Barbie é um filme feminista? Respondi essa pergunta em texto de 2023 no Catarinas. Pobres Criaturas é um filme feminista? Não sei. Gosto muito da sátira triste de Dente Canino (2009), em que Yorgos Lanthimos expõe a tirania na base ideológica da família tradicional patriarcal. Mas, vendo o trailer do longa lançado pelo mesmo diretor em fevereiro deste ano, ele me pareceu indulgente, um triunfo da estética, fetiche de pautas caras ao feminismo, e não tive vontade de assistir.

Anatomia de uma queda é um filme feminista? Sim. O suspense sobre o julgamento de uma mulher suspeita de assassinar o marido, cujo filho cego é a única testemunha, concorreu a cinco estatuetas na cerimônia deste domingo (10): Melhor Roteiro Original, para Justine Triet e Artur Harari, única categoria em que foram vencedores; Melhor Montagem para Laurent Sénéchal; Melhor Atriz para Sandra Hüller; Melhor Direção para Justine Triet; e Melhor Filme, para os produtores Marie-Ange Luciani e David Thion. 

Anatomia_de_Uma_Queda_feminismo_e_patriarcado_no_Oscar_2024_
Justine Triet, Oscar 2024. Foto: Getty Images, via Vogue.

Ao assistir, antes do primeiro terço do filme eu já tinha a excelente sensação de que a intenção da francesa Justine Triet era dar continuidade a um trabalho, há décadas muito bem feito por outras diretoras, como a neozelandesa Jane Campion e a britânica Michaela Coel. O trabalho de reenquadrar a forma como contamos histórias, conferindo a elas perspectivas contra misóginas na construção, desenvolvimento e conclusão da narração dos fatos de uma diegese que acontece no patriarcado.

Os recursos narrativos responsáveis pela suspeição da plateia sobre Sandra Voyten (Sandra Hüller) vão na contramão dos utilizados, por exemplo, em Instinto Selvagem (1992) e Garota Exemplar (2014), em que somos convidados a duvidar das motivações e ações das protagonistas (Sharon Stone e Rosamund Pike, respectivamente). 

A forma como somos apresentadas às ações de Sandra nos encoraja não a crer em sua culpa, mas a não duvidar de sua inocência – do mesmo jeito com que, em A Caçada (2012), somos levadas a confiar na idoneidade do professor acusado de um crime hediondo, interpretado por Mads Mikkelsen.

O diálogo tenso entre Sandra e seu marido Samuel Maleski (Samuel Theis) me pareceu uma resposta a todos os monólogos de personagens de homens com que personagens de mulheres no cinema foram silenciadas – sobretudo os que acontecem entre Dustin Hoffman e Meryl Streep em Kramer vs Kramer (1979), e Adam Driver e Scarlett Johansson em História de um Casamento (2019).

A CNN reportou no dia 29 de fevereiro que, em entrevista concedida para a Picture House, Triet afirmou ter se inspirado em Jane Campion, Kramer vs Kramer, História de um Casamento, e Garota Exemplar.

Me chamou atenção também a obviedade dos muitos simbolismos embutidos na história de uma mulher sendo julgada por instituições de origem e (ainda) alto teor patriarcal: a justiça, a medicina, a polícia. 

A cena de abertura do filme é entre Sandra e uma jovem pesquisadora entusiasta de seu trabalho como autora de sucesso, e a entrevista é interrompida pelo volume da música misógina que o então ainda vivo marido e escritor de fracasso faz ecoar pela casa. 

As falas do advogado de acusação, bem como os testemunhos do médico e do policial, incorrem em preconceitos e normas abusivas de gênero. Já a juíza é uma mulher, e o advogado responsável pela defesa de Sandra a ama de paixão. 

O marido, vivo ou morto, representa ressentimentos, habilidades de projeção, um senso de direito à determinação de quais percepções equivalem à realidade dos fatos, e enorme falta de habilidade para lidar com os próprios sentimentos – traços de personalidade comuns, em maior ou menor grau, a todos os maridos. 

O personagem masculino que ainda não é adulto é também cego, e é sua reflexão acerca da realidade dos fatos o que resolve a história – esse deus ex-machina é, ainda, incentivado inadvertidamente pela mulher que o Estado estabelece como sua cuidadora enquanto a mãe está sob julgamento. 

Os únicos olhos que tudo vêem são de um cão-guia, que não pisca tampouco sabe falar – e se existisse a categoria Oscar de Melhor Atuação Animal, o cachorro Messi, que interpreta Snoop, seria muito merecedor.  

Ao final da cerimônia, e para a surpresa de ninguém, os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção não foram para Anatomia de uma Queda, e sim para o já esperado grande vencedor da noite, Oppenheimer (2023) – que conta a história do físico teórico homônimo, creditado como o “pai da bomba atômica” em função de sua centralidade no Projeto Manhattan

É impressionante o apego da indústria de cinema às histórias sobre homens brancos que matam, em detrimento de histórias sobre mulheres que lutam por suas vidas, e vencem.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

Últimas