A Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina, amanheceu nesta segunda-feira (9) com vários pontos de alagamento e estradas interditadas. A situação já complicada devido às intensas chuvas no estado foi agravada pelo fechamento das duas comportas da Barragem de José Boiteux, que está situada dentro da área tradicional. Algumas das dez aldeias que compõem esse território encontram-se isoladas, enfrentando carência de alimentos, água potável e produtos de higiene.

O governo estadual tomou a decisão de fechar a barragem, que não recebe manutenção há quase uma década, sem cumprir um acordo de assistência de emergência previamente estabelecido entre líderes indígenas e autoridades governamentais no sábado (7).

Para concretizar o fechamento da maior barragem de contenção de cheias de Santa Catarina, que ajuda a controlar o nível do Rio Itajaí Açu no Vale do Itajaí, a Polícia Militar abriu confronto contra indígenas que protestavam contra o descumprimento da negociação, usando spray de pimenta e balas de borracha. 

Ingrid Sateré Mawé, liderança da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), denuncia a violência psicológica e física a que o povo Laklãnõ Xokleng foi submetido. “Um indígena foi atingido por uma bala de fogo durante a resistência. O povo está apavorado, desconfiando de tudo e de todos. Quando foi dada entrada do parente baleado no Hospital de Ibirama, não foi questionado nada, nem foi feito o registro do boletim de ocorrência”, afirma.

A liderança está acompanhando uma comitiva do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) que chegou ao território na manhã desta segunda-feira. A comitiva inclui Kerexu Yxapyry, Secretária de Direitos Ambientais e Territoriais, Marcos Kaingang, do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Indígenas, e Ana Patte, assessora Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos.

O Ministério Público Federal (MPF) vai investigar a atuação da força policial neste conflito. Em relação ao uso da arma de fogo pelos policiais, Kerexu disse que é uma questão gravíssima. “Essas cápsulas de arma de fogo devem ser investigadas. Nesta terça-feira um delegado da Polícia Federal vai acompanhar o caso”, afirma. 

Após a chegada, o grupo se reuniu com representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da prefeitura de José Boiteux, da Articulação dos Povos Indígenas (Apib) e da Secretaria Estadual de Assistência Social do Governo de Santa Catarina.

“A população da cidade está muito assustada com o  fechamento dessa barragem. Discutimos que o fechamento dela poderia gerar uma situação muito pior, que seria o seu rompimento”, explica Sateré Mawé. 

Violência policial atinge povo Laklãnõ Xokleng em Santa Catarina
Material usado pela força policial durante operação. Foto: Juventude Xokleng.

Governo precisa apresentar laudo técnico sobre segurança de barragem 

Segundo o Conselho Indigenista Missionário, desde a última quarta-feira (4), os Laklãnõ Xokleng estão com dificuldades de acesso à água potável e a principal via de acesso à cidade de José Boiteux está bloqueada devido ao aumento do nível do lago da barragem. O Plano de Contingência para Eventos Hidrológicos e Geológicos na Comunidade Indígena – Barragem Norte deveria ter sido acionado desde então, com o fornecimento de itens de auxílio como cestas básicas e transporte coletivo. 

Na negociação feita no sábado, as lideranças indígenas estabeleceram um acordo com o prefeito de José Boiteux, Adair Antônio Stollmeier; a Defesa Civil do Estado de Santa Catarina, e o Secretário da Infraestrutura e Mobilidade do Estado, Jerry Comper, que estabelecia medidas indispensáveis para garantir a segurança dos povos que vivem perto da barragem.

Entre elas, a desobstrução e melhoria das estradas, equipe de atendimento de saúde em postos 24 horas, três barcos para locomoção da comunidade até a cidade, fornecimento de água potável e cestas básicas. Ficou determinada ainda a elaboração de cronograma para a construção de novas casas para famílias afetadas pelo fechamento da barragem. 

No entanto, de acordo com o MPI, a maior parte das demandas não foi cumprida. Essas demandas foram reiteradas em uma audiência realizada no domingo, em Blumenau (SC), perante a Justiça Federal, e deverão ser atendidas em até 48 horas.

O Governo também recebeu o prazo de um dia para apresentar o laudo técnico da barragem. Durante a audiência online, Kerexu Yxapyry lembrou que o problema com a barragem remonta a muito tempo, desde as falhas no processo de licenciamento ambiental para sua construção, e alertou sobre a falta de segurança das comportas. 

Samuel Priprá, estudante de pedagogia no Instituto Federal Catarinense, informou que a principal preocupação atual da comunidade indígena é a interdição das estradas e a falta de alimentos, água potável e produtos de higiene.

“Há pessoas ajudando e fazendo arrecadações”, disse. Na tarde desta segunda-feira, o Governo de Santa Catarina anunciou o início da distribuição de cestas básicas e água potável, que deverá continuar ao longo da semana.

Em declarações sobre o caso, Jorginho Mello (Partido Liberal) afirmou que todos os itens reivindicados pelos indígenas seriam atendidos pelo Governo. “Enviamos tudo o que eles pediram, desde mais de 900 cestas básicas até uma ambulância que já está no posto da PM de José Boiteux, além disso, seguiremos investindo em melhorias de infraestrutura, principalmente, e de convivência social que aquela comunidade pede há mais de 20 anos”, disse o governador. 

Reunião entre comitiva do MPI, representantes governamentais e lideranças. Foto: Ingrid Sateré Mawé.

Barragem Norte: 50 anos de impactos negativos para os indígenas

De acordo com o Censo de 2022, na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, residem 2.074 pessoas, incluindo as etnias Laklãnõ Xokleng, Kaingang e Guarani. 

A Barragem Norte foi construída na década de 1970 sem o consentimento da comunidade, com o objetivo de conter as enchentes do Rio Itajaí. Uma das principais consequências dessa barragem para o povo, conforme relatado na dissertação de Walderes Coctá Priprá, mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o surgimento de uma nova organização social, com a criação de diferentes aldeias dentro do território, antes composto por uma. 

“Logo após a primeira cheia, no final da década de 1970, ocorreram muitas perdas e o povo se viu obrigado a procurar outros locais para morar. Assim nascem as aldeias e uma nova organização social. Com a criação das aldeias, os anciãos não conseguem mais reunir os jovens e as crianças como de costume na calada noite ao redor do fogo para contar a história do nosso povo”, diz um trecho do estudo. 

Antes da construção da barragem,  o rio desempenhava um papel fundamental como fonte de alimento, proporcionando sustento para diversas famílias. As pessoas habitavam suas margens, utilizavam sua terra para cultivo e criavam animais.

No entanto, com a implementação da estrutura, a subsistência da comunidade foi severamente prejudicada, assim como a preservação de sua história e tradições. O afastamento entre as aldeias, e a restrição de movimento entre elas durante as épocas de cheias, tem um impacto direto na vida dos povos indígenas.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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