Em muitas das relações entre pessoas brancas e negras, a branquitude é usada como um dispositivo de poder dentro das trocas afetivas entre os sujeitos.

Estes dias a Xuxa voltou a fazer uma fala racista que entrou no debate das redes. Entre os vários comentários que tentavam defendê-la, muitas pessoas citavam o fato dela ter namorado o Pelé para justificar que era impossível ela ser racista.

Aproveitei a polêmica para escrever um pouco sobre nosso racismo brasileiro, e a partir disto contar um pouco sobre uma das entrevistas que fiz em minha pesquisa sobre famílias interraciais[V1]  que resultou no livro “Famílias Interraciais: Tensões entre cor e amor”.

Como sabemos, o racismo no Brasil não se insere apenas nas relações entre indivíduos, ele é estrutural, e exatamente por se encontrar na superestrutura ele está presente em nossa distribuição de recursos econômicos, nossa forma de constituir o poder político, na nossa cultura e, portanto, nas formas de produzir significados e subjetividade, assim ele está em nossas relações afetivas, familiares e amorosas.

Voltando ao Pelé e a Xuxa, o que pretendo afirmar aqui é que[V2] se relacionar com uma pessoa negra não significa que esta pessoa[V3] não tenha preconceito racial e atitudes discriminatórias. Faria sentido para as leitoras mulheres, deste texto,[V4] ouvir de algum homem esta frase: Eu não sou machista, sou casado com uma mulher.[V5] Esta frase não faz sentido porque sabemos que muitos homens amam mulheres, são casados com elas, mas acham que estas devem trabalhar mais nos afazeres domésticos, cuidar dos filhos, estar sempre bonita e bem cuidada para agradá-lo, corresponder aos desejos sexuais dele, mesmo que sem vontade, e tantas outras coisas que assistimos em nosso dia a dia que pode chegar até ao assassinato.

O que quero argumentar aqui, é que relações afetivas não neutralizam as hierarquias sociais entre homens e mulheres, tampouco fazem com que a dominação não exista.

No caso entre pessoas brancas e negras isso também acontece (e não quero dizer que não possa haver amor, tampouco que não haja relações genuínas e igualitárias), mas, em muitas destas relações, a branquitude é usada como um dispositivo de poder dentro das trocas afetivas entre os sujeitos. Trago aqui o relato de Mariana [1] uma das entrevistadas para a[V6]  pesquisa, para elaborar com vocês o que quero argumentar. Mariana me contou que sua mãe branca vinha de uma família muito pobre, ela havia imigrado do Nordeste[V7] para São Paulo para trabalhar de doméstica, e usou o fato de ser branca e ter olhos azuis como única “posse” para, sendo uma mulher pobre e mãe solteira, na década de 70, “conseguir um casamento”.

Ela argumenta que o homem que a sua mãe havia escolhido como companheiro era negro, pois assim, acreditava a sua mãe, teria algo para dar em troca a brancura. Contudo, nos conta Mariana que, ao casar-se com este homem, a sua mãe usava o fato de ser branca para exercer violências intrafamiliares em situações cotidianas; ela e o seu pai eram xingados, pela mãe, de fedidos, de feios, de “cabelo ruim” entre tantas outras violências.

A relação desta mãe com o marido e com a filha, ao invés de ser um vetor para desconstrução e reelaboração do racismo, foi o espaço privilegiado para ele ser reposto. Apesar desta entrevista não apresentar dados suficientes para interpretar as razões pelas quais esta mulher, explicitamente racista, escolheu se relacionar com um homem negro e, posteriormente, gerar filhos desta relação, é possível perceber, pela fala da filha, que há nestas escolhas uma possibilidade de exercer um poder que ela não encontra fora das relações intrafamiliares. Ou seja, o discurso da branquitude aparece como um dos únicos dispositivos de poder para uma mulher muito vulnerável à situação de pobreza e à discriminação de gênero apontada anteriormente, acerca da condição de ser expulsa de casa por ser “mãe solteira”. Nesta mesma direção, a própria filha constrói uma hipótese sobre as razões da mãe para escolher parceiros afetivo-sexuais negros.

“O estranho é que minha mãe só se relaciona com homens negros. O pai da minha irmã mais velha também era negro, e os outros homens que ela teve depois do meu pai são todos negros. Acho que ela se relaciona com homens negros porque ela se sente superior a eles. É uma forma de ela dizer que ela é superior aqueles homens. Ele se expressava de uma forma muito violenta. Então ela demonstrava que ela tinha raiva”.

As hipóteses de Mariana sobre as escolhas da mãe nos levam ao sociólogo W. E. B. Du Bois quando ele apresenta uma dinâmica que entrelaça as categorias de raça, classe e status para compreender o porquê dos trabalhadores brancos e pobres aceitarem a raça e o racismo como divisor da classe trabalhadora norte-americana. Para ele, esta foi uma forma de se apropriar de benefícios que anteriormente eram dados apenas aos brancos ricos.

Du Bois (2003) nomeia esses benefícios de salário público e psicológico da brancura, que resultam em acessos a bens materiais e simbólicos que os negros não podem compartilhar. Ou seja, os brancos pobres, ao aceitarem a raça como um divisor dessa classe aproximam-se dos brancos de todas as outras classes sociais, dividindo com estes os mesmos acessos a lugares públicos, simbólicos e, portanto, o status dado à branquitude. Assim, voltando para o caso de Mariana, a branquitude concede à esta mãe um status dentro das relações interpessoais com negros que ela não alcança em decorrência da condição de classe e gênero no mundo exterior.

Contudo, a hipótese de que se relacionar com negros colocaria esta mãe em um lugar de superioridade no interior da dinâmica familiar, não é o suficiente para compreender como uma mulher explicitamente racista optaria por se relacionar somente com homens negros. O “racismo aversivo” seria, neste sentido, impeditivo para uma aproximação sexual. Assim, é preciso pensar nos estereótipos construídos no ocidente a respeito do comportamento sexual e matrimonial de homens e mulheres de diferentes grupos raciais, tais como: a virilidade e masculinidade dos homens negros (FANON, 1980), a pré-disposição desse grupo à escolha de parceiras brancas (SILVA, 1987; ALVES, 2010), a sub-representação de mulheres negras no “mercado matrimonial” (TELLES, 2003), a erotização exacerbada da mulher negra (SILVA, 1987) e a “angelicalidade” e ideal de beleza como um valor para mulheres brancas. (MOUTINHO, 2004; SCHUCMAN, 2012).

Nesta perspectiva, talvez a ideia apontada por Fanon (1980) de que o negro representaria, através da dicotomia entre cultura e natureza construída no ocidente, o homem primitivo, hipersexualizado, viril e canibal no qual as fantasias eróticas femininas poderiam ser mais facilmente realizadas, talvez seja a chave para compreender a forma objetal na qual Xuxa ou esta mãe se relacionou com os homens negros.

Ainda que seja apenas uma hipótese de que esta mãe ou a Xuxa se relacione com negros através dos estereótipos sexuais e do fetiche, arrisco dizer que essa posição entre desejo e dominação, apresentada por esta filha sobre a relação de sua mãe com o homem negro, em particular com seu pai, se apresenta tal qual a construção estereotipada ambivalente que se fez do negro no ocidente. Nesta perspectiva, argumenta que nesta representação racista o simbólico o apresenta como, ao mesmo tempo, viril e possível de dominação, assim:

“O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador das forças sociais. (Bhabha 2007, p. 126)

Concordo com Bhabha quando ele afirma que o ato de estereotipar não é apenas a construção de uma “falsa imagem”, mas sim um “texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes ‘oficiais’ e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista”(BHABHA, 2007, p. 124-125).

Ou seja, essa mãe, ao se relacionar com negros, sobrepõe suas fantasias e projeções racistas construindo posições para cada membro da família, não pelo que de fato estes sujeitos poderiam vir a ser, mas sim, a partir de lugares sociais pré-concebidos pelo discurso racial vigente em nossa sociedade, repetindo, assim, no interior da família, todas as hierarquias e violências raciais existentes no tecido social brasileiro.

Enfim, trago essa narrativa, e poderia trazer tantas outras para que definitivamente os argumentos de proximidade entre brancos e negros, como salvos conduto para dizer-se antirracista possa, por fim, ser substituído por outras hipóteses. Melhor seria perguntar: O que queria Xuxa, quando não tinha nada além de olhos azuis, ao se relacionar com Pelé?  

Referências

ALVES, L. Significados de ser branco – a brancura no corpo e para além dele. 2010. 193 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.

DU BOIS, W. E. B. The souls of black folk. New York: Barnes & Noble, 2003.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1980.

.SILVA, N. do V. Distância social e casamento inter-racial no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 14, p. 54-84, 1987.

TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.


[1] Nome ficticio


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  • Lia Vainer Schucman

    Lia Vainer Schucman é doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2012) com estagio de Doutoramento no...

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