Entre 20 de julho e 20 de agosto deste ano aconteceu a nona edição da Copa do Mundo Fifa de Futebol de mulheres, que foi sediada conjuntamente pela Austrália e a Nova Zelândia, e teve grande sucesso de público. De acordo com o SportInsider, o torneio gerou receitas de US$570 milhões, atingindo o ponto de equilíbrio pela primeira vez. Superando a meta de vendas de ingressos, ao todo 1.978.274 torcedoras/es assistiram às 64 partidas – um aumento de mais de meio milhão em relação ao recorde anterior, e que rendeu 84,1% de ocupação nos estádios. 

Boas notícias para o futebol de mulheres? Muitas, e estas nem são todas as que surgiram do Mundial. No entanto, uma fala feita por Alex Scott, ex-jogadora da Seleção da Inglaterra que hoje atua como comentarista, ilumina outro aspecto do evento e do futebol, e do esporte e, em geral e de forma ampla, do mundo em que vivemos. 

Avaliando o assédio cometido contra a atacante Jenni Hermoso, da Espanha – que foi forçosamente beijada nos lábios pelo presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, em plena comemoração da vitória de sua Seleção no campeonato – a apresentadora e atleta disse: “mulheres no esporte nunca tiveram o luxo de ‘apenas falar sobre esporte’; sempre teve que ser mais, e lá vamos nós de novo! campeãs mundiais, história feita, e em vez de poder comemorar a realização de um sonho, trata-se da luta pelo respeito básico! Jenni Hermoso, estou com você”.

A repercussão do  assédio sofrido por Hermoso foi volumosa e rápida, e parece estar levando a discussão – e o futebol – para direções menos machistas, o que é outra vitória. Mas Alex Scott tem um ponto aqui, e ele é importante: de tantos marcos para celebrar nesta Copa do Mundo, ela ficará manchada justamente por uma ação machista de um homem cis branco poderoso, que por se sentir autorizado a tratar mulheres como se fossem meros receptáculos do seu desejo, e não agentes da própria autonomia, atravessou um empreendimento repleto de ações positivamente antipatriarcais e melou seu final com importunação sexual.

A Seleção Brasileira, apesar de ter estreado com goleada contra o Panamá, foi derrotada pela França no jogo seguinte e eliminada pela Jamaica na terceira partida. Importantemente para o argumento que estou fazendo aqui, no entanto, nossas canarinhas voaram até lá em um avião cuja decoração externa era feita de apoio à luta das mulheres iranianas. É isso mesmo: o Comlux Aruba que levou Marta et al para a Copa, privado e fretado para a ocasião, traz em sua pintura as frases em inglês “nenhuma mulher deve ser forçada a cobrir sua cabeça”, “nenhuma mulher deve ser morta por não cobrir sua cabeça” e “nenhum homem deve ser enforcado por dizer isso”.

Na sua cauda, há imagens de Mahsa Amini, símbolo dos protestos por ter sido assassinada pela polícia iraniana ao não utilizar o véu da forma que a religião obriga, e do jogador de futebol Amir Nasr-Azadani, que se manifestou pelos direitos de suas compatriotas e por isso chegou a receber pena de morte, da qual se livrou, tendo sido condenado a 26 anos de prisão.

Imagem: Trivela

Este apoio internacional à luta feminista foi um golaço marcado pelo Brasil, e na história do futebol de mulheres abundam solidariedade e o entendimento de que a articulação entre grupos de interesse pela igualdade de gênero e em combate ao patriarcado simplesmente não pode parar. Em uma coletiva de imprensa realizada em 1º de agosto, um dia antes da eliminação, Marta se emocionou ao destacar a insistência das jogadoras em permanecerem no futebol, mesmo sem público ou patrocinadores. “Hoje vemos mulheres aqui, o que não tinha antes. A gente acabou abrindo portas para a igualdade”, a rainha concluiu.

Já faz quase 25 anos que a professora Judith Lorber disse, em Usando o gênero para desfazer o gênero: um movimento feminista de desgenerização (Teoria Feminista, 2000, 1:79), que vinha mantendo há outros 25 anos um arquivo de recortes de jornais e artigos intitulado “plus ça change” (em referência à epigrama ‘plus ça change, plus c’est la même chose’, escrito por Jean-Baptiste Alphonse Karr, em 1849, que significa “quanto mais muda, mais é a mesma coisa”).

Os conteúdos de seu arquivo evidenciam que, no que diz respeito à desigualdade de gênero, parece mesmo que quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem iguais. Para Lorber, apesar do estatuto das mulheres no mundo ter melhorado (embora nós mesmas tenhamos visto alguns retrocessos), a suposta revolução que tornaria mulheres e homens verdadeiramente iguais ainda não ocorreu.

Um relatório lançado em 12 de junho deste ano pelo o Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD) sobre o Índice de Normas Sociais de Gênero (do inglês Gender Social Norms Index – GSNI) confirma essa percepção, mostrando que – no mundo todo, e em uma década – não houve melhoria no apego a crenças em normas sociais detrimentais para mulheres. O relatório concluiu que a erradicação destas exige a criação de condições para mudanças frente às violências e explorações pautadas em gênero, e propõe educação e políticas públicas como peças-chave para a superação de preconceitos opressivos. 

Há mais de vinte anos que projetos tais quais o Guerreiras Project – coletivo de atletas, acadêmicas, artistas e ativistas (e onde encontrei amigues para a vida em Caitlin Fisher, Aline Pellegrino, Cacá Índia Oliveira, Bia Vaz, Jane Dennehy, Silvana Goellner, Pamela Joras, Eric Seger, Nadja Marin, Thaís Picarte, Lu Castro, Aira Bomfim e Ana Laura Becker Aguiar) – vêm amplificando por meio de educação, comunicação, pesquisa e influência política o entendimento de que, por quase meio século, as brasileiras foram proibidas de jogar futebol. Por lei.

Em meados dos anos 2000 as Guerreiras já utilizavam o futebol como recurso didático para revelar, analisar e combater preconceitos históricos de gênero, estimulando a conscientização necessária para tirar o machismo do caminho das atletas. A estratégia de campanha para 2023 da VISA – parceira oficial do Mundial – foi justamente comover as audiências locais de cada país contando histórias de opressão e superação de mulheres do futebol… 

Ao que parece, ainda é necessário despender energia superando obstáculos sexistas que pensávamos estar ultrapassados. O Ministério Público Espanhol abriu uma investigação contra Luis Rubiales por suposto crime de agressão sexual, e a campeã Jenni Hermoso continuou se manifestando, dizendo não tolerar que sua palavra seja desacreditada. Yolanda Diaz, ministra do Trabalho da Espanha, e Amanda Guiterrez, presidente do sindicato espanhol de futebol feminino FutPro, declararam o beijo forçado “deplorável”. Vídeos que mostram diferentes ângulos do assédio com mais clareza emergiram, e a atitude é mesmo asquerosa. 

 Uma hashtag relacionada a este aborrecimento coletivo reverberou na internet como uma “ola” de torcida em estádio lotado: #SeAcabó – que tem parentesco com outras hashtags feministas do passado recente a compartilhar um mesmo intuito: o imperativo urgente pela interrupção imediata de práticas machistas naturalizadas, como a importunação sexual neste caso espanhol, ou o assédio sistemático denunciado pela campanha #MeToo e a hashtag #TimesUp nos EUA, ou os  feminicídios interpelados pelos gritos de #NiUnaMenos na Argentina, ou a violência política de gênero sendo comunicada e combatida pela campanha #ElasFicam no Brasil.

Imagem: IconSport via Trivela

Numa partida recente contra o Girona, em clara manifestação de apoio a Hermoso e a todas as mulheres, e em explícito repúdio ao abuso sexual que ainda caracteriza relações de hierarquia social em que gênero opera como eixo central, os jogadores do Sevilla entraram em campo portando em suas camisas o dizer – que, em tradução, fica “acabou-se”, e, em bom português, significa chega, basta, parou, apenas parem, deu, parô, cabô, já era, pópará… zé-fi-ni com esse machismo nojento! A expedita exposição do inaceitável, e o diligente emprego de ferramentas com que interromper o patriarcado – esse “sistema multifacetado de dispositivos de proteção de homens cis” (Burigo, 2022) – são atos bem-vindos, e indicam caminhos para os que ainda não sabem como podem ser aliados na luta por equidade de gênero.  

Apesar de sobrarem motivos para celebrarmos os recordes quebrados neste mundial feminino, bem como para a Espanha comemorar sua vitória, eles foram todos ofuscados pela importunação sexual de um dirigente para com uma campeã. Hermoso se manifestou negando veementemente ter consentido ao “beijo”, e Luis Rubiales acabou sendo suspenso pela Fifa. A Federação Espanhola, num primeiro momento, ameaçou Hermoso com uma ação judicial. Ela não esmoreceu, e como suas colegas campeãs mundiais e dezenas de outras atletas solidárias, afirmou que só voltará a defender a Espanha quando Rubiales abrir mão do cargo, do qual está afastado. ¿Se acabó? Ou será mesmo que plus ça change, plus c’est la même chose? A bola segue em campo.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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