Piquenique Dá Luz: evento informa sobre aborto seguro em Florianópolis
Na tarde do 28 de maio, Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, a Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto realizou o “Piquenique Dá Luz: Vivas, Vives e Livres para Gestar e Abortar!”, no Parque da Luz, em Florianópolis. No Brasil, o aborto é a quarta maior causa de morte mortes maternas, atrás de complicações no parto, transtornos hipertensivos e complicações na placenta.
Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto promove encontro com rodas de conversas, oficinas e expressões artísticas diversas
Na tarde do 28 de maio, Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, a Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto realizou o “Piquenique Dá Luz: Vivas, Vives e Livres para Gestar e Abortar!”, no Parque da Luz, em Florianópolis. No Brasil, o aborto é a quarta maior causa de morte mortes maternas, atrás de complicações no parto, transtornos hipertensivos e complicações na placenta.
“A situação de ilegalidade e criminalização é o que cria esse contexto de alta taxa de mortalidade por abortos no país. As pessoas têm dificuldade de ter acesso à informação, a medicamentos e receber assistência quando procura um hospital durante o aborto. Existe uma configuração que colabora com essas mortes que é de um Estado ausente, que criminaliza e não dá acesso”, explica Aline Soares, integrante da Frente.
Diante desse contexto, o “Piquenique Dá Luz: Vivas, Vives e Livres para Gestar e Abortar!” promoveu rodas de conversa com o objetivo de informar e trazer luz à essa questão, incentivar que as pessoas falem sobre o aborto, perguntem e informem-se para que desenvolvam autonomia sobre o tema e reivindiquem seus direitos amparadas em informações seguras.
A audiência do piquenique surpreendeu a organização. Muitas pessoas que estavam transitando no parque, sem saber do evento, aproximaram-se e ficaram interessadas. “Ficamos felizes em conseguir atingir pessoas que entendem essa pauta como tabu, mas que chegaram e conversaram. Estavamos todas impressionadas, sentindo uma potência incrível de um coletivo feminista, articulando, informando, cuindando umas das outras”, comenta Aline.
O espaço das crianças, ativo ao longo da programação, permitiu a participação de diversas mães. Ele levanta a pauta da maternidade, da sobrecarga e da exclusão que as maternidades podem sofrer. “Há tempos temos trazido a inclusão de crianças para as nossas ações, coletivizando o cuidado, trazendo materiais para que elas se sintam acolhidas e bem vindas. Quando acolhemos crianças, estamos acolhendo mães, que são a grande maioria de cuidadoras nesse país”.
Entre as pessoas que já debatem o aborto há algum tempo é consenso de que o tema precisa ser discutido por todas as pessoas, nos mais variados espaços: no almoço familiar de domingo, nas escolas, na construção de políticas públicas, nos parques.
A advogada Iris Goncalves Martins, integrante do 8M Florianópolis, conta que ao chegar, viu a faixa “Aborto Legal Fica, Bolsonaro Sai”, que sinalizava o local do encontro, e pensou como a organização havia sido afrontosa. “Eu pensei: que ousadas elas foram. Mas, na verdade, não. É isso que tem que acontecer, o aborto precisa sair do armário, deste lugar de crime, de pecado, para que a gente possa discutir ele e salvar vidas. Estando nesse lugar onde está, ele mata pessoas. E não somente isso, causa muito sofrimento”, afirma.
“É muito importante ocupar a cidade com esses temas, que muitas vezes acabamos tratando dentro de quatro paredes ou na clandestinidade. Principalmente os temas da saúde reprodutiva, que acaba sendo visto como um tema das mulheres, mas envolve e compromete todo mundo que está no entorno. Isso fica evidente quando ocupamos um espaço público com os nossos corpos e publicizamos esse debate”, defende a vereadora e pré-candidata a deputada federal Carla Ayres (PT).
Justiça reprodutiva, autonomia e autoconhecimento
A descriminalização e a legalização do aborto é a principal pauta da Frente, em consonância com as discussões sobre justiça reprodutiva, prazer, consentimento, contracepção, acesso à saúde, autoconhecimento, autonomia e direitos sexuais. Esses temas trouxeram importantes reflexões na roda de conversa “Prazer e Contracepção: autoconhecimento como revolução”.
Uma das mediadoras da conversa, Thaís Almeida, médica de família e comunidade integrante da Frente, enxerga que a consciência da nossa ciclicidade, do nosso próprio ritmo e forma de ser, diante do contexto em que vivemos é uma forma de resistência diante de uma sociedade que tenta nos padronizar e acelerar.
“Entendemos em que contexto está esse corpo, que vive em um mundo capitalista, cercado de preconceitos e ataques, sem tempo para o autoconhecimento. Diante disso, estimular o autoconhecimento torna-se revolução”.
Na visão do Movimento de Mulheres Olga Benário, que constrói a Casa de Referência Antonieta de Barros para mulheres vítimas de violência no município, reconhecer-se dentro do sistema e ter acesso à informação é um passo importante para prevenir situações de violência.
“Se na faculdade de medicina não temos acesso às informações sobre o corpo da mulher, como foi relatado aqui, imagina as mulheres em situações de pobreza e vulnerabilidade. Uma pessoa que não tem conhecimento sobre o próprio direito, no caso do aborto, está mais vulneravel a sofrer violência”, reflete Gabriela Oliveira, integrante do Olga.
Por valorizar a ampliação do acesso à informação e autonomia, a Casa Antonieta de Barros não se configura somente como um lugar de atendimento, ali as mulheres vítimas de violência são acolhidas, recebem apoio psicossocial e jurídico e formações políticas e econômicas. “A autonomia e o acesso à informação previne que as mulheres estejam em situações de violência”, conclui Gabriela.
No mesmo sentido, Camila Siqueira Katrein, educadora e integrante da Alicerse, denuncia que a ausência de debate e o desconhecimento fortalecem a política de controle dos corpos e falta de acesso aos direitos fundamentais das pessoas que gestam.
“O desconhecimento é muito usado para nos controlar e naturalizar a ideia de que não é um direito. De que é uma questão do campo privado, e naturaliza um discurso de opressão e exploração em relação às mulheres. Estar aqui, além de nos ajudar a crescer junto, conversando com acúmulos diferentes, também possibilita acesso amplo a esse debate”, afirma a educadora.
O Grupo de apoio à Prevenção à Aids (GAPA) também marcou sua presença, realizando testes de HIV, distribuindo preservativos e construindo as rodas. “Precisamos cada vez mais romper e horizontalizar a discussão a respeito do aborto legal e da educação sexual e reprodutiva”, defendeu Camila Reis, assistente social do grupo, que trabalha na promoção e proteção dos direitos das pessoas que vivem com HIV, com a população LGBTQIA+, com as profissionais do sexo e com a população em situação de rua.
Esse primeiro momento também trouxe muitas provocações em relação ao que é ser mulher e como se constituem os corpos que possuem vulva, vagina, útero. Ale Mujica, uma pessoa trans não-binária integrante da Frente, mediou a roda e foi essencial para dar o tom das reflexões.
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“A ideia foi fazer certos questionamentos, como, por que alguns corpos são vistos de uma forma mais subalterna do que outros? E, também, provocar para incluir na discussão as pessoas trans masculinas, não binárias ou outras pessoas que se reconheçam fora da categoria mulher, mas que tenham uma vulva, uma vagina, etc”, explica Ale, formade em medicina e pós-graduade em saúde coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Além de conhecer nossos ciclos, órgãos genitais, entender que somos pessoas múltiplas e desenvolver nossa autonomia, também é fundamental o reconhecimento da diversidade e sexualidade de cada pessoa. “A pessoa que tem um corpo com uma vagina e um útero, pode ter múltiplas identidades além da mulheridade e também em relação à sexualidade. Não necessariamente ela se relacionará de forma heterosexual e isso é absolutamente natural”, argumenta Aline.
Toda a organização do evento foi realizada com a intenção de demonstrar um posicionamento coletivo da Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto pela inclusão de identidades e sexualidades diversas nos debates propostos.
“Sentimos uma importância muito grande em nos posicionarmos como feministas transinclusivas, reconhecendo que, além das violências compartilhadas com as cisgeniridades em serviços de saúde em relação à menstruação, contracepção, parto, aborto, etc, ainda tem todas as questões de transfobia institucional que essas pessoas vivenciam e que acabam por afastá-las do serviço de saúde”, expõe Aline.
Cuidado, acolhimento e celebração feminista
Durante o evento, uma das coisas que mais chamou atenção foi o cuidado e o afeto com que cada detalhe foi organizado. Apesar de ser uma data de referência de luta pela saúde e combate à mortalidade, o que se presenciou foi um momento de encontro, de celebração e acolhimento.
“Um grande objetivo nosso era criar uma semente de cuidado e acolhimento. A oficina da massagem trazia muito isso, porque ninguém está bem, todas estão precisando de acolhimento. E também vivemos uma situação de pandemia, onde estivemos mais afastadas de dar e receber acolhimento físico, com toque”, explica Aline Soares, que conduziu a Oficina de Massagem: toque e cuidado entre nós.
Ela trabalha com massagem há quinze anos e explica que a prática é um recurso simples e prazeroso que podemos proporcionar com o próprio corpo, sem precisar de recursos financeiros.
“É uma experiência, uma descoberta, um treino de percepção e do cuidado, de criar consentimento, cuidar de uma pessoa que está ansiosa ou que está passando por algum momento difícil da vida, que pode ser uma situação de abortamento. É uma possibilidade de oferecer um acolhimento não só em palavras, mas com o toque acolhedor que percebe e cuida a pessoa”.
O êxtase da tarde e do piquenique foi a apresentação da banda e do bloco Cores de Aidê, que trouxe o parque todo para perto e pôs grande parte do público para dançar ao som da batucada. A força do tambor trouxe o fogo necessário para as lutas travadas pela Frente.
“O Cores de Aidê chama para o coletivo e para a a potência feminista, que queríamos muito celebrar. Essa potência feminista de cuidado, de estar junto, de se unir, de coletivizar a informação. É algo muito bonito de se ver e viver”, comenta Aline.
“Sabemos que o aborto é uma pauta que causa muito desconforto, por isso queríamos fazer um evento tão legal, divertido, artístico, para que se entenda que o aborto é gente de gente comum, de gente normal. Não é algo de outro mundo, extraordinário”, finaliza.
Aborto seguro, retrocessos e eleições
Na última roda, Como acessar o serviço de aborto legal, foram debatidas os casos em que é permitido interromber a gravidez dentro da legalidade através do Sistema Único de Saúde (SUS): em situações de gravidez resultante de violência sexual, quando a gestação oferece risco à vida da gestante e em caso de anencefalia do feto.
Para Iris, integrante do 8M Florianópolis, esse tema precisa estar na boca das pessoas para salvar vidas. “Fiz uma intervenção em uma escola e falei que todos os casos de gravidez de meninas menores de catorze anos se tratam de estupro perante a lei. Eu disse que nenhuma menina pode ser mãe. A lei autoriza que a interrupção da gestação seja feita, porque é estupro de vulnerável”.
Neste ano, o 8M realizou palestras sobre violência de gênero em diversas escolas. De acordo com Iris, esse projeto está em constante construção, e expansão e os convites não param, porque há demanda. “Cada vez vamos descobrindo novos pontos sensíveis para tocar, as/os adolescentes sempre trazem novas questões”, completa.
A vereadora do Rio de Janeiro Tainá de Paula (PT) também esteve presente no evento e conversou rapidamente com o Catarinas. Ela chamou a atenção para a necessidade de dar publicidade aos retrocessos que estamos tendo nos direitos garantidos do abortamento legal. “Ela é uma política já instituída no Brasil e não está sendo estabelecida na maioria das capitais, quem dirá no interior”, lamenta.
O Portal vem fazendo um monitoramento mensal das questões relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na América Latina e Caribe.
Camila Katrein, do Alicerse, coloca a conta dos retrocessos no atual governo. “Os ataques aos nossos direitos pioraram com o Governo Bolsonaro e geram, uma autorização e estímulo à violência e aos discursos de ódio, e, inclusive, aumentam a possibilidade de criminalização e perseguição das mulheres que realizam o aborto”, alerta.
Para Ingrid Assis, da equipe da mandata Coletiva Bem Viver (PSOL) e do 8M Florianópolis, nesse período eleitoral é necessário reivindicar com mais força as nossas pautas e cobrar as pessoas pré-candidatas a se comprometerem com a descriminalização e legalização do aborto.
“Vemos, infelizmente, que a esquerda e a direita se encontram quando não querem realizar esse debate que está custando a vida das mulheres. Reivindicar que essa pauta esteja nos programas das candidaturas que vamos apoiar é o mínimo. Não é só pela vida das mulheres, é uma questão de saúde pública que precisa ser debatida em espaços políticos”, reforça.
A ocupação do espaço público é fundamental para as pessoas se sentirem tocadas e estimuladas a pesquisar mais e entenderem os seus direitos nesse debate. Abre uma discussão sobre os direitos reprodutivos de forma mais ampla. Além disso, a serigrafia, os botón, os adesivos e lenços distribuídos fazem com que o dia não acabe ali, as pessoas levam a pauta do aborto adiante.
“Sempre tento levar a palavra profana do aborto e botar fogo nos espaços que participo. Um espaço que fale sobre políticas ambientais, por exemplo, que parece que está afastado, porém tem a ver com saúde e com pensar a saúde sexual e reprodutiva, porque ela é afeto. É se afetar com outra pessoa e afetar a outra pessoa, e sobre como a gente constitui ou não comunidade e coletividade”, destaca Ale.
Para Tainá, o debate construído por pessoas com pañuelos verdes abre a reflexão sobre como a América Latina está sendo palco para a conquista de direitos, e como podemos relacionar e conectar essa luta com uma rede nacional e internacional. “Não é só sobre corpos femininos, mas sobre os rumos da democracia e dos direitos de uma forma geral”, finaliza.