Alerta de gatilho: este conteúdo contém relato sobre memórias de violência sexual infantil

A história da menina estuprada desde os seis anos e grávida aos dez aflorou memórias dolorosas em milhares de mulheres. Meninas não são mães.

O ato de pedofilia, caracterizado legalmente como “estupro de vulnerável”, é um crime hediondo. Viola a inocência de uma criança que não tem condições de processar e se defender da violência a qual foi exposta. Infelizmente, os casos são muito mais comuns do que se pode imaginar.  Uma trágica experiência compartilhada por milhares de mulheres e também homens.

Eu acredito em Justiça Restaurativa. E toda a atenção e cuidado devem ser dedicados à criança vítima de violência. É ela que precisa ter sua vida restaurada. Ao mesmo tempo, se a intenção é realmente impedir que outras crianças sejam vítimas é preciso falar sobre patriarcado, machismo estrutural e cultura no estupro.

Chamar um homem que violenta uma criança de “monstro” demonstra que percebemos a crueldade que é o estupro de uma criança. Ao mesmo tempo, transformar o abusador em um “monstro abominável”, faz parecer que o fato é isolado e atrelado somente a famílias pobres e disfuncionais. Faz parecer que ao encarcerar o “monstro” pervertido, retira-se cirurgicamente essa chaga da sociedade. Nada mais longe da realidade.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no país. A cada dia, noventa e seis crianças são violentadas no Brasil. Sou grata aos indignados e pela visibilidade que o caso teve. Ao mesmo tempo, acreditar que esse crime é um caso isolado cometido por um “monstro pervertido” é não perceber os efeitos nefastos da cultura do estupro.

Eu fui estuprada aos seis anos.

Ao longo da vida, conheci homens e muitas mulheres que sofreram violência sexual na infância. Nas vezes que compartilhei esse trecho assombrado da minha história, recebi como eco ao menos um novo relato.  Ao acreditar que existem “monstros” lá fora que podem ser extintos da sociedade, não se contribui para ser parte da solução. Toda mulher que se percebe numa rua mais vazia com um homem, sente medo de ser assediada ou estuprada.  É um medo ancestral. Somos netas e filhas de estupro. As mulheres querem ter seus corpos respeitados. Querem ter o poder de decisão e direito de escolha sobre seus corpos.

Crianças são vulneráveis. Crianças estão descobrindo suas sensações corporais. A figura do abusador, na maior parte das vezes, pertence à família ou é muito próximo. É uma figura de confiança da criança. Pode ser alguém que ela admira e por quem tem afeto. Por isso, é tão importante a educação sexual nas escolas. As crianças estão descobrindo seus corpos e precisam de orientação para lidar com essas descobertas e se proteger de contatos inapropriados.

O nosso segredo

Eu era uma criança solitária. Em pouco tempo depois do meu nascimento, minha mãe passou a viver com o meu padrasto. Até os três anos acreditei que ele era meu pai. Ele era alcoolista, autor de violência e se revezava entre várias famílias e filhos. Cresci num lar de gritos e objetos voadores. Brigas eram uma constante, violência física também. Algumas vezes minha mãe me pegou pelo braço e saiu correndo de casa comigo. Ela era uma guerreira que mantinha a casa trabalhando, o dia todo, como cabeleireira.

Eu era uma presa fácil. Aos seis anos uma criança carente que ansiava por um pai. Apesar das brigas e do caos doméstico, era meu padrasto, quando estava sóbrio, que me contava histórias e brincava comigo.

Em dias que minha mãe não estava em casa ou estava dormindo (ela tomava antidepressivo e dormia longa e pesadamente) acontecia o “nosso segredo”.

Lembro de tomarmos banho juntos e ele me deitar na cama nua. Ele abraçava e tocava meu corpo. A sensação era muito boa. Além do prazer físico eu me sentia vista, valorizada e amada por um adulto. Eu tinha um pai.

No livro “Eu sei porque o pássaro canta na gaiola”, Maya Angelou relata a violência sexual que sofreu na infância: “Ele me abraçou com tanto carinho que desejei que nunca me soltasse. Eu me sentia em casa. Pelo jeito como ele estava me abraçando, soube que nunca me soltaria nem deixaria nada de ruim acontecer comigo. Ele devia ser meu verdadeiro pai e nós finalmente tínhamos nos encontrado”.

Meu padrasto sempre me lembrava entre abraços e carícias que esse era o “nosso segredo”. Dizia que me amava mais do que as próprias filhas e que não queria que ninguém atrapalhasse as nossas brincadeiras. Prometia-me chocolate e presentes. Eu me sentia vista, valorizada e amada.

Nem tudo era prazeroso. Ele me pedia para tocar seu pênis. Depois me pedia para beijar seu membro e engoli-lo. Eu sentia como se fosse engasgar. Ele pegava minha cabeça e segurava com força para me manter em movimento. Sentia um gosto amargo e azedo descendo pela minha garganta. Um sabor pegajoso e com retro gosto que embrulhava minhas vísceras por horas. Quando me mostrava relutante, ele me lembrava que isso era parte do “nosso segredo”. Brincadeira entre pai e filha. Prometia-me mais chocolates e presentes. Lembrava-me que eu era a sua princesinha.

Eu fiquei menstruada aos dez anos. Se o estupro tivesse continuado, eu poderia ter ficado grávida aos dez anos.

Também aconteceu comigo… e comigo!

Dias depois do meu aniversário de quinze anos tive uma crise de choro na sala de aula. Eu já morava em Florianópolis. E minha mãe e meu padrasto já estavam separados. Um fantasma havia despertado na minha mente. Flashes me assombravam. Como o choro persistia, duas colegas, Camila e Mariana, me tiraram da sala. Elas perguntaram por que eu estava daquele jeito. Engasgada e tateando as palavras, eu finalmente vomitei: Eu fui abusada pelo meu padrasto aos seis anos. Houve pausa. O silêncio angustiante, durou a eternidade. Eu havia feito uma revelação terrível e ansiava por uma resposta.  Mariana gritou: aconteceu comigo. Camila respondeu: e comigo também. Novo silêncio. Assombro. Reconhecimento. Fiquei tão impactada que parei de chorar.

Camila, assim como eu, foi estuprada pelo padrasto. Ela ainda convivia com ele e tinha seu nome no registro de nascimento. Mariana foi violada por um vizinho, grande amigo do seu pai. As famílias eram bem próximas e ainda conviviam. Mariana havia confessado essa situação ao padre que afirmou que ela fez bem em manter esse segredo, pois teria destruído uma família.

O padre é uma figura pública conhecida. Quando o vejo me pergunto se ele ainda pensa dessa forma. Pergunto-me: como a igreja pode incentivar o silenciamento das mulheres? Como as instituições culpabilizam a vítima e protegem o estuprador pelo bem das famílias. O pacto social é o silêncio.

Ao ouvir Camila e Mariana percebi o significado de humanidade compartilhada. A dor ainda estava lá e ao mesmo tempo recebi ressonância, amizade e empatia. Eu não era a única. Senti conexão e pertencimento. Eu me perguntava quantas mais haveriam. Será que em nossa sala de aula, outras meninas tinham sofrido violência sexual?

Naquele dia, nós três criamos uma irmandade, Calima, a junção de sílabas dos nossos nomes. Foi um encontro profundo. Um espaço de troca, amor, sororidade e resistência. Eu era compreendida. Esse encontro me fez perceber que eu queria impedir que outras crianças fossem violentadas.

Eu era uma adolescente que se enfeava por medo dos olhares masculinos. Adicionava quilos a balança por medo de ser atrativa. Aos 15 anos eu podia sentir os efeitos nefastos do que meu padrasto chamava de “nosso segredo”. Eu sentia uma imensa culpa. Culpa por ter sentido prazer. Acreditava que eu havia seduzido o meu padrasto. Culpa e muita vergonha por ter ansiado ficar sozinha com ele e receber seu abraço, colo e carinho. Acreditava que com seis anos havia dado sinais errados a um homem de quarenta anos. Levei tempo para compreender que eu queria colo e afeto de pai. Que na verdade ele havia se aproveitado da minha inocência e carência para me violentar.

Era muito difícil lidar com o fato de que ele não havia me batido, nem ameaçado fisicamente.  E pior, que eu adorava a sensação de estar com ele. A dor da constatação de ter vivido uma experiência que eu não tinha condições de elaborar, fez com que eu não conseguisse confiar nos homens. Fiquei anos sem permitir que um homem se aproximasse de mim.

Descobri amigas e amigos violados na infância. Ouvi histórias devastadoras. Além da irmandade Calima, vivenciei mais encontros de amigos, nos quais descobrimos que todos do grupo tinham sido vítimas de violência sexual.

Minha mãe foi estuprada pelo próprio pai

Aos vinte e cinco anos, minha mãe estava reatando com o meu padrasto. Tivemos uma discussão e eu finalmente contei. Ela respondeu que acreditava que eu era uma criança pura. Acreditava que eu era diferente dela. Minha mãe foi estuprada pelo pai. E também pelo padrasto. Foi expulsa de casa aos sete anos pela minha avó, que a enxergava como uma concorrente para o seu novo marido. Minha mãe explicou que não era uma criança pura porque gostava do que fazia na infância com seu padrasto. Percebi o tamanho do fosso. Minha mãe não entendia que as crianças possuem sexualidade e sentem prazer com o toque. Ela não percebia que também tinha sido violentada. Ela se percebia como amante do segundo marido da sua mãe. Ela achava que era impura por ser uma criança com desejos e que sentia prazer. Ela não percebia que havia uma relação de poder violenta entre um homem adulto e uma menina.

Ela acreditava na fantasia de que era uma criança com muita sexualidade e por isso havia sido abusada. A culpa era dela. Foi punida por seu corpo sentir prazer. Ouvir isso era um gatilho. Com toda terapia, uma parte de mim ainda acreditava que havia seduzido um homem de quarenta anos.

Nas últimas semanas relembrei essa cena ao ler alguns comentários sobre a menina com dez anos violentada ao longo de quatro anos. Pessoas afirmando que a menina e o tio tinham uma relação consensual, tendo em vista que já durava quatro anos e pelo fato dela não ter denunciado antes.

Como alguém é capaz de falar em relação consensual quando uma criança, vulnerável e incapaz tem sua infância e inocência roubada por um adulto que ao invés de abusar, deveria cuidar dela.

Como é possível em dois mil e vinte, alguém ainda acreditar que a criança pode se responsabilizar sobre seus atos.  É urgente a educação sexual. A maior parte dos casos acontece em casa. Durante a infância a criança está descobrindo seu corpo. Sensações. Prazer. É importante que receba orientação adequada para entender os processos do seu corpo e para que possa saber como se resguardar e defender.

Meu padrasto era alcoolista, narcisista e autor de violência. Ele tinha várias famílias. Havia ficado noivo de uma adolescente que ajudava a me cuidar na primeira infância. Ainda assim, quando contei, quase todos me perguntaram se eu tinha certeza. Se eu não estava fazendo confusão sobre quem teria me violado. Apesar do seu histórico, as pessoas não conseguiam enxergá-lo como pedófilo. Ele não se encaixava na categoria “monstro” pervertido.  Esse é um fator de extrema relevância no silêncio das vítimas.

No geral, os adultos não acreditam.  Ouvi tantas histórias de crianças silenciadas. Se com todo histórico de violência do meu padrasto, eu fui questionada. Imagine acreditar que um pai de família exemplar seria capaz de cometer tamanha atrocidade.

Meninas em fase de crescimento, ainda são acusadas de seduzir homens adultos. Por vezes, mulheres adultas sentem ciúme e raiva delas.

Quem pode ouvir esse silêncio coletivo?

Felizmente, a indignação gerada pela história da menina de dez anos grávida é prova de que a sociedade está evoluindo. Nem sempre as mães se separam dos pais ou padrastos. Quase nunca os avôs, tios, primos e próximos são expostos e retirados do convívio familiar. Cria-se uma cisão, um mal-estar. Você reúne forças para revelar algo tão devastador e se quiser continuar fazendo parte da família precisa conviver com o estuprador.  A vítima é convidada a perdoar em nome do bem estar familiar.  Você pode ser acusada de ser uma pessoa difícil e por vezes, sugerem que deixe o passado para trás. Aqueles mesmos que acreditam que os pedófilos são “monstros” pervertidos, quando descobrem que ele mora em casa ou faz parte da família clamam pela benevolência e silêncio da vítima.

Meu lugar de fala é de alguém atravessada pela violência sexual. De alguém que sentiu na pele os efeitos devastadores do estupro. De alguém que já ouviu diversos relatos de estupro. Essa é uma ferida que não cicatriza completamente.

De tempos em tempos, ela aflora. Com tempo, cuidado, apoio e terapia você aprende a não ser refém dessa dor. Você desenvolve musculatura para se acolher e embalar. Para se lembrar de que você é muito mais do que aquilo que fizeram com você. Aos 40 anos, agradeço por toda rede de apoio, tanto de amigos quanto de profissionais qualificados que me ajudaram a ser mais que uma sobrevivente. A ser uma pessoa feliz. Agradeço ao meu parceiro de vida que com amor e paciência lida com minha necessidade de segurança e medo de entrega. Ninguém se cura sozinho.

As vozes de vítimas silenciadas estão emergindo. É preciso ouvir, lidar e aprender com o desconforto trazido pelas revelações. Não perguntem por que só agora ou digam algo que possa justificar a violência. O convite é ouvir em silêncio e com toda a atenção a história e a dor do outro. O silêncio cria espaço de transformação.

Embora não seja normal, nem aceitável, a violência sexual atravessa a vida de uma infinidade de pessoas. Tratar a situação como bizarra ou surreal faz com que a vítima se perceba inadequada. Faz parecer que você foi escolhida para receber um castigo terrível. Faz parecer que a situação é rara. Exime-nos da responsabilidade de nos repensarmos como sociedade. De perceber que propagandas nas quais mulheres são objetos sedutores e de ostentação masculina, colaboram para que homens se sintam no direito de se utilizar como bem entender de seus corpos.

Colaboram para colocar a mulher no lugar de objeto que está ali para satisfazer os desejos do macho poderoso. Contribui para colocar a mulher no papel do objeto sedutor e o homem como viril pegador. Contribui para manutenção do patriarcado.

É preciso refletir sobre uma série de questões, pois os ditos “monstros” são na verdade pais, irmãos, tios, padrastos, avós, primos e vizinhos. Não acredito que todo homem é um estuprador em potencial. No entanto, a reincidência mostra que há algo de estrutural no fenômeno. Vivemos numa cultura que legitima o direito de os homens disporem sobre os corpos das mulheres.

É inconcebível chamar de assassina uma menina de dez anos que teve sua infância roubada e foi vítima de um crime hediondo por decidir interromper uma gravidez. Uma criança de dez anos não é mãe.

Meninas e mulheres reivindicam o direito de decidir sobre suas vidas e seus corpos. Clamam para que parem de nos violar, espancar e matar. Não seremos mais silenciadas. É urgente como sociedade que se possa avançar no debate sobre patriarcado, machismo estrutural e cultura do estupro.

* Aline Covolo Ravara é pedagoga, geniterapeuta e psicoaromaterapeuta. Servidora Pública da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC). Pós-Graduada em Transformação de Conflitos e Estudos de Paz com Ênfase no Equilíbrio Emocional pela Associação Vitoriana de Ensino Superior (Favi) em parceria com a Paz & Mente, Cátedra de Paz da UNESCO, Innsbruck e Instituto Santa Bárbara. Estudante e praticante de biodança, meditação e comunicação não violenta. Apaixonada pela alma humana e pelas conversas significativas. Oferece sua voz para cocriar um mundo mais justo, diverso e inclusivo.

** Os nomes foram alterados para preservar a identidade das pessoas citadas.

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