação e abordando diretamente as crenças sociais em normas tendenciosas e exploratórias.
O estudo afirma ainda que os preconceitos de gênero inibem a agência das mulheres e privam o mundo dos benefícios de sua liderança, e que a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas são influenciados por uma complexa interação de arranjos sociais formais e informais. Para alcançar resultados positivos é preciso não apenas instrumentos que fomentem a participação igualitária na vida social, como políticas públicas e corporativas, mas também abordar e combater normas sociais sobre gênero profundamente enraizadas, que factualmente impedem a igualdade genuína.
O Índice de Normas Sociais de Gênero compilou informações sobre as atitudes das pessoas em relação às mulheres em quatro dimensões: política, educacional, econômica e física, para examinar como crenças preconceituosas podem apoiar ou obstruir a igualdade de gênero e respeitar os direitos humanos. Cada uma das quatro dimensões é caracterizada por um ou dois indicadores das barreiras invisíveis que as mulheres enfrentam.
- Política: o indicador que mede se as pessoas pensam que “as mulheres terem os mesmos direitos que os homens é essencial para a democracia” avalia crenças sobre participação política básica; o indicador que mede se as pessoas pensam que “homens são melhores líderes políticos do que as mulheres” avalia crenças sobre conquistas no poder político de alto nível;
- Educacional: o indicador que mede se as pessoas pensam que “Universidade é mais importante para homens do que para mulheres” avalia as crenças sobre as oportunidades de educação avançada;
- Econômica: o indicador que mede se as pessoas pensam que “homens deveriam ter mais direito a um emprego do que mulheres” avalia crenças sobre a participação econômica; o indicador que mede se as pessoas pensam pensam que “homens são melhores executivos de negócios do que as mulheres” avalia crenças sobre o aumento do empoderamento econômico;
- Física: o indicador utiliza duas variáveis para aferir o que as pessoas pensam sobre violência de gênero por parceiro íntimo e sobre direitos reprodutivos, através de perguntas sobre ser justificável um homem agredir fisicamente uma mulher e sobre ser justificável a realização de aborto, respectivamente.
É preciso assinalar que o relatório utiliza uma categoria única de gênero, não adotando uma perspectiva interseccional capaz de dar conta das combinações entre sexismo, racismo e/ou discriminações contra pessoas LGBTQIA+, pelo menos. Na América Latina, como é o caso dos países analisados aqui, a perspectiva interseccional é uma necessidade elementar para se compreender adequadamente e enfrentar de forma eficiente as desigualdades.
Argentina, Brasil e Uruguai no relatório do Índice de Normas Sociais de Gênero
Argentina, Brasil e Uruguai fazem parte dos resultados do relatório do Índice de Normas Sociais de Gênero – GSNI (PNUD/ONU, 2023). Além do Brasil, os dois países vizinhos foram escolhidos entre os 80 países e territórios abrangidos pelo relatório devido à proximidade geográfica e certa semelhança em seus processos de formação histórico-político-econômica, o que acaba influenciando na própria formação cultural das populações, não se podendo ignorar as desigualdades de gênero daí resultantes.
Interessa notar que o GSNI – pessoas com pelo menos um preconceito de gênero – chega a 84% das pessoas, no Brasil, enquanto o índice cai para 72% na Argentina e para menos de 61% no Uruguai. Já o GSNI2 – pessoas com pelo menos dois preconceitos de gênero – é de 47% no Brasil, 35% na Argentina e 22% no Uruguai. Quanto às pessoas sem preconceitos de gênero, o Brasil fica com o pior índice entre os três países, com apenas 15%, enquanto ele é de 28% na Argentina e 39% no Uruguai. Nessas três medições o Uruguai é o país com os melhores índices, ou seja, é o país cuja população apresenta menos preconceito de gênero. Por sua vez, dentre os três, o Brasil é o país com os piores índices de preconceito de gênero.
Fonte: reprodução relatório Gender Social Norms Index – GSNI (PNUD/ONU, 2023).
A desagregação de dados por sexo mostra que as mulheres têm menos preconceitos de gênero que os homens nos três países. A menor e a maior diferenças entre homens e mulheres, nas três medições ‒GSNI, GSNI2 e pessoas sem preconceito de gênero ‒ aparecem no Brasil, nos resultados para o GSNI, sendo a diferença de 0,6%, e para o índice GSNI2, onde ela é de quase 10%.
Nos dados desagregados por dimensões de preconceito de gênero (política, educacional, econômica, e integridade física) o Uruguai é o país com os melhores e menores índices; já o Brasil supera a Argentina e o Uruguai no acúmulo de tendências preconceituosas, exceto na dimensão educacional.
Na dimensão política, o índice de pessoas com preconceito contra as mulheres é de 40% no Brasil, 35% na Argentina e 32% no Uruguai. A mesma ordem se repete na dimensão econômica, em que 25% de brasileiros, 20% de argentinos e 16% de uruguaios carregam preconceito. Na dimensão educacional a ordem é alterada e a Argentina passa a ter o pior índice de preconceito contra as mulheres nesse âmbito: 14%; o Brasil conta 10%, e o Uruguai, 5%.
A dimensão sobre integridade física é a mais preocupante para todos os três países. Essa dimensão, como mostramos acima, utiliza perguntas sobre ser justificável que um homem agrida fisicamente uma mulher e sobre ser justificável a realização de aborto. A combinação de um maior número de respostas positivas à primeira pergunta, e negativas à segunda, resulta num índice maior de preconceito de gênero. O índice de pessoas com preconceito de gênero nessa dimensão aumenta consideravelmente em relação às demais, nos três países: 76% no Brasil, 58% na Argentina e 44% no Uruguai.
Políticas públicas para a igualdade de gênero na Argentina, no Brasil e no Uruguai
Os três países sul-americanos apresentam características distintas em matéria de políticas públicas de gênero. Isso não explica, por si só, os resultados da pesquisa, mas apresenta estratégias e respostas públicas às desigualdades de gênero, muito interessantes de analisar, uma vez que as legislações nacionais sobre integridade física e participação política das mulheres têm diferenças significativas de um país para outro.
Consideramos importante trazer exemplos dessas duas dimensões porque a primeira – a integridade física – é um dos principais fatores de produção de desigualdades de gênero; e a segunda – a participação política – diz respeito às oportunidades e condições de ocupação de espaços públicos de poder que produzem políticas públicas mais ou menos tendentes à eliminação dessas desigualdades – a depender da diversidade na composição desses espaços e à consequente diversidade de ideias que se consegue debater neles.
Integridade física: legislação de enfrentamento à violência e direito ao aborto
A Argentina tem hoje um importante conjunto legislativo para a prevenção, sanção e erradicação da violência de gênero, que conta, inclusive, com uma perspectiva de gênero não binária, garantindo direitos e proteção às pessoas LGBTQIA+. O aborto lá também é um direito garantido em lei. Destacamos:
- Lei n.º 26.485/2009 – proteção integral para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres;
- Lei n.º 26.791/2012 – tipifica o homicídio agravado de mulheres (feminicídio);
- Lei n.º 27.234/2016 – “Educar en Igualdad: Prevención y Erradicación de la Violencia de Género” – bases para que todos os estabelecimentos de ensino, públicos ou privados, da educação primária à universidade, promovam atividades para prevenção e erradicação da violência de gênero;
- Lei n.º 27.499/2019 – “Ley Micaela”, capacitação obrigatória em gênero para todas as pessoas que integram os três Poderes do Estado;
- Lei n.º 27.533/2019 – inclui a violência política de gênero entre os tipos de violência da Lei de Proteção Integral (Lei n.º 26.485/2009);
- Lei n.° 27.501/2019 – inclui o assédio sexual de rua entre os tipos de violência da Lei de Proteção Integral (Lei n.º 26.485/2009);
- Lei n.º 27.610 – despenalização e legalização do aborto.
O Uruguai possui uma legislação muito completa em matéria de enfrentamento à violência de gênero, também em perspectiva não binária, referindo-se, ainda, a outras categorias de atenção que não só o gênero – como raça e etnia. Dessa legislação, destacamos:
- Lei n.º 18.987/2012 – despenalização e legalização do aborto;
- Lei n.º 19.538/2018 – tipifica como crime o feminicídio e atos de discriminação baseada no gênero (por orientação sexual, identidade de gênero, raça ou origem étnica, religião ou deficiência);
- Lei n.º 19.580/2018 – normas contra a violência contra as mulheres baseadas em gênero, valendo citar seus objetivos e alcance: “Artículo 1º.- (Objeto y alcance).- Esta ley tiene como objeto garantizar el efectivo goce del derecho de las mujeres a una vida libre de violencia basada en género. Comprende a mujeres de todas las edades, mujeres trans, de las diversas orientaciones sexuales, condición socioeconómica, pertenencia territorial, creencia, origen cultural y étnico-racial o situación de discapacidad, sin distinción ni discriminación alguna. Se establecen mecanismos, medidas y políticas integrales de prevención, atención, protección, sanción y reparación” (grifo das autoras).
A legislação brasileira difere bastante no que tange às proteções legais aprovadas na Argentina e no Uruguai. Dois são os pontos-chave dessa distinção: ao contrário dos países vizinhos, a legislação brasileira não possui o caráter de integralidade, o que significa que a proteção legal se restringe a alguns tipos de violência de gênero, em leis separadas; em geral, a legislação brasileira utiliza uma perspectiva única de gênero, de forma binária. Dito isso, destacamos:
- Decreto-Lei n.º 2.848/1940, art. 128 – casos em que o aborto é permitido (gravidez de risco à vida da gestante e gravidez resultante de estupro); além destes casos, o STF, em 2012, considerou inconstitucional a criminalização do aborto no caso de feto anencéfalo, através do julgamento da ADPF n.º 54 (entendimento válido a partir de 2013);
- Lei n.º 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – violência doméstica;
- Lei n.º 12.737/2012 – Lei Carolina Dieckmann, tipifica como crime a invasão de dispositivo informático;
- Lei n.º 13.104/2015 – tipifica o feminicídio como crime;
- Lei n.º 13,462/2018 – Lei Lola Aronovich, sobre a investigação de crimes relacionados a difusão de conteúdo misógino;
- Lei n.º 13.718/2018 – tipifica como crime a importunação sexual e a divulgação de cena de estupro;
- Lei n.º 14.132/2021 – tipifica como crime a perseguição (stalking)
- Lei n.º 14.192/2021 – normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher.
Participação política: legislação para o avanço da igualdade de gênero
A exemplo das legislações sobre o enfrentamento à violência de gênero e direito ao aborto, o tema da participação política também tem suas diferenças nas legislações argentina, brasileira e uruguaia, produzindo resultados próprios. Isso resulta de três combinações distintas de sistemas eleitorais e formas de promover o acesso das mulheres aos espaços de poder político.
Salientamos que os três países utilizam uma categoria única de gênero em suas legislações sobre participação política das mulheres, ignorando a desigualdade entre mulheres no acesso e ocupação de espaços públicos de poder. Na América Latina, o enfrentamento a essa desigualdade exige políticas e ações afirmativas que considerem etnia, raça e gênero de maneira combinada; especialmente no Brasil, em que mulheres negras são a maioria da população, com 28% (PNAD, 2021) e ocupam uma minoria das cadeiras do Congresso Nacional, apenas 7% (TSE, 2023).
A seguir, apresentamos as leis nacionais que regulam o tema e os índices de participação política das mulheres, em dados recentemente divulgados no mapa Women in Politics: 2023 (Mulheres na Política: 2023), elaborado pela União Interparlamentar e ONU Mulheres, com dados de 224 países.
Quebrando preconceitos de gênero
O relatório sedimenta que, sem um reconhecimento amplo do que a ONU chama de “normas sociais prejudiciais, atitudes patriarcais e estereótipos de gênero”, e dos instrumentos que os desafiem, a igualdade de gênero não passa de uma quimera.
Nas últimas décadas houve grandes avanços no entendimento do caráter detrimental da crença em normas sociais sobre gênero, o que vem influenciando políticas públicas e descobertas científicas. Um bom exemplo dessa virada de chave, oferecido pelo relatório, é a pílula anticoncepcional – um avanço científico que criou novas opções para a sexualidade e a maternidade. Sua introdução lenta num primeiro momento foi recebida com negatividade, e por muitos anos ela sequer constou como opção oficial de planejamento familiar, pois o conceito de contracepção artificial era um tabu; muitos países proibiram a prescrição da pílula, e instituições religiosas declararam que o controle artificial da natalidade era pecaminoso. O processo até sua aceitação social aconteceu em paralelo ao tremendo impacto que teve na agência das mulheres por mais controle sobre os próprios corpos e capacidade de planejar família, além de ter ampliado serviços e recursos que transformaram positivamente a saúde infantil e da gestação.
“Países com menor presença de movimentos de mulheres têm os maiores preconceitos contra a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres” (GSNI 2023; página 18; tradução das autoras).
O relatório também reconhece e aponta o papel crucial da organização feminista para os avanços na direção da igualdade de gênero, e diz: “Movimentos feministas contra a violência de gênero e feminicídio – como Ni Una Menos, I Will Go Out, Me Too e Time’s Up – levaram a importantes mudanças políticas. Eles suscitaram apoio aos direitos das mulheres, de trabalho de cuidado, posse da terra, inclusão financeira, prevenção do assédio sexual, e maior conscientização sobre a violência. Esses movimentos provocaram mudanças por meio de dois caminhos principais: reformas políticas e o reenquadramento de papéis de gênero e relações de poder“ (GSNI 2023; página 18; tradução das autoras).
Imagem 1: Marcha 8M 2022, em Montevidéu, Uruguai. Foto: Nairí Aharonián y Liroy Rodríguez – Unidad de Comunicación da Universidad de la República. | Imagem 2: Marcha 8M 2023, em Montevidéu, Uruguai. Foto: Intendencia de Montevideo. As diversas e enormes marchas do 8M e pela legalização do aborto, no Uruguai e na Argentina, também marcam a década.
Mudanças nas normas sociais de gênero requerem intervenções que engendrem as condições sociais para mudanças frente às desigualdades e explorações pautadas em gênero. Na proposição do PNUD, a educação e políticas públicas são as duas peças-chave para a superação de normas sociais preconceituosas e opressivas. Em se tratando de gênero, dois aspectos devem ser levados em consideração. O primeiro, que normas sociais abusivas de gênero geralmente nascem cedo na vida, em casa, e continuam por meio de outras experiências e agremiações: na escola, em reuniões religiosas, sociais, profissionais ou políticas, e com outras redes e comunidades. Isso ajuda também a explicar a alta taxa de mulheres com preconceitos de gênero – 84,17% no Brasil. O outro aspecto a considerar, é que o impacto positivo da participação das mulheres na política é estatisticamente significativo na manutenção de paz e prosperidade, mas também segurança, como as ciências comportamentais, sociologia e psicologia também vêm descobrindo em pesquisas múltiplas que confirmam que a segurança das mulheres está fortemente correlacionada com a segurança coletiva.
O tratamento social e político conferido às mulheres na sociedade atravessa todos os seus níveis, e influencia diretamente e positivamente o contexto social e político na direção de mais paz e prosperidade. A misoginia pode ser reforçada ou desafiada, e esse relatório do PNUD pontua bem por que desafiar as normas sociais de gênero é uma escolha que podemos – e devemos – fazer hoje.
A PNUD entende ainda que o raciocínio crítico é central em qualquer formação que esbarre em valores e crenças, e propõe um quadro abrangente para a transformação, compreendendo dois blocos de ação: o primeiro visando moldar intervenções políticas e reformas institucionais sensíveis a questões de gênero, e o segundo concentrado na educação sobre o papel significativo do contexto social na formação de atitudes e comportamentos. Para o órgão, isso pode ser promovido por meio do uso de mídias sociais para amplificar as mensagens dos movimentos feministas, e pela lei, e por ações emancipatórias que fortaleçam a agência para o arbítrio, e que encorajem mulheres a moldarem o próprio futuro, com pleno reconhecimento dos próprios direitos e necessidade de participação cívica e política. Sendo assim, encorajamos que você compartilhe esse texto, procure se organizar politicamente, e siga estudando com a gente. Vamos juntas mudar as normas sociais para alcançar igualdade de gênero.
*Izabel Belloc é advogada, mestra em Gênero e Políticas de Igualdade pela FLACSO/UY, doutoranda do Doutorado em Ciências Sociais da FLACSO/AR, e integrante da Red de Politólogas #NoSinMujeres.