Iniciativa do Movimento Olga Benário denuncia falta de políticas públicas pelos direitos das mulheres  

Há uma semana, na madrugada de 29 de março, o Movimento de Mulheres Olga Benário ocupou uma casa abandonada no Centro de Florianópolis com o intuito de transformá-la em uma casa de referência no acolhimento psicológico, jurídico e social para as mulheres vítimas de violência. Esta é a décima intervenção deste tipo feita pelo movimento em território nacional.

“Estamos entre os dez estados mais feminicidas do país, e sabemos que o investimento que o Estado coloca para combater esse quadro é extremamente insuficiente. Por isso, essa ocupação também é uma grande denúncia”,

explica Juliana Mendonça Vieira, uma das coordenadoras estaduais do Movimento. 

Para a integrante da mesa diretora do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim), Ingrid Sateré Mawé, a ocupação é uma resposta ao descaso que o Estado dá para a pauta de cuidado da vida das mulheres. 

“Já são quase 650 dias sem levantamentos de dados sobre a violência contra as mulheres no município. Pelo Observatório estadual, vemos que os casos de feminicídio têm aumentado. Neste sentido, a ocupação é uma resposta ao descaso desta pauta e ela acontece liderada por pessoas que enxergam este problema e tentam colocar na cara da sociedade que ele precisa ser resolvido”, comenta Ingrid. 

Movimento especula que casa esteja abandonada há mais de dez anos no Centro de Florianópolis. Foto: Fernanda Pessoa.

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, disponíveis no Observatório da Violência Contra a Mulher, os assassinatos por discriminação de gênero subiram 300% em janeiro de 2022, se comparado ao mesmo período do ano passado. No primeiro mês de 2021, duas mulheres foram assassinadas, enquanto em janeiro deste ano já foram oito feminicídios. 

Em contrapartida, não vemos o incremento de políticas públicas em defesa da vida das mulheres. Em 30 de março, ainda no primeiro dia de ocupação, a Câmara de Vereadores de Florianópolis rejeitou, por 11 votos a 10, a realização de uma audiência pública para discutir a gestão da Casa de Passagem para Mulheres em Situação de Violência e de Rua, que vem sendo questionada há anos.

A reunião, requerida pelos mandatos da vereadora Carla Ayres (PT) e da Coletiva Bem Viver (PSOL), foi solicitada com o objetivo de compreender as motivações para a recente terceirização do serviço, que ficou sob a responsabilidade da organização social Núcleo de Recuperação e Reabilitação de Vidas, de São José, além de conhecer o planejamento municipal para a Casa nos próximos anos.  

Em uma reportagem especial publicada em fevereiro deste ano pelo Catarinas, três mulheres acolhidas na Casa de Passagem denunciaram maus tratos, racismo e xenofobia, além da superlotação, dos problemas estruturais e das falhas no serviço que deveriam ser prestados pela casa. A situação vem sendo acompanhada pelo Ministério Público, através da 34ª Promotoria de Justiça da Capital, que faz recomendações de melhorias no serviço desde 2015. 

Nas redes sociais, a vereadora Carla Ayres publicou o seu apoio à recente ocupação: “A Casa de Referência nasce justamente em um momento em que o serviço público de acolhimento às mulheres em situação de rua e/ou violência enfrenta um processo de sucateamento, com a terceirização na prestação dos serviços, além das denúncias e reclamações de violações de direitos, já encaminhadas à Defensoria Pública de SC.” 

Entramos em contato com a Prefeitura de Florianópolis pedindo informações sobre a Casa de Passagem para Mulheres em Situação de Violência e de Rua, porém até a publicação desta reportagem não recebemos resposta.

Marina Caixeta (esq.), covereadora da Coletiva Bem Viver, e vereadora Carla Ayres (ao lado) visitam ocupação. Foto: Reprodução.

Casa de Referência homenageia Antonieta de Barros

A primeira ocupação de mulheres na história de Santa Catarina foi batizada como “Casa de Referência Antonieta de Barros”, em homenagem a uma das primeiras mulheres eleitas no Brasil e a primeira deputada negra a assumir um mandato popular.  

“Ela sempre teve como pauta a luta pelos direitos e a emancipação da mulher, e não qualquer mulher. A mulher pobre, trabalhadora, negra, que precisa dessa luta coletiva para sobreviver. Quando olhamos para a luta da Antonieta e para a luta que propomos travar no nosso estado, avaliamos que faz todo o sentido que a gente carregue esse nome”, explica a coordenadora Juliana Vieira.  

Outra militante que participa da criação da ocupação Antonieta de Barros em Florianópolis é a Júlia Soares, que faz parte da coordenação nacional do Olga Benário e traz sua experiência de atuação na Casa de Referência Laudelina de Campos Melo, no centro de São Paulo.  

Em conversa com o Catarinas, ela faz questão de reforçar que as ocupações não são um serviço do poder público. “Este trabalho tem conexão direta com o trabalho com o bairro, com as pessoas do entorno. A ideia é que seja um espaço coletivo, das mulheres, das trabalhadoras, que a gente consiga se fortalecer entre nós”, afirma. 

Juliana acrescenta, por sua vez, que o Movimento não tem condições objetivas e materiais de substituir o que o Estado deveria fazer. “Não à toa, uma das questões muito importantes para nós é organizar as mulheres para estar, inclusive, disputando o poder. Entendemos que é construindo outro modelo de sociedade que teremos condições objetivas para dar esse basta e tentar salvar a vida de muitas mulheres”. 

O acolhimento às mulheres vítimas de violência é feito pelas próprias militantes, que lançam um chamado para psicólogas, assistentes sociais e advogadas voluntárias para unir-se a este projeto coletivo. Essa rede de profissionais é muito importante, porém, para Júlia, não é o diferencial do movimento:

“Não tem nada que faça que uma mulher, que tomou a corajosa decisão de sair de casa e do lado do seu agressor, tenha mais convicção dessa decisão do que encontrar várias outras mulheres que tomaram direcionamentos semelhantes e que estão dispostas a ajuda-la a reorganizar sua vida e sua luta”, destaca.  

Para Ingrid Mawé, integrante do Comdim, a reivindicação trazida pela ocupação é justa e urgente. “Ter somente uma casa de acolhimento à mulher que sofre com violência em Florianópolis, que abriga 30 pessoas contando com as crianças, é um descaso enorme, porque não atende à demanda. Nós temos o entendimento que essa pauta deve ter maior visibilidade e mais recursos. E que as lideranças que estão à frente do governo devem responder a este problema”, complementa.   

Moradoras da Anita Garibaldi, ocupação do MLB em Florianópolis, também constroem Casa de Referência. Foto: Fernanda Pessoa.

Movimentos em luta pelos direitos das mulheres 

O Movimento de Mulheres Olga Benário atua há mais de dez anos e, atualmente, possui dez Casas de Referências pelos direitos e pela vida das mulheres. A primeira ocupação – Casa Tina Martins –  foi fundada em 8 de março de 2016, em ação com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), em Belo Horizonte (MG) e, hoje, faz parte da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do município.  

No apoio da construção da Casa de Referência Antonieta de Barros também atuam outros movimentos, como o próprio MLB, o partido Unidade Popular pelo Socialismo (UP), o movimento de secundaristas Rebele-se, algumas companheiras da Ocupação Anita Garibaldi, entre outros. 

Casa abandonada em disputa 

Na madrugada do 30 de março, vizinhos perceberam a movimentação diferente na casa vazia e acionaram a Polícia Militar, que informou, em nota, que sua atuação se limitou a mediar as partes e registrar os fatos.

As militantes argumentam que “o local estava abandonado há mais de dez anos e acumulava aproximadamente 60 mil em dívidas de IPTU, ou seja, estava sem função social.”

De acordo com Pedro Gabriel de Melo Ruiz, advogado que atua no âmbito dos direitos sociais, a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) regulamentam que a propriedade deve servir para algum fim social: moradia, serviço público, produção. “Você analisa aquele rol de direitos sociais do artigo sexto e identifica que o imóvel esteja cumprindo algum deles”, explica.

O comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar, Dhiogo Cidral de Lima, afirma que o proprietário da residência foi encontrado durante a ocorrência, mas devido ao estado de abandono do imóvel e sua idade avançada, foi orientado a comprovar que a propriedade não está abandonada através de uma ação de reintegração de posse.

A Polícia Militar também informou ter oficializado um comunicado ao Ministério Público e ter acionado a Polícia Civil para investigar o caso. A partir de agora, a disputa do imóvel entre o movimento social e o proprietário deve seguir a via judicial. 

Nestes primeiros dias de ocupação, o Movimento Olga Benário pede que os apoiadores da Casa de Referência estejam envolvidos nas atividades presencialmente. Também solicitam ajuda financeira para realizar melhorias nas estruturas e instalações da casa, deixando o ambiente mais cômodo para os acolhimentos que serão realizados. Doações de mobiliários, comida, água potável, materiais de limpeza, etc., são bem vindas. PIX: [email protected]

O Catarinas está conhecendo a realidade das ocupações da região da Grande Florianópolis e, ao longo das próximas semanas, vai trazer mais reportagens sobre o tema.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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