Sim, ainda estamos aqui para ver um representante do cinema nacional, da arte com identidade brasileira, expor a memória, também brasileira, de uma etapa dolorosa da história do país que pode se repetir a qualquer momento e lugar do planeta. Em tempos de degradação de parâmetros humanistas, de ressurgimento de regimes extremistas que colocam em risco os princípios da democracia, justiça e liberdade, de retrocessos de ordem civilizatória, a memória pode ser um antídoto. A memória quando oferecida por arte transcendente pode também ser: redenção!

Ainda estamos aqui para presenciar o reconhecimento mundial de uma obra autenticamente brasileira protagonizada por uma mulher que resiste às truculências de um Estado opressor, que subverteu a ordem existente no país para reorganizar a vida familiar depois do desaparecimento do patriarca. 

Um longa-metragem que aborda o horror do autoritarismo a partir da dignidade de uma família que lutou para que a sua história durante a ditadura militar não fosse apagada como tantas outras. Uma trama que se desenvolve a partir da luta dessa mulher, Eunice Paiva, na posição da chamada “dona de casa”, que se torna ativista pelos direitos humanos em função da violência sofrida pela sua família, durante o regime imposto pelo Golpe Militar, tornando-se advogada e um símbolo da luta contra a ditadura no país. 

A mãe corajosa foi descrita pelo filho escritor para preservar as memórias maternas ameaçadas pelo Alzheimer. O roteiro do filme é baseado na autobiografia homônima de Marcelo Rubens Paiva, um dos cinco filhos de Eunice e Rubens Paiva. Rubens, engenheiro e ex-deputado federal, foi desaparecido pela ditadura militar em 1971. Em janeiro deste ano, sua certidão de óbito foi corrigida, passando a informar que a causa da morte foi “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

Denúncia que o filme torna permanente, como que um lembrete à vigilância para que situações como as que nele foram retratadas não se perpetuem ou disseminem, confirmando a potência disruptiva do cinema e da arte.

De Central do Brasil a Ainda Estou Aqui 

Ainda Estou Aqui (2024) filme dirigido por Walter Salles escolhe um tema difícil para uma abordagem delicada como quando em Central do Brasil o mesmo diretor apresenta a sensibilidade de uma professora aposentada, protagonizada por Fernanda Montenegro, que disponibiliza sua escrita e tempo redigindo cartas para quem quer enviar notícias aos seus, mas não sabe escrever. 

Assim como neste longa-metragem que rendeu ao filme e a Fernanda Montenegro indicações em 1999, na edição 71 da premiação do Oscar, sem, no entanto, receber a estatueta, o último filme do diretor coloca o Brasil novamente no centro das atenções mundiais na cinematografia. 

O mesmo diretor e duas gerações de atrizes, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, para atestar a densidade produtiva e artística de um setor que foi duramente perseguido, difamado e até em parte paralisado em passado recente. Época de desmonte sistemático de mecanismos de apoio à cultura e de canais de difusão e distribuição da produção artística nacional ressentiram também o setor audiovisual. 

A sutileza da abordagem aparece novamente em Ainda Estou Aqui como característica estética e narrativa da direção de Walter Salles.

Neste drama familiar que se torna universal pela gravidade do risco da instauração de regimes e práticas autoritárias e excludentes implodindo histórias pessoais. 

O protagonismo cultural e artístico do filme possivelmente se deve tanto à qualidade técnica e artística da produção quanto ao contexto político mundial no qual despontam inúmeras tentativas de supressão de direitos ou de imposição de regimes ilegítimos.  

A premiação de melhor atriz dramática para Fernanda Torres no Globo de Ouro fortaleceu a já exitosa trajetória do longa-metragem. Faz sentido que depois das recentes nomeações ao Oscar, a premiação mais alardeada dentro do mercado cinematográfico, a campanha do filme se intensifique. Isso inclui a inesperada indicação na categoria de melhor filme, uma situação inédita na história da cinematografia nacional, além de concorrer em outras duas categorias: a de melhor filme internacional e melhor atriz.

À margem da campanha que o filme já vem fazendo para garantir chances de ser realmente competitivo nas indicações, o longa já transcendeu seus propósitos iniciais de contar a história de resistência desta família brasileira frente à crueldade de um regime impositivo e delinquente. 

O longa Ainda Estou Aqui já faz história no cinema mundial como uma obra que mesmo falada em português conversa diretamente com o senso de justiça de cada espectador, independentemente de idioma ou nacionalidade.

O filme revigora as leituras diversas do mundo, ao tempo em que reanima uma torcida saudável por aquilo que nos representa culturalmente como nação. Distante de um ufanismo efêmero e de um patriotismo que não enxerga parte dos semelhantes, o filme resgata um sentimento de pertencimento e representatividade, uma brasilidade que de algum modo se deteriorou na última década. 

A protagonista vivida por Fernanda Torres não chora em Ainda Estou Aqui. O esperado choro que a dilacerante vivência imporia é substituído pelo sorriso que a mãe Eunice pede à família numa das sequências do filme, que já se tornou icônica, como quem sabe quão disruptivo pode ser o riso como manifestação humana. O riso é um recurso poderoso de resistência emocional e social, e sorrir é rir sem fazer ruído. 

Ainda Estou Aqui, você ainda está aqui, o cinema brasileiro e a arte brasileira ainda estão aqui. E assim permaneceremos, desta vez na torcida por mais conquistas que tragam sorrisos de redenção. 

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  • Claudia Aguiyrre

    Claudia Aguiyrre é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação...

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