Por Sueli Valongueiro.

É sempre um desafio falar da violência sexual contra meninas, quando é evidente que a maioria da população adulta tem conhecimento dessa realidade, seja porque tem acesso à informação, seja porque conhece alguma menina que foi violentada, seja por ter vivido esse tipo de violência em seu próprio corpo. 

A cada 8 minutos um estupro acontece no Brasil. Destes, 58,8% das vítimas têm no máximo 13 anos e 85,7% são do sexo feminino. Crianças e adolescentes já são vitimizadas na sua maioria por serem do sexo feminino e sua condição é agravada pela discriminação étnico-racial. Este é um fenômeno antigo que se mantém ano após ano, encoberto pela sociedade e ocultado por famílias das mais variadas classes sociais e credos.

Famílias que decidem não escutar as meninas, camuflar a violência, fazer vista grossa ao que acontece e, assim, seguir protegendo e fortalecendo parentes abusadores e estupradores em prol de uma falsa ideia de família. 

Estima-se que apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes sejam, de fato, notificados às autoridades. Levantamento feito pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, em 2020, observou que a violência sexual acontece na casa da própria vítima ou do suspeito em 73% dos casos e em 40% das denúncias a violência é cometida por pai ou padrasto.

Por outro lado, o Estado é igualmente responsável quando não cria mecanismos rígidos para proteção das meninas e punição dos criminosos. O Brasil tem, aproximadamente, 45 milhões de adolescentes na faixa etária entre 10 e 19 anos. Apesar da força dos movimentos sociais na proposição e controle social das políticas públicas e do Brasil ser signatário das conferências internacionais que salvaguardam e constroem metas de avanço no campo dos direitos, estes ainda não são uma realidade na vida das adolescentes brasileiras, em especial as meninas negras e pobres. 

O recrudescimento dos ataques aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil segue na contramão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, em especial no que se refere a “Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas”, o que inclui a exploração sexual.

Se focarmos nos dados de estupros e gravidezes não interrompidas entre meninas, evidencia-se outra violação de direitos a que estão submetidas, uma vez que os números de aborto legal não correspondem ao de gravidezes por estupros notificados. Entre os anos de 2011 e 2016, 10.814 crianças nasceram de mães com notificação de estupro, sendo 3.276 de mães na faixa etária de 10 a 14 anos. A proteção da infância livre da maternidade resultado de estupro é dever do Estado, mas ainda não é assegurada para todas as meninas.  

É preciso garantir que meninas tenham acesso à informação segura e confiável, sem o filtro de crenças religiosas, sem que interesses econômicos e políticos interfiram na vivência de seus direitos humanos, em especial os direitos sexuais e reprodutivos e o direito de viver sem violências. 

A maioria das meninas que o Grupo Curumim tem acolhido em suas ações educativas, apesar de sofrerem algum tipo de violação de direitos, desconhecem seus direitos, os instrumentos e serviços de acolhimento para casos de violência sexual, assim como a luta dos movimentos sociais e grupos que atuam na defesa destes direitos. Vulneráveis, sem informação e, na maioria das vezes, coagidas, meninas seguem sofrendo abusos, mantendo-se na solidão e presas ao cotidiano de violências.       

A política do atual Governo Federal, que pretende proibir a discussão de gênero e educação sexual nas escolas públicas e propaga em campanha a abstinência sexual para adolescentes, tem sido desleal com as meninas, uma vez que nega a elas o acesso à informação, indispensável na identificação da violência e no exercício da luta por direitos. Por outro lado, a atual política também não garante os direitos sexuais e reprodutivos, o que a torna um desserviço para o enfretamento à violência sexual contra meninas.

*Sueli Valongueiro é educadora e coordenadora do Programa Cunhatã do Grupo Curumim. O programa Cunhatã (adolescente em Tupi Guarani) desenvolve ações educativas e de formação política dirigida às mulheres, adolescentes e jovens para o exercício da cidadania e ampliação dos direitos civis, sociais, econômicos, políticos e culturais.

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