O próximo 28 de setembro é o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Para marcar o debate político sobre esta data, lançamos o podcast Catarinas, uma edição especial que traz memórias de oito entrevistadas sobre momentos importantes do debate público sobre o direito ao aborto no Brasil, traçando uma linha do tempo do período de redemocratização até os dias atuais. 

É preciso lembrar, no entanto, que embora a linha do tempo do nosso podcast comece no período da redemocratização do Brasil, e o infográfico, que traz alguns momentos, ter como marco a instituição do dia latino-americano de luta, em 1990, esse debate começou em décadas anteriores, especialmente nos anos 1970, concatenado com o processo de legalização em vários países, entre eles Estados Unidos e países europeus. As primeiras edições do periódico feminista “Mulherio”, em 1981, por exemplo, já pautavam a discussão. A edição de julho/agosto de 1982 passou a trazer a posição de candidatas às eleições municipais e estaduais sobre várias questões, incluindo o aborto. Em setembro/outubro de 1983, a revista dedicou-se inteiramente à pauta, registrando que o início da primavera no Brasil seria marcado por “um amplo debate sobre o aborto”. Nessa edição, foram entrevistadas ativistas que continuam a fomentar as discussões na arena pública, como Clair Castilhos, da Rede Feminista de Saúde, e Sonia Corrêa, do Observatório de Sexualidade e Política (SPW sigla em inglês). Elas também são nossas entrevistadas deste programa inteiramente dedicado à luta histórica pela descriminalização e legalização do aborto no país. 

O programa, disponível na plataforma SoundCloud, é trilhado por músicas do álbum “Ventre Laico Mente Livre”, lançado neste mês pelas Católicas pelo Direito de Decidir para debater os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Disponível em todas as plataformas digitais, o álbum em EP também tem sua versão em vinil.

Ouça o Podcast Catarinas: 

https://soundcloud.com/catarinasinfo/podcast-catarinas

40 anos de luta

“Se não for dada a devida atenção às mulheres, estamos decididas a formar uma rebelião, e não nos sentiremos obrigadas a cumprir leis para as quais não tivemos voz, nem representação”, diz trecho da Carta das Mulheres à Constituinte em 1987, redigida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), parafraseando Abigail Adams. 

Entrevistamos a socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy, presidenta do CNDM à época de sua criação, em 1985, primeiro ano do governo civil após a Ditadura Militar. Pitanguy que é fundadora da Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), nos falou sobre o chamado Lobby do Batom, articulação entre o movimentos de mulheres e parlamentares pela garantia da discussão das demandas das mulheres, entre elas a pauta do aborto, durante a elaboração da Constituição Federal.

“A Carta das Mulheres à Constituinte traz a demanda pela descriminalização do aborto. Avaliamos que não havia nenhuma possibilidade que o aborto fosse aprovado e propusemos uma estratégia em que o CNDM colocaria que o aborto não era matéria constitucional, ao mesmo tempo que o movimento feminista recolhia assinaturas para uma emenda popular que propunha a descriminalização do aborto como contraponto à proteção da vida desde a concepção. Nós tínhamos aí duas posições e o caminho do meio, o que nos garante que a nossa Constituição não legisle sobre o aborto, garante o aborto em caso de estupro, de risco de vida, e em 2012 se expande a circunstância para anencefalia”, relembra a então presidenta do conselho. 

Também entrevistamos o obstetra Cristão Rosas, integrante do Grupo Médicos pelo Direito de Decidir, que atuou no primeiro serviço de Aborto Legal no Brasil, instalado em 1989 no Hospital Municipal Arthur Ribeiro Saboya, em São Paulo, conhecido como Hospital Jabaquara. O serviço foi desativado pela gestão do prefeito João Dória (PSDB), em 2017.  

“Na época fazia quase 50 anos que a lei permitia a interrupção da gravidez em dois permissivos legais: para salvar a vida da mulher ou em caso de gravidez decorrente de estupro. Apesar disso, até 1989 nenhuma mulher tinha tido acesso à interrupção, embora fosse um direito legal. Tudo isso decorrente de uma série de mitos e barreiras em relação ao aborto”, assinalou o médico. 

A farmacêutica-bioquímica, Clair Castilhos, da organização Casa da Mulher Catarina, que integra a Rede Feminista de Saúde, relembrou o 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho (EFLAC), em San Bernardo, na Argentina, do qual participou e que estabeleceu 28 de setembro como o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e no Caribe. “Um tema que já era sempre presente nas discussões feministas que é a questão do nosso corpo, dos direitos sexuais e reprodutivos, dentro daquela visão que o meu corpo me pertence, é nessa discussão que foi tratada a questão do aborto. No 5º encontro foi definido o 28 de setembro como dia de luta, hoje inclusive se fala em dia internacional, portanto é uma luta que vem se travando desde sempre, quando se discute o movimento feminista”, relembra Castilhos. 

Sonia Corrêa, do Observatório Sexualidade e Política (SPW sigla em inglês), nos falou sobre a importância da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas, realizada no Cairo (Egito), e da IV Conferência Mundial da Mulher, em Beijing (China), para o reconhecimento do aborto como um caso de saúde pública a ser encarado pelos governos e organizações. Realizadas nos anos 1990, as conferências, respectivamente, incorporaram o conceito de direitos reprodutivos nos documentos da ONU e recomendaram a revisão da legislação punitiva sobre o aborto.

“O conceito de direitos reprodutivos não foi inventado no Cairo, ele chegou ao Cairo pelas mãos das feministas. O conceito foi resultado de um consenso feminista global numa reunião que teve em Amsterdã, dez anos antes do Cairo, em 1984 [..] nós usamos no Brasil o conceito de direitos reprodutivos desde 1984. Mas a passagem para o Cairo faz com que essa linguagem passe a ser escrita em documentos nacionais de políticas, entre na gramática de um número maior de atores sociais e isso contribui e muito para a mudança de mentalidade e de entendimento da questão”, explica Corrêa. 

A antropóloga Débora Diniz, da Anis – Instituto de Bioética, responsável pela Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2010 e atualizada em 2015, aborda como o estudo impactou a transformação no uso de dados sobre a incidência do aborto no país. Considerada o melhor trabalho publicado no meio científico especializado, a pesquisa foi premiada em 2012 pela Organização Pan-American de Saúde (OPAS). “O impacto foi muito grande, houve enorme repercussão e transformação, inclusive de como usamos os dados no país, o que é um sinal de que esse é um campo que está ávido por argumentos baseados em pesquisas sérias e por uma racionalidade no debate. Também está aberto à apresentação de evidências que comprovem as teses em disputa”, afirma a pesquisadora. 

Silvia Camurça, da SOS Corpo, relembrou a instalação da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela legalização do Aborto, em 2008, como resposta ao que ficou conhecido como Caso das Dez Mil, quando dez mil mulheres tiveram suas fichas médicas violadas em uma clínica no Mato Grosso do Sul, que supostamente realizava procedimentos abortivos. O fato em 2007 ficou conhecido como a maior caça às mulheres da história contemporânea. Criminalização das mulheres e ataques ao direito ao aborto legal despertaram diversas organizações feministas e de mulheres, principalmente contra o PL 5.069/2013 de deputado Eduardo Cunha, no levante conhecido como Primavera das Mulheres, em 2015, que marcou um novo momento do feminismo. 

“A frente, desde que surgiu, tem importante contribuição de disseminação de informação, desde a campanha contra o Estatuto do Nascituro, o próprio caso das dez mil mulheres, outros casos que vão aparecendo, isso circula rapidamente pelo país, entre militantes feministas e de movimentos de mulheres, movimentos mistos, dissemina também informações sobre os ataques legislativos e riscos de retrocessos”, explica Camurça. 

Joluzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), foi uma das expositoras e articuladoras da Sugestão Legislativa – a SUG 15 que pautou a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo Sistema Único de Saúde. As cinco audiências públicas sobre a sugestão ocorreram entre 2014 e 2016. Com relatoria do senador Magno Malta, declaradamente contrário aos direitos das mulheres, a SUG 15 foi arquivada em 2018. “Foi um processo bastante rico, de debates consistentes do campo pró-direitos e que também revelou como os argumentos da bancada conservadora, reacionária, fundamentalista, estavam mesmo fundamentados em dogmas religiosos. As audiências foram permeadas por ataques pessoais a especialistas, pessoas que estavam lá apresentando sua argumentação”, destaca Batista. 

Emanuelle Goes, doutora em saúde pública e pesquisadora em direitos reprodutivos e saúde das mulheres negras, abordou o conceito de justiça reprodutiva, que amplia a visão dos direitos reprodutivos a partir da experiência das mulheres negras, as quais historicamente tiveram seus direitos violados, incluindo o direito à maternidade. Tal conceito, que já permeava as discussões colocadas pelas mulheres negras nos anos 1980 e 1990, em função, principalmente, das esterilizações forçadas na América Latina, foi revisitado durante a epidemia do Zika Vírus, em 2016, como explicou a entrevistada.

“Essa discussão da epidemia evidenciava justamente isso, era uma questão de racismo institucional e ambiental que impacta a negação dos direitos reprodutivos das mulheres. Mas quais mulheres? Mulheres negras, do nordeste, da periferia, do Brasil, esse perfil é de mulheres que estão sempre submetidas à injustiça reprodutiva, que têm exercitado a ausência e violação dos direitos reprodutivos”, apontou Goes. 

O podcast também lança luz sobre as iniciativas pela ampliação do direito ao aborto no Supremo Tribunal Federal (STF), em ações ajuizadas por meio de instrumentos jurídicos previstos na Constituição Federal. “O supremo é uma corte constitucional de revisão de violações constitucionais não resolvidas pelo Congresso Nacional ou por leis, como o Código Penal, que são anteriores à Constituição Federal. A corte é um espaço de revisão daquilo que ainda não conseguimos solucionar na proteção de direitos. É um espaço legítimo para perguntas que são emergenciais de violação dos direitos individuais, como é a questão do aborto”, defende a pesquisadora Débora Diniz da Anis – Instituto de Bioética, organização que deu suporte a ações no Supremo, entre elas a que permitiu o aborto em caso de anencefalia fetal, em 2012, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, de 2017, que pela primeira vez pauta o debate sobre o direito ao aborto por livre decisão da mulher até a décima segunda semana de gestação, nessa corte. 

 

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