— Atualmente, tu tens condições de cuidar da tua filha?
— Com certeza!
— A gente está esperando que tu te organizes, que tu continues fazendo esse esforço para cuidar da tua filha […]
— Eu queria fazer um pedido para a senhora, olhar para tudo o que passei desde quando entrei em trabalho de parto para ganhar a Suzi, e desde que a conselheira tutelar entrou na sala e fez tudo isso comigo e a Suzi. É muito desumano.

A súplica é de Andrielli Amanda dos Santos, 21 anos, à juíza da Vara da Infância e Juventude de Florianópolis, Brigitte Remor de Souza May, durante audiência de instrução e julgamento realizada em 28 de setembro. Faz pouco mais de dois meses que ela e a sua bebê, a Suzi, foram afastadas. A separação de mãe e filha ocorreu logo após o parto, no Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago.

Assim como Andrielli, outras duas mães tiveram os laços maternos interrompidos por ações judiciais em Santa Catarina. Uma quarta mulher ouvida pelo Porta Catarinas quase perdeu o filho para uma suposta tentativa de adoção ilegal. Nenhuma delas tem uma condição de vida fácil. Mas todas lutam pela mesma causa: recuperar o direito de exercer a maternidade. A situação de vulnerabilidade de cada uma, seja pela circunstância de imigração, pobreza ou violência doméstica, é o que as une na história que vamos contar nesta reportagem.    

No mesmo dia da audiência de Andrielli, a conselheira tutelar Juliana Vandresen Lobo — profissional que levou a bebê Suzi para o acolhimento institucional — falou pela primeira vez sobre o caso. “Houve informação do nascituro, sobre negligência e violação de direitos, e apliquei a medida, conforme cabe a mim na legislação. A criança sempre vai ser prioridade absoluta”, disse Lobo em uma reunião da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e da Promoção da Igualdade de Gênero, na Câmara Municipal de Florianópolis.

Contando com a bebê Suzi, há 1.474 crianças e adolescentes acolhidos em Santa Catarina. Pelo menos 86,3% estão institucionalizados como ela, ou seja, vivendo em abrigos. Apenas 13,7% estão aos cuidados de famílias acolhedoras — que propiciam um lar provisório, procuram manter o vínculo da criança com a sua família de origem, mas não adotam. 

O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela que, dentre os acolhidos no estado, há 157 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, sendo que 45 deles já estão vinculados a pretendentes. O sistema está público desde 2019 e as informações que citamos foram atualizadas no dia 14 de outubro.  

Cruzando o número de acolhimentos com os dados populacionais do IBGE, é possível verificar que Santa Catarina tem a quarta maior taxa de crianças acolhidas em abrigos por 100 mil habitantes no país (20,1) e a maior taxa de pretendentes à adoção (37,7).   

“Quem sabe se a gente tivesse uma casa de passagem para mulheres gestantes em situação de rua essa situação poderia ser mudada”, sugeriu a conselheira tutelar responsável pelo acolhimento de Suzi, na reunião que ocorreu na Câmara.

Embora Andrielli já tivesse vivido em situação de rua no passado, essa não era mais a condição dela durante a gestação da Suzi, tanto que havia montado enxoval e o acomodado em um guarda-roupas abaixo de um teto. Outra justificativa apresentada no relatório do Conselho Tutelar para afastar mãe e filha era de que a jovem teria feito uso de “álcool e/ou drogas” durante a gravidez. Mas um laudo toxicológico mostrou que ela não estava fazendo uso de nenhuma substância. 

A conselheira afirma que agiu dentro da lei, pois haveria respaldo legal para medida preventiva de acolhimento em situações de risco, ainda que não houvesse uma decisão judicial. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no entanto, não prevê a possibilidade de acolhimento com base em violações que ainda não ocorreram, já que Andrielli havia acabado de parir. 

“A proteção jurídica da vida começa após o nascimento com vida na nossa legislação. Por isso, não se aplica o ECA nesse caso e, além disso, houve flagrante violação ao direito à proteção da maternidade de Andrielli, previsto no art. 6 da Constituição Federal. Esse direito deve prevalecer contra qualquer destituição arbitrária e discriminatória”, afirma a advogada Beatriz Galli, do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem). Leia o parecer técnico do Cladem sobre o caso.

Desde aquele 28 de julho, Andrielli carrega o sofrimento de ter que conviver com o afastamento da bebê que desejou e gestou por nove meses. Ela precisa cumprir uma série de determinações da justiça, entre elas frequentar as consultas psicológicas no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) para curar o estado de depressão, que paradoxalmente é consequência do próprio afastamento, e demonstrar capacidade financeira para criar a filha. 

Andrielli ao lado do companheiro, Israel de Oliveira Geraldo, 23 anos, em frente ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina/Foto: Bianca Taranti

Atualmente, vive com o companheiro, pai de Suzi, em um apartamento alugado. Ela passou a fazer faxinas, ele atua como servente de pedreiro. Juntos correm contra o tempo para desconstruir o protocolo do fracasso ou a desmarternização, como conceituaram pesquisadoras no artigo “A desmaternização das gestantes usuárias de drogas: violação de direitos e lacunas do cuidado”, publicado em 2018. 

A doutora em psicologia, Carmen Silveira de Oliveira, uma das responsáveis pelo estudo com mulheres em situação de violência e vulnerabilidade, em Porto Alegre, já foi secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e presidenta do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Ela alerta para um padrão de destituição que agencia a desmaternização entre mãe e filhas/os por meio do acionamento dos estigmas da drogas e da situação de rua como argumentos centrais.

“Há uma rede de proteção que não se organiza, não porque não existam dispositivos legais que dão sustentação para isso, mas por estigma. Existe o estereótipo da boa mulher e da família estruturada e, essas pessoas, tanto a mulher, o pai ou a família extensa (parentes próximos), não preenchem essa imagem de referência, esse imaginário social”, afirmou a pesquisadora.

Andrielli já havia perdido o poder familiar de duas crianças e isso tem pesado na manutenção do acolhimento. Sua primeira gravidez ocorreu aos 13 anos. Andrielli não pôde ser uma boa mãe ou uma mãe ruim. Não pôde ser mãe.

“Dizem que fui negligente em relação ao pré-natal, mas eu penso ‘e se eu tivesse feito o pré-natal por completo e não tivesse trabalhado esse tempo todo que trabalhei para adquirir o resto das coisas que faltava para minha Suzi, será que ela estaria comigo’?”, questiona. 

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Registro dos poucos minutos que Suzi ficou no colo da mãe antes de ser levada pelo Conselho Tutelar, em Florianópolis/Foto: arquivo pessoal

Criminalização da pobreza

O V Relatório Luz da Sociedade Civil Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, organizado pela ARTIGO 19 Brasil e América do Sul e Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, revela que, no último ano, o Brasil não avançou em nenhuma das 167 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecidos pela ONU em 2015. Mais de 80% das metas estão em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas. Acabar com a fome e erradicar a pobreza estão entre os objetivos. 

É dentro desse contexto de pobreza que mães como Andrielli são criminalizadas e impedidas de exercer a maternidade, enquanto o Estado deveria atuar para dar condições de sobrevivência a essas mulheres que, na maioria das vezes, exercem a maternidade solo, pois o companheiro não compartilha a responsabilidade. 

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Gráfico: Daniela Valenga

A consultora para questões de gênero e diversidade, Viviana Santiago, que também integrou o grupo de trabalho do Relatório Luz e já atuou na Aldeias Infantis — organização humanitária internacional que luta pelo direito das crianças a viverem em família — faz um alerta para a falta de acesso à informação sobre os direitos reprodutivos, o que impossibilita que as pessoas possam se planejar e ter autonomia reprodutiva para decidir se, quando e em que condições essas gravidezes vão acontecer.

“A gente tem aí uma série de leituras de criminalização da pobreza, de punição às mulheres, do direito ao esquecimento que não existe. Parece muito com a lógica dos EUA, se você já perdeu um filho uma vez, vai continuar perdendo, é a presunção da culpa, que além de tudo é uma lógica racista. […] É a mesma coisa que a gente tem aqui, enquanto que, para proteger o direito dessa criança, se está violando o primeiro direito dela que é o da convivência familiar e comunitária”, avaliou Santiago. 

De acordo com o Relatório Luz, chegamos a 2021 com 113 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar — o impacto foi maior para pessoas negras. A pandemia da Covid-19 e a política de teto de gastos contribuíram para aprofundar as vulnerabilidades sociais. A população desocupada “é a maior desde 2012”, chegando a 14,4 milhões de pessoas. O número de desalentados — que desistiram de procurar emprego — também alcançou “o maior nível da série histórica”, com 6 milhões de pessoas nessa situação. 

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Gráfico: Daniela Valenga

Imigração é fator agravante 

Duas mulheres haitianas que chegaram a Santa Catarina em momentos diferentes e regiões distintas  — uma foi para Concórdia, no Oeste, e a outra para Joinville, no Norte — têm mais do que o país de origem em comum. Além de enfrentarem opressões relacionadas à raça, gênero, classe e migração, Gertrude Jean Louis e Widelene* são mães e atravessam uma jornada dolorosa para obter o direito de exercer a maternidade. A primeira teve a filha tirada dos seus braços e levada para um abrigo por suspeita de negligência.

Mesmo com a disponibilidade do pai em assumir a guarda, o Ministério Público chegou a pedir que a Justiça a encaminhasse para adoção. A segunda quase perdeu o filho mais novo em uma suposta tentativa de adoção ilegal, o que pode ser considerado tráfico de pessoas no Brasil. 

Gertrude migrou do Haiti para Chapecó (SC) há anos/Foto: arquivo pessoal

Após cinco meses de gravidez, Gertrude disse que foi abandonada pelo pai da criança. À equipe de assistência social, o homem justificou que “era casado e que a sua esposa teria ficado no Haiti” e que a gravidez de Gertrude “teria ocorrido por acidente”. Hoje, a esposa mora com ele no Brasil.

Sozinha, Gertrude mudou-se para Chapecó, onde passou a viver com outro companheiro e conseguiu um dos poucos empregos possíveis para imigrantes na região — em um frigorífico da BRF. Com o salário de R$ 1,5 mil, ela paga o aluguel e sustenta a casa. Só que para trabalhar das 14h às 22h, ela precisava deixar a filha aos cuidados de outra pessoa. No 12º dia com a cuidadora, porém, a criança teria voltado para casa chorando de dor. 

Para reduzir a desigualdade social prevista na Agenda 2030, pactuada pelo Brasil e outros 192 países que integram a ONU, uma das metas é facilitar a migração de forma ordenada e segura com implementação de políticas públicas. Segundo o Relatório Luz, a queda de 18% na contratação de imigrantes, no comparativo do primeiro semestre de 2020 com o mesmo período do ano anterior, foi considerada um retrocesso. O estudo também evidencia a falta de avanços em marcadores legais desde a aprovação da Lei de Migração de 2017.

Gertrude procurou atendimento para a filha na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Chapecó, mas os profissionais de saúde ministraram analgésicos e a mandaram de volta para casa. Mais sete dias se passaram e a menina continuava reclamando de dor. Foi quando ela procurou o Hospital da Criança, em 17 de maio, e após exames descobriu que a filha estava com fraturas de costelas. 

Na ação movida pelo Ministério Público, diz que, além das fraturas, o laudo médico apontou acúmulo de líquido entre os tecidos que revestem os pulmões e o tórax, e hematoma no rim direito. A criança foi operada e logo após a cirurgia, levada direto para um abrigo. Gertrude afirma que não recebeu explicações do que estava acontecendo e ficou em desespero quando uma pessoa entrou no quarto do hospital e levou a menina embora. 

Quase cinco meses passaram para Gertrude recuperar a guarda da filha. Ela está com a menina, mas não soube dizer se a guarda é provisória ou definitiva. A criança retornou para os seus braços no último dia 8 de outubro. “Estou muito feliz, vou fazer um bolo para comemorar”, contou. 

Até então, havia pouca esperança para Gertrude. Ela visitou a menina algumas vezes no abrigo, teve a visita suspensa por um período e estava tentando ajustar a vida com as poucas oportunidades que lhe cabem na esperança de ficar com ela novamente. Deixou o companheiro que até então exercia o papel de padrasto, mudou de casa, conseguiu uma vaga em creche e permissão no trabalho para mudar de turno. Agora, divide o aluguel com uma amiga. 

Ela nos contou que durante todo esse tempo que esteve longe da filha não recebeu acompanhamento assistencial do município. A Assistência Social nos disse que “Gertrude declarou não estar com dificuldades e que não havia necessidade de auxílio com alimentação”. Uma pessoa ligada à rede de apoio acionada a partir da reportagem e que não quis se identificar, fez uma visita à mãe e uma ponte com os órgãos locais para informar sobre as mudanças providenciadas por Gertrude para receber a filha de volta. 

Com as poucas palavras do idioma estrangeiro familiarizadas, quando ainda estava longe da menina, nos disse em um dia de desespero:

“Mãe cuida bem da filha, né. Eu trabalho, eu cuido bem da minha filha. A roupa dela é bem limpa, a casa bem limpa, faço comida, tá tudo bem para ela. Haitiana trabalha muito, se pai não faz nada, a mãe faz tudo pela filha”.

No relatório apresentado pelo Serviço de Assistência Social de Chapecó à juíza Surami Juliana dos Santos Heerdt, a menina teria sido resistente à mãe durante as visitas presenciais no abrigo, mas especialmente contrariada ao padrasto. Por isso, a equipe recomendou a suspensão das visitas. As profissionais que assinam o relatório reclamaram da insistência de Gertrude em solicitar informações sobre a própria filha, e alegam que sua conduta ao buscar saber da menina teria sido “descontrolada”. 

Na ação proposta pelo Ministério Público, o promotor Simão Baran Junior solicitou a perda do poder familiar de Gertrude e do ex-companheiro, com encaminhamento da criança à família substituta que esteja inscrita no cadastro de adoção. 

O defensor público Daniel Cobra, que atua em favor de Gertrude, contestou o pedido de destituição, pois a genitora nega que tenha sido responsável pelas lesões sofridas pela filha, uma vez que a situação teria ocorrido enquanto a menina estava sob a responsabilidade de uma cuidadora e que procurou assistência médica assim que notou algo errado com a menina. Na avaliação dele, não teria havido omissão, o que se cogita é “falta de orientação e dificuldades na gestão familiar”, que poderiam ser resolvidas, segundo ele, com o acompanhamento da rede. 

Vínculo familiar como prioridade

Ana Claudia Cifali, que é advogada do Instituto Alana e atua pelos direitos das crianças e dos adolescentes, destaca que o artigo 227 da Constituição Federal é a principal ferramenta legislativa na proteção e defesa das crianças, que serviu como base para a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 31 anos em julho, e de outras leis. O art. 227 determina que a responsabilidade da família deve ser dividida com o Estado e a sociedade no sentido de assegurar à criança e ao adolescente todos os seus direitos, assim como no art 229 diz que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

No processo de suspensão do poder familiar, que antecede a destituição definitiva, segundo a advogada, a criança não deveria ser levada para um abrigo. Outras alternativas como a busca da família estendida (com algum laço familiar) ou de famílias acolhedoras (que cuidam das crianças por um período, mas não adotam) são alternativas menos nocivas para as crianças. “A destituição do poder familiar deveria ser a última opção depois de todas as tentativas de manutenção do vínculo”, disse Cifali.  

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária faz essa ponderação de que a separação da criança do convívio familiar seguida de institucionalização, especialmente nos primeiros anos de vida, pode repercutir negativamente no seu desenvolvimento. No artigo 19, o ECA também trata a família substituta com “excepcionalidade”, e orienta que a permanência de uma criança em um abrigo deve ser reavaliada a cada três meses e não deve ultrapassar o prazo máximo de 18 meses, a menos que seja comprovada a necessidade. 

Em 2016 foi criado o Marco Legal da Primeira Infância para promover políticas públicas direcionadas aos seis primeiros anos de vida. Segundo Cifali, a nova legislação trouxe a perspectiva de “cuidar de quem cuida” e garantir meios de que as famílias, especialmente as mulheres, tenham o apoio necessário para maternar. 

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Gertrudes e a filha/Foto: arquivo pessoal.

O modus operandi da adoção ilegal

A dificuldade de conseguir emprego e, consequentemente, pagar o aluguel para morar com os dois filhos (um de 2 anos e um bebê), levou a segunda mãe imigrante, a quem vamos chamar de Widelene*, a mudar de estado. Uma suposta advogada interessada em adotar o bebê, a quem vamos chamar de Soraia*, fez contato com ela por telefone oferecendo uma vida melhor para ela e o filho mais velho.

Em contrapartida, Widelene deveria entregar o seu bebê para a desconhecida. Sem ter para onde ir, pois o abrigo em que estava vivendo provisoriamente com as crianças solicitou a sua saída (o tempo máximo permitido era de três meses), ela aceitou a oferta. 

Widelene já tinha tentado morar de aluguel quando conseguiu emprego no setor de limpeza em um shopping. Mas acabou demitida assim que voltou da licença maternidade. 

O contato entre ela e Soraia foi intermediado por uma de suas colegas do abrigo, que também teria recebido proposta para doar o filho. “Como você vai fazer para pagar aluguel e comer com as crianças? Já que perdeu o emprego vem aqui para a minha casa, a porta está sempre aberta para você”, teria sugerido a mulher.

Ao chegar de viagem na casa de Soraia, poucos dias antes de estourar a pandemia no Brasil, Widelene mudou de ideia e não quis mais doar o seu bebê. “Era como se eu estivesse vendendo meu filho”, percebeu. Foi quando a suposta advogada fez uma nova proposta e prometeu um emprego em uma loja que nunca se concretizou.

A adoção fraudulenta, segundo o coordenador de Migrações e Refúgio e do GT nacional para migrações da Defensoria Pública da União, João Chaves, é uma estratégia usada para forçar a situação de adoção, o que acaba sendo considerado tráfico de pessoas. “Quando uma mãe, por exemplo, não pode criar os filhos e outra pessoa começa a cuidar da criança. Depois de um certo momento, essa pessoa criou vínculo sócio afetivo e a mãe supostamente abandonou. Ela vai lá, apresenta pedido de destituição e depois entra com adoção”, explicou. 

As mulheres migrantes, reforça o defensor, são presas fáceis, pois além da situação de vulnerabilidade com os filhos pequenos, não contam com rede de apoio e acabam sendo criminalizadas pela pobreza. 

Logo na primeira semana, quando o filho mais velho teve uma crise de choro, Soraia mandou Widelene para uma quitinete sem móveis e comida. Recebeu apenas alguns trocados para comprar alimentos e conseguiu algumas doações com um pessoal de uma igreja. Passou fome, ficou com medo de ser despejada, e continua sobrevivendo de doações. O auxílio emergencial pago durante a pandemia ajudou por um período, mas a deixou a ver navios quando foi interrompido.

“Comecei a falar com Deus, minha situação vai piorar aqui com a dona casa porque eu não tenho mais condições de pagar aluguel”, contou.

O levantamento feito pelo Relatório Luz aponta que o auxílio emergencial propiciou inicialmente condições de sobrevivência para uma parcela da população que perdeu ou viu sua renda ser diminuída por conta da pandemia. Mas com a redução do benefício, várias famílias ficaram desamparadas e em condições de extrema pobreza. As restrições orçamentárias também impediram que programas sociais, para além do auxílio emergencial, pudessem dar assistência a essas famílias. 

Widelene gostaria de voltar para o Haiti. Mas retornar para Santa Catarina já traria mais tranquilidade. O sonho de vir para o Brasil estudar medicina se tornou um pesadelo. Sozinha, abandonada pelos pais das duas crianças, sobrevive como pode. 

“Não há ainda no Brasil um tratamento especializado para o caso de famílias imigrantes, que têm uma série de questões culturais, sobre o modo correto de criar os filhos e relacionamento com a criança. Esse é um desafio a mais para o sistema de justiça, perceber essas nuances”, contextualizou Chaves. 

Para configurar tráfico de pessoas, o que não chegou a ser concretizado no caso de Widelene, não precisa, necessariamente, haver uma organização internacional. Segundo Chaves, há pelo menos três elementos necessários para compor o crime: a ação (recrutar, aliciar, comprar ou transportar alguém mediante ameaça, violência ou abuso), o meio (que seria fraude, ameaça, engano, ou abuso de vulnerabilidade, por exemplo) e a finalidade (exploração sexual, trabalho análogo ao escravo, remoção de órgãos e adoção). 

O nome de Soraia está envolvido numa suposta adoção “à brasileira”, como descreve o judiciário em uma ação que determina o acolhimento institucional de outra criança diante da gravidade da situação. A criança em questão seria a filha da amiga de Widelene (o nome da mãe indicado pela entrevista é o mesmo da ação judicial). A tentativa de adoção teria ocorrido mediante acordo semelhante ao oferecido à Widelene. Mas o caso foi denunciado à polícia e a adoção não foi efetivada. 

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Manifestação realizada em agosto, em Florianópolis, pediu justiça por Andrielli/Foto: Paula Guimarães

Vítima de violência doméstica, mulher é afastada de bebê

O caso da Andrielli, a primeira personagem da reportagem, nos levou ao de Lorena*. Mulher branca, 40 anos, moradora do centro de Florianópolis, não vive os mesmos dilemas das imigrantes ou de Andrielli. Mas isso não impediu que ela escapasse do estereótipo do que é ser uma boa mãe.

Em 14 de junho, policiais militares foram chamados para conter um casal que se encontrava em vias de fato na rua com uma criança de quatro meses no colo. Naquela noite, Lorena sofreu violência doméstica pelo ex-companheiro, pai do filho de quatro meses, e tentava resgatar a criança dos braços do homem que saiu correndo pelas ruas com ela no colo.

Ao ser ajudada por uma vizinha, conseguiu recuperar o filho. Quando a polícia chegou, o homem havia fugido e o bebê foi retirado do colo da mãe e levado para um abrigo na mesma noite. A mãe foi algemada e conduzida até a delegacia.

A pesquisa “Visível e Invisível – A Vitimização de Mulheres no Brasil” trazida no Relatório Luz, mostra que 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4% – cerca de 17 milhões) acima de 16 anos “afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão” durante a pandemia de Covid-19. Embora o registro tenha sido levemente inferior ao do ano anterior (27,4% em 2019), não quer dizer que houve queda na violência, pois as vítimas acabaram enclausuradas com seus agressores e tiveram mais dificuldade em denunciar. 

Ao chegar na delegacia, Lorena afirma ter sofrido violência policial, antes de ter assinado um termo circunstanciado por maus-tratos e ser liberada. Quando voltou para a casa teve que lidar com a ausência do filho que ainda mamava. Segundo ela, durante a ocorrência, uma conselheira tutelar entrou no apartamento e levou quase todo o enxoval da criança para o abrigo. 

O relatório do Conselho Tutelar se baseou na versão da polícia de que a “genitora ia ser detida por maus-tratos, negligências, uma vez que em posse de uma faca (arma branca) com a criança no colo tentava agredir o genitor”. O conselho levou em conta ainda a informação de que o pai seria usuário de drogas e que a polícia já havia sido chamada para conter violência doméstica, a qual a mulher não quis registrar.

Lorena nega que segurava uma faca — versão confirmada pelo porteiro do prédio. Em seu depoimento, a Conselheira Tutelar recuou em confirmar a informação da polícia por não haver evidências. Os testemunhos foram decisivos para reverter o processo que caminhava a passos largos à destituição. 

“Foi muito traumatizante, não consigo ver carro de polícia que fico com terror. Foi um constrangimento, uma brutalidade muito grande. Estou tentando retomar a minha vida, fazendo tratamento com psicóloga e psiquiatra, tomando antidepressivo. Quanta coisa eu perdi sobre o desenvolvimento do meu filho, não sei qual foi a primeira papinha que o meu filho comeu. Eu me senti muito desacolhida”, afirma a mãe.  

Por quase três meses, Andreia Scheffer, advogada do caso, fez súplicas reiteradas à juíza, ao promotor e ao desembargador para que devolvessem a criança.

Lorena precisou comprovar sanidade mental, mesmo diante do caos gerado pela separação do bebê, que carinhosamente chamava de “meu pacotinho de amor”, para 90 dias depois ter o filho de volta em casa. A primeira visita no abrigo só foi liberada às vésperas de completar dois meses de afastamento. 

“A situação dela foi pior do que o caso de um réu, de um criminoso, porque, quem acusa tem que provar. No caso dela, além de ser vítima, queriam que ela fizesse provas contra si”, afirma a advogada, que é presidenta da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM/SC).

Lorena vai processar o Estado pelo tempo perdido na criação do vínculo com o filho.

“Não quero que façam isso com outras mães. O caso da Andrielli me assusta muito”. 

Contrapontos

Governo do Estado de SC

De acordo com Neylen Bruggemann Bunn Junckes, gerente de políticas para crianças e adolescentes da Diretoria de Direitos Humanos, o direito da criança à convivência familiar e comunitária é assegurado pelo ECA e o Pacto da Primeira Infância. Na avaliação dela, os casos relatados pela reportagem estão ferindo esse direito. Junckes reforça que a questão econômica não é um fator determinante e que é preciso entender porque os órgãos não estão buscando as famílias ampliadas (parentes próximos). 

Junckes citou que alguns municípios não contam com casas de acolhimento para mães e crianças nas condições relatadas na reportagem, apenas para mulheres vítimas de violência doméstica. Ela afirma que em SC a articulação da rede é mais voltada para a criança do que para a mãe, mas que deveria haver uma articulação mais específica, especialmente com relação às imigrantes que enfrentam o problema da comunicação.

“Na diretoria de Direitos Humanos tem a gerencia de políticas para negros e imigrantes, isso tem sido direcionado, mas está bem embrionário. As políticas não chegaram a amadurecer para prestar esse serviço, ainda está havendo uma organização”, afirma, lembrando que a diretoria com quatros gerências ainda é nova no estado, iniciou em 2019. 

Ministério Público

Por e-mail, o MP informou que “encontra-se impedido de prestar qualquer informação ou contraponto, uma vez que ações como estas correm em segredo de Justiça, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente”. Pela a assessoria de imprensa, porém, o MP respondeu apenas sobre o caso da Gertrude. Segundo o MP, a criança foi acolhida em decorrência de “indícios de maus tratos após chegar no hospital com lesões graves”.

A proposta inicial da ação de destituição do poder familiar foi uma medida de proteção para “verificar o que havia acontecido e ver da possibilidade de retorno à família”. O MP também informou que um estudo social indicou a medida.  

O MP disse ainda que “a mãe da criança foi atendida pelos órgãos de proteção e pela equipe do Serviço de Acolhimento e durante todo o tempo de acolhimento a criança apresentava intensa rejeição à genitora e manifestação de medo em relação ao padrasto, sempre chorando e recusando o contato. O desacolhimento demorou porque a criança apresentava muita rejeição à mãe e somente após a mãe ter se separado do padrasto e ter promovido algumas mudanças é que foi possível a reaproximação”. Segundo o MP, quem cuidava da criança era o padrasto. 

4º BPM da Polícia Militar de Santa Catarina

A PM informou que repudia qualquer tipo de violência e disse que “o tratamento e o trabalho operacional deve ser sim contundente de acordo com o que cada situação requer”. Destacou que a decisão sobre a retirada da criança ficou sob a responsabilidade do Conselho Tutelar e que os policiais fizeram o atendimento “de forma protocolar, encaminhando os envolvidos à delegacia especializada para a elaboração do boletim de ocorrência”. 

Poder Judiciário de Santa Catarina

Enviamos pedidos de contraponto nos dias 13 e 14 de outubro por e-mail, mas até a publicação desta reportagem, não recebemos retorno.

*Usamos nomes fictícios para proteger a identidade das entrevistadas que temem represálias.

Essa reportagem foi realizada por meio do apoio financeiro da organização Artigo 19.

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