Co-autoria de Ana L. López Villegas 

Numa segunda-feira, uma jovem de 16 anos foi abordada por um desconhecido quando subia as escadas do metrô (Cidade do México). O desconhecido interrompeu a ação da jovem e, em seguida, ameaçou-a com uma arma, forçando a jovem a entrar numa camioneta preta. No intervalo de 40 minutos em que esteve no veículo, a jovem foi estuprada e logo deixada no asfalto pelos violadores (fonte: Terceira Via, texto adaptado).

 No mês passado, moradores de um bairro da Cidade do México encontraram um corpo encoberto por um saco de plástico, dentro de uma lata de lixo numa calçada. O corpo sem vida era de uma estudante de graduação que nesse dia não chegou à sala de aula. A jovem, interrompida de seu projeto de vida, foi assassinada brutalmente aos 22 anos de idade (fonte: jornais locais, texto adaptado).

 No dia 6 de junho, a mãe de dois filhos que trabalhava esporadicamente em eventos (festas, batizados, reuniões, etc.) não retornou à sua casa. Nessa noite, as câmeras de segurança colocadas em direção à avenida, registraram seu corpo sendo jogado para fora de um guincho, e em seguida, o motorista ao fugir do local passa com o carro sobre a vítima já falecida (fonte: jornais locais, texto adaptado).

Atualmente, nove mulheres são assassinadas brutalmente todos os dias, de acordo com o monitoramento realizado pelas organizações governamentais e não-governamentais. Em comparação com os índices registrados no mesmo período de 2018, tivemos um aumento de duas mortes por dia. Esse aumento expressivo dos feminicídios no país tem sido acompanhado pelo aumento de crueldade e perversidade escritas nos corpos das mulheres brutalmente assassinadas.

O que é a violência feminicida?

Os crimes de extrema violência letal ao gênero feminino, categorizados como feminicídios, representam a expressão máxima da violência feminicida. Ambas categorias têm corroborado para situar o conteúdo diferenciado dos delitos cometidos contra as mulheres no contexto mexicano.

A violência feminicida conceitualmente surge nos debates sobre os feminicídios na Cidade Juárez. Entrou em vigor em 2007, na Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência (LGAMLV). Nela a violência feminicida consiste na “forma extrema de violência de gênero contra as mulheres, produto da violação de seus direitos humanos, nos âmbitos público e privado, conformada pelo conjunto de condutas que resultam em misoginia, impunidade, tolerância social e do Estado e que podem culminar com o homicídio e outras formas de morte violenta das mulheres”.

No entanto, nos últimos anos a violência feminicida tem suscitado muitas questões no campo jurídico e na sociedade de modo geral. Apesar de sua categorização e vigência nas formas da lei há mais de uma década, o comportamento multiplicador dos assassinatos, das desaparições, das torturas, do tráfico de mulheres para a exploração sexual e de mutilações das vítimas têm superado motivos causais aparentes.

Na análise da socióloga feminista Itandehui Reyes-Díaz, entrevistada pelo Portal Catarinas, a violência feminicida no cenário mais recente do país tem se manifestado por meio de um continuum de violências conectadas. Sua aposta em nomear o continuum “nos permite olhar para as relações de dominação de longa data, onde a dimensão patriarcal está articulada com a espoliação capitalista”. No entanto, ressalta que esse continuum “não se apresenta com a mesma densidade em todas as mulheres, depende do lugar que ocupemos nas relações de dominação (coloniais, patriarcais e capitalistas) e também da posição de desafio frente ao regime heterossexual”.

Marcha no centro histórico da Cidade do México, Alto aos Feminicídios/Foto: Desinformémonos

Ela nos relata a urgência de uma leitura conectada entre o aumento quantitativo com o aumento qualitativo da violência feminicida, pois tem sido evidente que a crescente paramilitarização dos territórios, bem como os ataques à vida, tem se recrudescido na última década. Além disso, para ela se faz necessário uma retomada do conteúdo político do que significa violência feminicida e ordená-lo num lineamento histórico dessa realidade. A socióloga tem observado um vínculo entre a violência feminicida hoje com as práticas e técnicas violentas do passado escritas nos manuais de contra insurgência, onde a “violência sexual, mas não somente, contra a mulher era usada como um dispositivo que educa o conjunto da população para quebrar o tecido frágil da comunidade social”.

Ainda na descrição da socióloga: “existem registros que quanto maior a presença de corpos policiais e militares, aumenta o número de desaparições de mulheres e de feminicídios”. Ou seja, a violência feminicida na esfera íntima-doméstica não está desconectada da agudização das condições materiais da população como um todo. “Essa produção de homens violentos que precisam se reafirmar através de armas e da ostentação de caminhonetes – símbolos de poder e hierarquia territorial, tem correlação com o momento de militarização e paramilitarização em nossas geografias” – argumenta Itandehui.

De acordo com a entrevistada, as consequências da militarização e da paramilitarização nos territórios não está marcada somente pelas violações repetidas dos direitos humanos sob total impunidade. Simbolicamente, as lógicas de descartabilidade dos corpos das mulheres são fixadas localmente e reproduzidas culturalmente, inclusive entre gerações, replicadas em níveis íntimos.

“Temos casos em que o homem comete feminicídio após ter acusado sua companheira de ter um amante e para isso, o faz usando os mesmos métodos de tortura para interrogá-la e logo se utiliza de práticas paramilitares para desaparecê-la” – exemplo de subjetividade masculina construída em torno a práticas violentas.

Portanto, falar de masculinidades nos convoca, a todas/os da sociedade, pois temos assistido que a agressividade masculina na educação militar/policial aos atos de violência doméstica são vetores convergentes. Embora a chamada violência doméstica não tenha a mesma densidade que a tortura sexual do Estado, o ponto de conexão entre eles se inclina aos autores. Tanto no cenário doméstico quanto no paramilitar se observa que os perpetuadores feminicidas compartilham a desvalorização das mulheres. “No campo íntimo, o que chama a atenção é essa produção masculina paramilitar que reproduz os métodos mais violentos nas mulheres com as quais se estabeleceu um vínculo afetivo”, conclui Itandehui.

Espetacularização das mortes de mulheres

Olhar para as narrativas acerca dos feminicídios nos meios de comunicação é algo espantoso, além de aterrorizante. O alto grau de exposição dos corpos das vítimas de feminicidio tem sido palco de espetacularização.

Ao passar por uma banca de jornal, nos deparamos com manchetes ilustradas por mulheres brutalmente assassinadas: com roupas rasgadas ou sem roupa, banhadas em sangue, golpeadas, desmembradas, mutiladas e decapitadas. Nas pequenas frases que remontam a tragédia cotidiana de nossas vidas, costumamos ler: “outra mulher morta”, “mais uma morta”, “mulher decapitada”, “encontrou a morte”, “encontrada morta”, “mulher morta a tiros”, “morta a machadadas”, entre outras publicações que ocultam uma história de vida e banalizam a violência feminicida.

Feministas marcharam contra a violência feminicida, Puebla. “Não é não!”/Foto: Andree Jiménez

Por um lado, isto nos revela um problema importante de imparcialidade no jornalismo, que baseado numa cultura misógina e sexista objetiva e coisifica ainda mais o gênero feminino, que mesmo depois de morta a mulher não está isenta de ser coisificada. Além do terror e medo que são transmitidos a cada mulher todos os dias.

A fala de Itandehui Reyes-Díaz reflete sobre a mensagem que está sendo dada por esses meios de comunicação: “a grande espetacularização do terror que os meios de comunicação replica, acompanhada de uma foto de uma mulher assassinada, reitera o lugar das mulheres e o efeito é contra-insurgente para a população feminina e para os corpos feminizados”.

“Essa é a hipervisibilização da mídia dos assassinatos que causa um efeito de terror em nossos corpos. Cada história e número de mulheres mortas nos fazem pensar que poderíamos ser a próxima, e isso tem roubado nossa criatividade e energia para pensar além de sermos vítimas ou alvos”.

Por outro lado, a projeção da mulher na indústria publicitaria, pornográfica e noveleira reiteram todos os dias, uma imagem de submissão e passividade de nossos corpos. A construção do gênero feminino empregado por esses veículos tem transmitido à sociedade que os corpos femininos como também os corpos racializados são “mais frágeis” ou “mais vulneráveis”, ou seja, passiveis de domesticação e sujeição completa ou parcial. As formas de domínio têm sido marcadas nos corpos das vítimas de feminicídios nos transmitido o domínio total de um gênero sobre o outro, que necessariamente deve ser letal, um domínio de uma posição masculina de poder destrutivo e aniquilador. O corpo da vítima, portanto, se converte numa batalha, onde o homem feminicida é o vencedor.

Para a antropóloga feminista Rita Segato, a espetacularização dos feminicídios passa por transmitir à sociedade que o feminicida, sinalizado como monstro e imoral, não deixa de ser mostrado como um monstro potente, além disso “é mostrado como protagonista de uma história” e “um protagonista potente de uma história. E isso é um chamado para alguns homens”, conclui. Ainda na sua crítica ao tema, buscar outras narrativas é importante, pois, para ela “não há como informar, sem contagiar” e a busca por audiência tem favorecido esse vínculo.

 Corpos vulneráveis: cisão da condição humana

Os feminicídios, hoje, no México exacerbam violências que não somente são exercidas com a finalidade de eliminar o corpo feminino, o que temos visto tem sido a pretensão (do feminicida) de aniquilar esse corpo. A sistematização realizada para este dossiê, situada nas mudanças registradas pela violência feminicida nesse contexto nos últimos anos, não tem esboçado uma finalidade única determinada, o que a violência feminicida tem demonstrado é a destruição da unidade do corpo.

Nas palavras da filósofa italiana feminista Adriana Cavarero: o que está em jogo na sujeição do gênero é a condição humana de corpos vulneráveis. Uma condição humana que se vê ameaçada pela violência sexual, pela tortura, pelo desmembramento, pela separação, ou seja, uma condição comum humana.  Por isso, no México contemporâneo tem sido incisivo pensar que o conjunto de mulheres – população feminina de modo geral – são possíveis alvos da violência feminicida, com certa variação de grau de exposição das vítimas às violências. São as mulheres com uma vida de menos acesso a recursos e marginalizadas nas periferias das metrópoles, por exemplo a região periférica do Estado de México, que há muitos anos têm liderado o ranking dos feminicídios e de desaparições no país.

A consolidação do neoliberalismo em escala mundial tem promovido e provocado que a violência se espalhe, com isso, transformou-se a maneira de como é exercida sobre os corpos, ou seja, as motivações para o uso das violências têm se modificado. Historicamente nos países latino-americanos, nos períodos de regimes autoritários em que prevaleciam práticas e dinâmicas militares, era “reconhecida” a finalidade das violências, as quais consistiam em: delimitar territórios e/ou advertir e ameaçar a grupos políticos específicos (subversivos e opositores). A violência que se dissipava nos territórios, era principalmente, protagonizada por setores especializados (militares, policias, paramilitares). No caso mexicano a “guerra suja” pode ser vista como exemplo e cumpriu a finalidade de eliminar a guerrilha mexicana, na década dos 1960-1970.

O espaço é público, o corpo é meu! Marcha #24A, Cdmx, 2016/Foto: Nicole Ballesteros

Na atualidade, a captura do conjunto da vida social pelo neoliberalismo tem provocado que o uso da violência se ative dentro da dinâmica social e que se diversifiquem tanto sua pratica (técnicas e métodos) como instrumentalidade (maquinaria bélica sofisticada). Não é somente o Estado com seus diferentes aparatos legítimos, ilegítimos e com finalidades especificas que autoriza a violência, outros atores sociais o fazem a partir de interesses próprios, individuais e rentáveis. Por exemplo o narcotráfico, com suas condutas criminais e violentas, converteu-se num ator social importante quando nos referimos aos temas de violência estrutural na realidade mexicana, violências dissipadas com finalidade hegemonicamente empresarias: domínio de território e expansão de mercado.

A crueldade e perversão dos feminicídios: mutilação, desmembramento, esfoliação, dissolução em ácido, entre outras formas registradas nos últimos anos, são as marcas deixadas pelo mosaico de violências generalizadas hoje no país. Aparentemente podemos relacioná-las com o cruzamento de violências militares e criminais.

Entretanto, a violência feminicida exercida cotidianamente interposta pelo neoliberalismo não necessariamente tem apresentado um fim aparente da violência cometida contra as mulheres, uma finalidade única, uma especificidade única ou um único autor do crime. A violência feminicida não tem demonstrado esse comportamento exclusivo de grupos ou indivíduos patologizados. Tampouco podemos afirmar que tem sido cometida exclusivamente por homens vinculados às forças armadas e a facções criminais, pois também se apresenta no âmbito doméstico, nas relações intimas. Dificultando ainda mais as formas de erradicação e compreensão do continuum da violência feminicida no México.

Acompanhe o primeiro capítulo da série:

O que é feminicídio? A contribuição feminista na América Latina

*Ana é socióloga, nascida em Edomex, um dos estados mais violentos do México. Mestranda em sociologia no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades (ICSyH/BUAP), desenvolve a pesquisa sobre feminicídio e trabalho, incorporando a perspectiva de gênero e feminista ao debate acadêmico.

**Nicole é mestre em Serviço Social, feminista, latinoamericanista, doutoranda em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades (ICSyH/BUAP). Atualmente desenvolve produção acadêmica com temas vinculados: gênero, feminismos e espacialidades.

 

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  • Nicole Ballesteros

    Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sant...

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