Quantas Gracinhas, quantas Andriellis? O direito de ser mãe em discussão
Evento “A-Mãe-Ser”, realizado pelo Programa de Pós-graduação de Antropologia Social da UFSC, trouxe reflexões sobre maternidade e direito à amamentação
Evento A-Mãe-Ser, realizado pelo Programa de Pós-graduação de Antropologia Social da UFSC, trouxe reflexões sobre maternidade e direito à amamentação
Em 28 de julho de 2021, Andrielli Amanda dos Santos, 21 anos, teve sua filha tirada dos braços. Sob ordens do Conselho Tutelar de Florianópolis, a bebê Suzi foi retirada das mães, três horas depois de nascer, no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (UFSC).
Desde então, a mãe segue na luta para poder amamentar a criança. Sua filha, de apenas dois meses, já foi hospitalizada diversas vezes, apresentando sintomas de broncoaspiração – que é a entrada de alimentos na via respiratória, e em situações graves pode levar à apneia. Além de ser impedida de ser mãe, Andrielli também foi esterilizada durante o parto, por meio de uma laqueadura sem seu consentimento.
O caso mobilizou protestos no centro da cidade e na entrada do Hospital Universitário. Integrantes do movimento negro e da população de rua denunciam que as violências sofridas por Andrielli e Suzi demonstram marcas de uma assistência social racista, preconceituosa e que criminaliza a pobreza.
Com a crise econômica agravada pela pandemia, Andrielli ficou desempregada e recorreu à assistência social. Meses depois, o Estado iria utilizar o pedido de ajuda como justificativa para a destituição de sua filha. “A destituição dos filhos de mulheres pobres é criminalizar a pobreza. É dizer que a mãe não tem condições de criar a criança, por ser pobre, por ser preta, por ser periférica”, afirma Kaionara dos Santos, militante antirracista e assistente social que acompanhou o caso.
Kaionara foi uma das participantes do debate “A-mãe-ser”, realizado neste mês por professoras e pesquisadoras/es do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social (PPGAS) da UFSC. Disponível para acesso, o encontro em apoio à Andrielli contou ainda com outras duas convidadas: Raquel Mombelli, assistente social e antropóloga, e Walderes Coctá Priprá, mulher indígena Laklãnõ/Xokleng, professora e historiadora.
A mediação foi feita por Flávia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia Social, uma das organizadoras. O encontro teve como objetivo manifestar apoio, ainda, a todas mães e crianças que tiveram seu direito ao vínculo rompido de maneira arbitrária, vítimas de racismo e violência obstétrica.
Caso Gracinha: o racismo do século 19
“Quantas Gracinhas, quantas Andriellis, quantas vezes esse sistema vai continuar a se repetir?”, questiona a assistente social e antropóloga Raquel Mombelli, que analisou as proximidades da história de Andrielli com o caso Gracinha, ocorrido em 2016. Quilombola, mãe solo e analfabeta, Maria da Graça de Jesus, a Gracinha, teve suas duas filhas arrancadas de seu convívio há sete anos.
Em 2014, uma assistente social e um policial bateram à porta de sua casa, no Quilombo Toca de Santa Cruz, em Paulo Lopes (SC), afirmando que levariam suas filhas a uma consulta médica. Depois desse dia, as crianças nunca mais voltariam. Mãe e filhas se encontrariam poucas vezes, em abrigos.
O caso iniciou com uma denúncia anônima, que deu origem a uma ação de suspensão do poder familiar de Gracinha, pela promotoria estadual de Garopaba. Raquel chama atenção para a tese colocada nos autos do caso, que diz que Gracinha era incompetente para a realização da função social de mãe. A justificativa da justiça é de que, por ser “descendente de escravos”, Gracinha não teria cultura para criar duas filhas.
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A fala emblemática da promotoria resume todo o argumento racista que resultou na destituição das duas filhas da mulher quilombola. A antropóloga reitera que a associação feita pela promotoria, entre ser “descendente de escravos” e uma suposta ausência de cultura, limpeza e educação, reforça toda uma classificação pejorativa, desqualificadora, e de interioridade, atribuída historicamente à população negra.
“Gracinha tinha a carteira de vacinação em dia. A professora de uma das meninas fez uma carta belíssima, dizendo que a criança era uma excelente aluna, que não tinha faltas. Gracinha fazia questão de levar a menina para [ter aula de] balé. Havia cuidado, mesmo em condições muito difíceis”, relembra Raquel.
Além de serem retiradas da mãe, as filhas de Gracinha também perderam o direito de reproduzirem sua própria identidade cultural, étnica-racial e territorial. Retiradas do quilombo e adotadas por pais brancos, foram afastadas da comunidade onde compartilhavam cultura, afeto e socialização.
Apesar da longa experiência e contato com as violências sofridas pelas comunidades quilombolas, na época, Raquel foi surpreendida com o caso.
“Eu não imaginava que iria ouvir, no século 21, a reprodução de um discurso jurídico ancorado em percepções racialistas do século 19”.
No caso Suzi, a justificativa dada pela promotoria seria o passado da mãe, que já esteve em situação de rua e, supostamente, teria feito uso de “droga e/ou álcool” em algum momento. Porém, a decisão desconsiderou que atualmente a jovem está sóbria, possui residência fixa e se preparou para o nascimento da filha com um enxoval. Inclusive, um exame toxicológico, anexado aos autos pela defesa, comprova que a jovem não faz uso de substâncias psicoativas.
Segundo o defensor público Marcelo Scherer da Silva, Andrielli também está matriculada em um centro de Educação de Jovens e Adultos (EJA), onde tem 100% de frequência. O Hospital Universitário, que é referência nacional em parto humanizado, impediu que Andrielli amamentasse a filha, o que caracteriza violência obstétrica, segundo a Lei Estadual Nº 17.097, de 17 de janeiro de 2017.
Adoção compulsória: tráfico de bebês
Quando Kaionara soube que Suzi seria tirada da mãe, seu mundo desabou. Ao trabalhar junto de Andrielli, as duas criaram um forte vínculo afetivo. De imediato, Kaionara se ofereceu para ficar com a bebe Suzi, através do projeto Família Acolhedora, para depois pedir a guarda da criança, se necessário. O pedido foi negado, sob a justificativa de que, pela ausência de laço sanguíneo, Kaionara não “era nada” de Suzi.
“Comecei a pensar, então tudo que eu estudei na matéria de família está errado? Família acolhedora, extensa, multiplicada… Existem várias concepções de família. Ela [a conselheira] violou todos os direitos que podia violar. Ela não tinha nem ordem judicial. Eu fiquei em estado de choque, sem saber o que fazer”, afirma Kaionara.
Andrielli não foi comunicada quando sua filha adoeceu, nem quando passou por um procedimento cirúrgico na laringe. As poucas informações são conseguidas através de advogados e defensores públicos. Apesar da juíza ter aprovado visitar a bebe, a mãe só conseguiu a visita, depois de várias tentativas frustradas por imposição das regras do hospital.
Os casos de Andrielli e de Gracinha são exemplos de adoção compulsória, quando uma criança é arrancada da mãe e encaminhada para um abrigo sem considerar o seu destino, mesmo quando existe a chamada família extensa. A adoção compulsória de Suzi se baseou em acontecimentos que ocorreram antes do nascimento da bebê. Andrielli não pôde ser boa ou má. Não pôde ser mãe.
No chat do encontro A-Mãe-Ser, o psicólogo militante do movimento da população de rua, que acompanhou a jovem durante o parto, Gabriel Amado, comentou: “Maternidade roubada não é adoção. É o tráfico institucionalizado de bebês.”
Identidade Social de Mãe: realidade indígena
A professora e historiadora Walderes Coctá Priprá, mulher indígena Laklãnõ/Xokleng, trouxe importantes reflexões sobre a maternidade indigena. Mãe de três filhos, Walderes afirma que na aldeia, a coletividade é a principal diferença na forma de criar os filhos. “O filho que a gente tem não é nosso. É da comunidade. São vários pais, várias mães.”
O apoio desta rede coletiva se mantém durante toda a criação das crianças, e foi essencial para que Walderes pudesse concluir duas graduações e um mestrado. “Quando a gente vai pra realidade não-indigena, a gente fica chocada com o que vê. Nas terras indígenas não tem criança na rua, comendo comida do lixo. A criança é nosso bem mais precioso. Nossa rede é muito grande. Nossas crianças não perecem.”
Para se proteger de violências externas, mães indígenas nunca vão desacompanhadas para os hospitais, seja para fazer o pré-natal, ou para o parto.