As feministas latino-americanas e caribenhas devem às companheiras feministas brasileiras o fato de que, a cada ano, no dia 28 de setembro, unamos e levantemos nossas vozes em comemoração ao Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.
Embora sejamos nós, as feministas latino-americanas e caribenhas, que conseguimos que esse dia ultrapassasse fronteiras, a data faz referência à promulgação da Lei do Ventre Livre de 1871 no Brasil, que declarou que todos os filhos e filhas nascidos de mulheres escravizadas seriam livres. A data foi escolhida coletivamente em 1990, ano em que se celebrou o V Encontro Feminista Latino-americano e Caribenho (Eflac) em San Bernardo, Argentina.
Nessa edição do Eflac, ativistas da região em conjunto somaram esforços e contribuíram para o lançamento da Declaração de San Bernardo, onde definiram estratégias de ação coletiva transnacional. Entre as ações destacam-se a formação de campanhas nacionais pelo direito ao aborto, o fortalecimento das campanhas já existentes dentro de cada país e o impulso de uma campanha regional pela legalização do aborto, hoje conhecida como Campanha 28S, que se nutriria das experiências e da articulação entre as múltiplas expressões do movimento feminista.
Adicionalmente, no mesmo V Eflac, as feministas brasileiras compartilharam uma descoberta que haviam feito em meados da década de 1980 e que mudaria o rumo das lutas regionais pelo direito de decidir: um dos efeitos colaterais do medicamento misoprostol (geralmente utilizado para tratar úlceras) são as contrações uterinas, e, portanto, começou a ser utilizado como pílula abortiva.
Nas palavras de Ninde MolRe (2021), essa descoberta constitui uma revolução reprodutiva porque nos deu a possibilidade de reinvindicação de nossos direitos ao mesmo tempo em que nos aproximou da plena liberdade e autonomia, permitindo-nos ter abortos seguros e autogestionados.
Em conjunto, a Campanha 28S, os abortos autônomos e acompanhados, assim como as diferentes iniciativas provenientes do ativismo feminista na região, constituem estratégias voltadas para a descriminalização e despenalização social do aborto, que têm se fortalecido desde a década de 1990.
Desde então, os efeitos dessa ação articulada conseguiram incidir em escala local e também global, como no Plano de Ação acordado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) no Cairo em 1994 – momento em que os direitos sexuais e reprodutivos foram claramente definidos como direitos humanos.
Desse momento em diante, o cenário sobre direitos reprodutivos da América Latina e no Caribe se modificou substancialmente. Enquanto alguns países avançaram em direção à liberalização, proteção e reconhecimento do direito ao aborto, em outros houve o agravamento da criminalização, forçando mulheres e pessoas com capacidade de gestar a realizarem procedimentos inseguros que colocam em risco sua saúde e vida.
É nesse contexto que, como pesquisadoras ativistas, de diferentes lugares, com agendas de pesquisa próprias, mas com compromissos políticos que nos unem, decidimos fazer uma breve revisão da situação do aborto em nossa região.
Refletimos sobre os avanços, mas também sobre as pendências ainda existentes em relação a nossos direitos, destacando as conquistas feministas que o movimento obteve ao longo dos anos, os desafios que enfrentamos diante do retrocesso proposto pelos grupos antidireitos, assim como a importância de fortalecer as redes de colaboração transnacionais e de reconhecer o poder que existe em nos organizarmos, avaliarmos e renovarmos nossas lutas a cada 28 de setembro.
O direito ao aborto a partir da experiência latino-americana e caribenha
A experiência argentina da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito inspirou o surgimento da Maré Verde, um movimento massivo e transnacional que reúne diferentes gerações em torno da demanda pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina e no Caribe. Como símbolo de sua força, em 2017, durante o XIV EFLAC em Montevidéu, Uruguai, foi acordado utilizar o lenço verde como símbolo da luta e identidade coletiva deste movimento.
Desde então, a força das feministas argentinas se transformou em um tsunami que atravessou fronteiras, idiomas e oceanos para exigir o reconhecimento e a garantia de acesso a abortos seguros e, assim, saldar o que consideramos uma dívida democrática da qual nossos Estados têm negligenciado na maioria dos países da região.
Os lenços verdes não apenas ocuparam as ruas, praças e monumentos, mas também transformaram o imaginário social de pessoas em diferentes localidades, questionando e desmistificando os entendimentos socioculturais que nos fizeram acreditar que a maternidade é um projeto que todas deveríamos seguir apenas pelo fato de sermos mulheres e que, mesmo com evidências contrárias, continuam considerando o aborto uma prática perigosa e insegura com sequelas irreparáveis, quando na verdade é a penalização e a clandestinidade que causam o dano.
Esses esforços coletivos e transnacionais tornam-se extremamente relevantes diante de um panorama em que o acesso ao aborto continua sendo limitado para as mulheres latino-americanas e caribenhas. A falta de garantias, as resistências institucionais para modificar os marcos normativos que impedem o livre exercício de nossa autonomia e as constantes ameaças de retrocessos conservadores demonstram porque, hoje mais do que nunca, continuamos em luta.
Os contextos adversos vividos em nossa região repercutem negativamente na saúde e na liberdade das mulheres. Ao mesmo tempo, ocultam situações de exclusão social, violência sexual e, claro, desigualdades econômicas, pois, como já foi dito, as ricas abortam e as pobres morrem. Frente a essa realidade, a Maré Verde representa um farol de esperança que sustenta a promessa de que outro mundo é possível.
De norte a sul do continente, as acompanhantes colocam seus corpos para garantir abortos livres, desafiando os marcos legais que os criminalizam, assim como as noções que equiparam clandestinidade com insegurança. Médicas e médicos aliados desafiam o modelo médico hegemônico e facilitam os procedimentos, mesmo que isso possa colocar em risco sua posição profissional.
Com criatividade e engenhosidade, as ativistas feministas compartilham informações e esclarecem dúvidas, mesmo em territórios onde os Estados, por falta de capacidade ou vontade, não conseguem atuar. Tudo isso influencia os processos e debates políticos e sociais em múltiplos níveis e, sobretudo, contribui para a desestigmatização e despenalização social do aborto.
Em outras palavras, graças a esses esforços coletivos coordenados, o aborto “saiu do armário”, da clandestinidade pedagógica, de sua conotação estigmatizada, para ocupar o primeiro plano nos debates cotidianos das pessoas, dos meios de comunicação e da agenda pública em vários países da região e em outras partes do mundo.
Nos últimos anos, o transnacionalismo histórico do feminismo latino-americano e caribenho pela legalização do aborto conseguiu se renovar e se aprofundar após o longo período de mobilizações e contra mobilizações que se seguiu à descriminalização do aborto na Cidade do México em 2007 e no Uruguai em 2012.
Na Argentina, a ação desses ativismos resultou na sanção, em 2020, da Lei nº 27.610, que legaliza a interrupção voluntária da gravidez no país até as 14 semanas de gestação. Essa conquista materializou as esperanças de feministas de todo o mundo e, embora não represente o fim da luta pela justiça reprodutiva, fortaleceu e motivou significativamente a defesa regional do direito ao aborto.
No México, desde 2019, iniciou-se uma onda de descriminalizações em nível subnacional, resultando atualmente em 17 das 32 entidades federativas com normas que permitem o aborto voluntário até as 12 semanas de gestação. Além disso, a Suprema Corte de Justiça da Nação do México se posicionou como uma aliada estratégica do movimento feminista ao decidir que a criminalização do aborto voluntário, assim como o sistema jurídico que regula o delito em nível federal, são inconstitucionais.
Por sua vez, na Colômbia, mais de 90 organizações e 200 ativistas se agruparam no movimento Causa Justa para exigir a eliminação do crime de aborto do Código Penal. Em resposta, a Corte Constitucional decidiu a favor da descriminalização do aborto em qualquer circunstância durante as primeiras 24 semanas de gestação.
Como se pode observar, na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, as organizações e coletivos feministas articulados transnacionalmente, mas situados em geografias diversas – de Baja California até a Terra do Fogo -, desenvolveram diferentes estratégias com alcances e sucessos variados.
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Não podemos deixar de mencionar as redes de acompanhamento, a incidência política em diferentes poderes e níveis de governo, o monitoramento feminista de políticas públicas relacionadas ao aborto, a produção de dados para impactar politicamente o direito ao aborto na região, a colaboração estratégica com organizações internacionais e os protestos massivos pelo aborto legal, livre, seguro e gratuito, entre outros.
Essas táticas feministas, que se estendem por todo o continente, além de servirem de inspiração para grupos e ativistas de outras regiões, se traduziram em conquistas que, por vezes, se materializam em legislações necessárias – embora insuficientes -, como as descriminalizações com base em meses de gestação que já mencionamos ou na ampliação das causas em que o aborto é permitido (as chamadas causales, em espanhol).
Exemplo disso é a lei brasileira sobre anencefalia vigente desde 2012, a aprovação da Lei 21.030 no Chile em 2017, que descriminalizou o aborto em três circunstâncias, e a decisão tomada em 2022 pela Assembleia Nacional do Equador que agora permite a interrupção da gravidez em casos de estupro.
Lutas em continuidade: os desafios regionais sobre o direito ao aborto
Além de renovar a esperança e inspirar outras demandas nacionais, a constante retroalimentação das lutas pelo direito ao aborto está moldada pelas realidades que nós, mulheres, vivenciamos em diferentes territórios. A partir de nossos corpos, experiências reprodutivas e existências, em um mundo marcado por injustiças patriarcais e capitalistas, a Campanha 28S e as diferentes articulações regionais que nos mobilizam a partir de contextos e latitudes diversas, definem sua razão de ser.
É o abuso contínuo de nossos corpos, tratados como objetos, seja para reprodução ou com fins sexuais, em vez de serem considerados autônomos e livres, que destaca a urgência de nossa luta.
Para citar alguns exemplos, no Brasil, dados governamentais analisados pela Rede Feminista de Saúde mostram que, de 2010 a 2019, 252.786 meninas entre 10 e 14 anos se tornaram mães, ou seja, 70 meninas a cada 24 horas. De acordo com a legislação brasileira, esses casos deveriam ser considerados estupro, uma das três situações em que o aborto é permitido no país.
No entanto, em vez de garantir o procedimento e mudar a devastadora realidade das “meninas mães”, em 2024, grupos conservadores utilizam o Poder Legislativo para aprovar com urgência uma lei que equipara o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio.
Caso seja aprovada, a situação das meninas grávidas, que geralmente descobrem a gravidez tardiamente devido ao desconhecimento sobre seu próprio corpo e às múltiplas violências a que estão sujeitas, se agravaria. Por enquanto, com a força da campanha “Criança não é mãe”, as feministas brasileiras conseguiram bloquear a votação do projeto de lei.
Na Argentina, os setores fundamentalistas atuam em escalas micro e macro. Por um lado, utilizam estratégias de ação direta para persuadir e assediar quem busca abortar, fornecendo informações falsas e um suposto atendimento que, na realidade, se trata de procedimentos tortuosos de disciplinamento.
Por outro lado, o governo de Javier Milei deixou clara sua posição antiaborto, emitindo uma série de opiniões que apoiam os grupos antidireitos e, sobretudo, privando os centros de saúde argentinos dos recursos necessários para realizar as interrupções voluntárias de gravidez.
No México, os congressos locais continuam impondo sérias restrições ao direito de decidir, seja por meio da recusa em legislar sobre o tema, seja ao promover retrocessos nas conquistas obtidas pelas coletivas e organizações feministas, mesmo quando suas ações contrariam o que foi determinado pelo tribunal superior de justiça do país.
Embora o aborto seja um procedimento feito em todo o mundo, independentemente do que dizem as leis sobre o assunto, os exemplos expostos mostram algo importante: nossos direitos estão sempre sob ameaça e nunca podem ser dados como garantidos.
Mesmo nos lugares onde a chama da Maré Verde que iluminou toda a região foi acesa e onde há pouco tempo celebramos os direitos conquistados, existem graves tentativas de desfazer o que nós feministas lutamos durante décadas para conquistar. Mesmo com essas ameaças, seguimos com a certeza sobre a força de nossas resistências, rebeldias e desobediências organizadas.
É essa força que nos lembra da importância das lutas coordenadas, da solidariedade em múltiplos locais, da reflexão coletiva constante e da força que emanamos quando estamos juntas.
28S: Uma luta vigente, urgente e (ainda) necessária que não tem fronteiras
As realidades impostas pelos setores conservadores, que buscam perpetuar o controle sobre nossos corpos e reforçar violências reprodutivas, mostram por que as lutas feministas pelo direito ao aborto persistem na América Latina e no Caribe, e por que a cada 28 de setembro tomamos as ruas com gritos de esperança e de uma raiva justa.
São com esses gritos, que exigimos, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, justiça para Beatriz, que teve que enfrentar e pagar com sua própria vida as consequências da penalização absoluta do aborto em El Salvador.
Este e muitos outros casos nos lembram que, embora tenhamos que celebrar e defender as novas legislações na Argentina, Colômbia e México, que responderam positivamente às demandas da Maré Verde, não devemos esquecer que a maioria dos países na região ainda possui leis que impõem sérias restrições à determinação, liberdade e autonomia sobre a decisão de maternar.
Esses são os casos de Brasil, Bolívia, Chile e Peru, onde existe uma interpretação restrita do direito ao aborto e só é permitido em determinadas circunstâncias. Ou os casos de Nicarágua, Jamaica, El Salvador, Haiti, Honduras, República Dominicana e Suriname, países que proíbem totalmente o aborto e que são responsáveis por mortes que poderiam ter sido evitadas, como aconteceu com Beatriz.
Os marcos normativos que limitam o direito ao aborto são uma consequência da falta de vontade política dos Estados e, sobretudo, da constante pressão exercida por grupos conservadores e antidireitos da região.
Sua influência nas legislações constitui uma de suas estratégias transnacionais mais proeminentes. Atores internacionais como a Igreja Católica e os neoconservadores evangélicos promovem um lobby legislativo para manter o status restritivo das leis sobre aborto e impedir o avanço de políticas públicas condizentes com a atualidade.
Essas ações conservadoras são feitas em desacordo com o reconhecido e recomendado por organismos internacionais como a Agenda 2030, agora chamada de Pacto do Futuro, o Comitê de Especialistas da Convenção de Belém do Pará, a Organização Mundial da Saúde, o Comitê Internacional de Direitos Humanos, o Comitê da CEDAW, entre outros.
Esses atores fundamentalistas, além de tentarem disseminar leis e práticas sociais conservadoras e retrógradas, se reconfiguram constantemente para dar força aos seus discursos contra a – assim por eles chamada – ideologia de gênero e atrair, por meio da desinformação, adeptos para sustentar o regime patriarcal internacional que se opõe à liberdade, à autonomia e à emancipação das mulheres e pessoas LGBTQIA+.
Embora essas políticas antigênero e contra os direitos reprodutivos sejam muitas vezes bloqueadas pelas organizações feministas, é inegável que um dos nossos maiores desafios é frear o avanço conservador que ameaça o direito ao aborto e também tudo o que desestabiliza esse sistema que historicamente nos colocou em posições desiguais e subordinadas.
Apesar de termos avançado muito, diante dessa disputa, a América Latina e o Caribe continuam sendo uma das regiões com maiores desigualdades e dificuldades para acessar abortos seguros, devido à ausência de políticas justas de acesso à informação e a serviços de saúde sexual e reprodutiva.
Esse panorama leva a gestações forçadas, maternidades indesejadas, projetos de vida interrompidos, meninas obrigadas a gestar e parir, mulheres privadas de liberdade por terem abortado, mesmo de forma espontânea, e outros tipos de injustiças que afetam principalmente as populações mais jovens, e aquelas pessoas empobrecidas, racializadas e vulnerabilizadas.
A misoginia dos setores que se opõem ao aborto é a mesma que reproduz discursos de ódio e nega as desigualdades de gênero, raciais e ambientais. Essas posturas antidireitos perpetuam práticas que foram, são e continuarão sendo denunciadas, repudiadas e transformadas por nós, feministas latino-americanas e caribenhas, neste e em todos os 28 de setembro.
Sabemos que o direito ao aborto gera resistências e polarizações políticas importantes. No entanto, do Brasil, México e Argentina utilizamos este 28S, uma data que nos une, para lembrar que não estamos sozinhas; temos uma rede que nos acolhe, que nos apoia e que não descansará até que cada mulher, menina e pessoa gestante seja completamente livre para decidir sobre seu próprio corpo.