“A coordenadora e algumas educadoras nos maltratam, parece que estão criando porcos, como se precisássemos apenas comer e pronto, nada mais”.
“Estamos sem luz faz alguns dias [com as lâmpadas queimadas], só as tomadas e chuveiros que funcionam. Nós ficamos muito tempo sem chuveiro quente no inverno, sem leite, fruta e falta de alimentação”.
“As crianças não podem brincar dentro da casa e nem na parte de fora [pátio]. A coordenadora se dirige a nós com repressão, entra no quarto sem bater, e está brava o tempo todo. Eu lavo banheiro, limpo o pátio e a cozinha. As outras [mulheres brancas] não fazem nada. Eu sinto que o tratamento é diferente”.
Os relatos são de três mulheres acolhidas na Casa de Passagem para Mulheres em Situação de Violência e de Rua de Florianópolis. A identidade delas será preservada por segurança. As denúncias envolvem racismo, xenofobia, discriminação às mulheres que têm filhos, repressão, tratamento à base de gritos e xingamentos, superlotação, falhas no serviço que deveria ser prestado pela casa e problemas estruturais.
As denúncias também chegaram ao conhecimento do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM) e não são nenhuma novidade para o Ministério Público. A promotora Helen Crystine Corrêa Sanches, da 34ª Promotoria de Justiça da Capital, que atua na área da violência doméstica, faz recomendações de melhorias desde 2015, mas as advertências são tratadas com descaso pela Secretaria de Assistência Social de Florianópolis — pasta responsável pela gestão do serviço.
As resoluções têm sido pontuais com relação à estrutura física. As denúncias de maus-tratos e violência que chegam ao conhecimento de Sanches são encaminhadas às promotorias da Moralidade Administrativa e Criminal. Uma das queixas que a promotora teve conhecimento resultou em investigação contra a ex-coordenadora da casa. A servidora foi afastada após ter virado alvo de um Procedimento Investigatório Criminal aberto pelo Ministério Público e um inquérito policial instaurado na 1ª Delegacia de Polícia da Capital por suspeita de maus-tratos e violência arbitrária.
Só que o Município acabou transferindo a servidora para uma casa de acolhimento de adolescentes, o que obrigou o Ministério Público a intervir mais uma vez e solicitar novo afastamento. Em consulta ao Portal da Transparência da Prefeitura de Florianópolis, verificamos que a servidora investigada não ocupa mais cargo de gestão, mas continua exercendo a função de educadora social, desta vez na Casa de Acolhimento a Moradores de Rua, no Centro.
Uma das acolhidas relatou que, após conversar com a reportagem, ela e as colegas foram ameaçadas pela coordenadora da casa. “Ela fez uma reunião com todas as mulheres e disse que estava investigando quem foi que a denunciou e que, quando descobrisse, iria processar”.
Nós procuramos a Secretaria Municipal de Assistência Social para comentar as denúncias no dia 10 de fevereiro, mas só recebemos retorno na véspera da publicação desta reportagem, quando conseguimos falar com a secretária Maria Cláudia Goulart da Silva. Ela disse que as acolhidas são orientadas a denunciar qualquer violação de direito e para que as providências sejam tomadas, é necessário haver o registro de boletim de ocorrência.
Quando o conflito ocorre no âmbito administrativo, segundo Silva, as acolhidas podem procurar a gerência na sede da secretaria. A secretária nega que haja descaso e afirma que todos os problemas que chegam ao seu conhecimento são resolvidos. Ela confirma que algumas educadoras estão respondendo a procedimentos administrativos e que já houve afastamento por conta de denúncias.
“Eventualmente têm conflitos na casa que geram as denúncias e as ocorrências e que são tratadas individualmente conforme cada procedimento. Mas toda situação que envolve violação de direitos é inaceitável, então a gente abre os procedimentos necessários para averiguar”, disse Silva.
“Se não fosse pelas crianças, eu já teria saído”
Uma das acolhidas ouvidas pela reportagem, a que vamos chamar de Lúcia*, conta que algumas profissionais da Casa de Passagem, incluindo a atual coordenadora, se incomodam com a presença das crianças e as proíbe de brincar. Só que manter os pequenos em silêncio não é uma tarefa simples. Ela também ouviu reclamações por seus filhos “comerem demais”. Lúcia só não deixou o abrigo ainda porque não dispõe de um teto para abrigar as crianças.
Lúcia observa a diferença de tratamento entre as “preferidas”, que seriam as mulheres brancas, especialmente as que não tem filhos, e as pretas e pardas. Diferente das colegas que seriam “privilegiadas”, Lúcia não recebeu o benefício de desacolhimento (que serve para pagar aluguel e reduzir o tempo de acolhimento na Casa) e nem passagem de ônibus para sair em busca de outros serviços como procurar emprego e vaga para as crianças na escola. “Sobre a escola só falaram para entrar no site, mas eu não consegui, vou tentar pessoalmente”, contou Lúcia.
O benefício de desacolhimento foi estabelecido pela lei municipal 10.696, em março de 2020, e foi regulamentado em agosto de 2021. Os filhos das mulheres que são vítimas de violência e estão em situação de vulnerabilidade também têm preferência nas escolas e creches de Florianópolis por força da lei municipal 10.252.
Assim como Lúcia, Fernanda* precisa procurar emprego e matricular os filhos na escola. Sem apoio da Casa de Passagem, ela está fazendo o movimento por conta própria. Disse que não recebeu passagem de ônibus e foi a pé com as crianças até o Conselho Tutelar pedir orientação. “Somos tratadas como se não existíssemos ali dentro”.
Outro dia, a sandália de Fernanda arrebentou e ela perguntou se poderia pegar um par de calçados novos das doações que haviam chegado. Mas foi impedida de ter acesso às roupas, calçados e bolsas que chegaram. “Eu vi as doações chegando, mas desapareceu. Eu tive que remendar o meu calçado porque não me deram. Poderia ser algo velho, mas não me deram”, contou.
“As crianças receberam calçados rasgados, impossíveis de usar. Crianças não são animais, foi ofensivo. Parece que necessitamos apenas comer, nada mais. Não perguntam o que sabemos fazer, se queremos empreender, do que as crianças gostam, alguma cultura, se querem estudar, nada. É como se estivéssemos ali apenas por estar, tanto faz se vivemos ou não”, completou.
Segundo a promotora Helen Sanches, o papel da equipe técnica deveria ser reconstruir um projeto de vida com as mulheres para que elas possam conquistar autonomia e sair da Casa de Passagem com alguma estrutura. A lei que dá preferência para os filhos das mulheres vítimas de violência na creche foi criada para possibilitar que elas façam os movimentos enquanto os filhos estão ocupados na escola.
Leia mais
O benefício de desabrigamento serve para pagar um aluguel temporário. A equipe também deveria ajudá-las a confeccionar o próprio currículo e a conquistar um emprego. As acolhidas deveriam ser direcionadas a outros serviços como os da rede básica de saúde e o atendimento psicossocial oferecido pelo Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cremv).
Desde 2017, quando instaurou um procedimento administrativo para acompanhar a execução da política pública estabelecida pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a promotora insiste na elaboração de um projeto pedagógico para a Casa de Passagem.
“O projeto pedagógico é que vai dizer como vai funcionar o fluxo dos encaminhamentos. Qual promotoria vai informar e para qual serviço vai encaminhar. Sem isso [a casa] se torna um depósito, a proposta é assistencialista, se tem onde comer e dormir está bom. Mas não é isso. A casa é um lugar de reconstrução de um projeto de vida. A mulher chega lá fragilizada, precisa de apoio e perspectivas de vida”, avaliou Sanches.
Larissa*, a terceira mulher acolhida ouvida pela reportagem, relatou que foi repreendida pela coordenadora da casa por ter registrado boletim de ocorrência após ter sido ameaçada por uma colega de quarto. “Ela presenciou a discussão e não falou nada, só pediu para que se calasse”. A mistura de perfis dentro da casa acaba criando algumas situações de risco — situação que também vem sendo alertada pelo Ministério Público.
“Deveria haver uma classificação, nem todas as mulheres que estão lá são vítimas de violência doméstica, há mulheres em situação de rua, outras que têm problemas com drogas e saúde mental. A acolhida que me ameaçou já agrediu uma educadora e o filho de outra educadora”, contou Larissa.
O Ministério Público está acompanhando as denúncias feitas por Larissa, tanto a de ameaça por parte de uma colega quanto de maus-tratos. As reclamações das outras duas mulheres ouvidas pela reportagem ainda não haviam chegado ao conhecimento do MP, apenas do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim).
“Nós recebemos as denúncias e estivemos na casa ouvindo as mulheres. A nossa preocupação é que elas estão sendo vítimas de mais uma violência, que é a violência do poder público. Um exemplo bem preocupante é que algumas mulheres estão querendo sair da casa e ir morar na rua, porque o lugar que deveria acolhê-las não está cumprindo o seu papel”, alertou Ingrid Sateré Mawé, que é membra do Movimento Bem Viver e acabou de assumir o posto de conselheira do Comdim.
Além do projeto pedagógico, a promotora Helen Sanches solicitou à Secretaria de Assistência Social a implementação de atividades dentro da casa para que as acolhidas não fiquem com o tempo ocioso. “Os conflitos acontecem por falta de capacitação das educadoras e porque elas [as acolhidas] não têm uma atividade terapêutica. Com essa falta de definição do público-alvo, o trânsito é grande, a casa está sempre lotada e a estrutura não é adequada”.
A secretária Maria Cláudia Goulart da Silva alega que a denúncia sobre a diferença de tratamento entre mulheres brancas e negras não procede e que houve uma situação de falta de compreensão sobre o benefício de desacolhimento que já foi resolvida. O benefício serve para pagar o aluguel e é disponibilizado para acolhida antecipadamente para que ela pague a primeira parcela do aluguel de uma casa para morar. A acolhida pode receber o benefício por até nove meses.
A secretária também relatou que no seu período de gestão (últimos três anos) houve vários pedidos de afastamento das servidoras que atuam na casa. A rotatividade de coordenadoras também é um dos pontos que, segundo ela, dificulta a criação do plano pedagógico solicitado pelo Ministério Público.
“Eu já tive quatro coordenadoras lá e a responsabilidade do plano é da equipe, mas a gente não conseguiu que isso se concretizasse. A última versão [do plano] foi encaminhada para a promotora e começamos a discutir isso internamente. A gente fez ajustes sobre o público da casa para atender apenas mulheres em situação de violência. Ampliamos as vagas para mulheres no abrigo destinado a pessoas em situação de rua”.
Problemas estruturais se repetem
Questões básicas como alimentação, luz e água quente para tomar banho precisaram ser resolvidas por intermédio do Ministério Público no ano passado. A Secretaria de Assistência Social foi notificada a resolver os problemas em prazos de 24, 48 e 72 horas de acordo com a urgência de cada uma das solicitações.
O documento solicitou que o abastecimento de comida fosse regularizado, que os chuveiros fossem consertados e as lâmpadas queimadas fossem substituídas. O problema das lâmpadas queimadas teria voltado a acontecer recentemente, segundo nos relatou uma das acolhidas.
O ofício também solicitou o conserto de um vaso sanitário avariado, colocação de tampas de assento em todos os vasos, conserto de uma janela que corria risco de queda, conserto dos computadores dos funcionários para que eles pudessem exercer suas funções e o conserto de duas máquinas de lavar roupa, além de verificar a existência de vazamento de gás.
Entre as denúncias recebidas pelo Comdim recentemente está a falta de fiação elétrica para fazer a ligação dos condicionadores de ar. Os ventiladores que estão sendo usados na casa teriam sido providenciados por meio de doações. Também estaria faltando uma estrutura adequada para atender as mães que têm filhos pequenos, uma vez que elas precisam dar assistência aos bebês durante a madrugada.
A secretária da Assistência Social afirmou que existe um contrato de manutenção predial para atender todos os abrigos do município e que as demandas são recorrentes por conta do número de pessoas que vivem nos locais. “No ano passado foi uma situação em que a gente trocava a resistência do chuveiro e mesmo assim queimava, aí se identificou que saía pouca água e por isso queimava”. Recentemente, segundo a secretária, houve furto de toda a fiação externa do abrigo o que demandou transferência das acolhidas para um hotel conveniado até que a instalação elétrica fosse refeita.
Nas situações que demandam processo licitatório, afirma a secretária, a resolução é mais demorada, como é o caso dos ares condicionados que dependem de um projeto de reforma elétrica, uma vez que todos os equipamentos ligados ao mesmo tempo geram sobrecarga da rede. Por enquanto, não há previsão para este projeto.
Terceirização do serviço é foco de debate
Em 7 de janeiro deste ano, a Prefeitura Municipal de Florianópolis, por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social, publicou um edital de chamamento público para Organizações da Sociedade Civil (OSC) interessadas em executar o serviço de acolhimento institucional para mulheres em situação de violência doméstica e seus filhos na modalidade de abrigo institucional.
A Prefeitura disponibilizou R$ 882,3 mil para que a OSC vencedora preste o serviço pelo período de 12 meses. O contrato pode ser prorrogado até o prazo máximo de cinco anos. Segundo o edital, a casa poderá acolher até 40 mulheres acompanhadas ou não dos filhos. A organização vencedora foi o Núcleo de Recuperação e Reabilitação de
Vidas, de São José. As outras duas instituições que concorreram foram desclassificadas por deixarem alguns campos da inscrição em branco.
“É um serviço público, pessoas passaram no concurso e poderiam estar sendo chamadas para fazer o trabalho. Já temos outras experiências não só no município, mas no âmbito estadual e federal, que demonstram que o caminho não é a terceirização, mas sim utilizar os recursos públicos com responsabilidade e seriedade”, defendeu Mawé.
A vereadora Cíntia Moura Mendonça, da Coletiva Bem Viver, pelo PSOL, também recebeu as denúncias de maus-tratos relatadas pelas acolhidas da Casa de Passagem. Ela fez um pedido de informação para a Secretaria de Assistência Social sobre a situação e está tentando agendar uma reunião com a Defensoria Pública Estadual para tratar do assunto.
Além disso, Mendonça está articulando uma audiência pública na Câmara de Florianópolis para debater tanto a questão das denúncias quanto da terceirização da casa. “O pedido de audiência pública está na lista de requerimentos e ainda não foi aprovada. A cada sessão a gente vai tentando pautar. A minha proposta é pedir inversão de pauta nesta semana [para puxar a discussão]”.
A secretária de Assistência Social disse que a gestão será compartilhada, mas que a participação da prefeitura será na fiscalização e monitoramento do serviço. O edital incluiu profissionais que não eram previstos no quadro de funcionários como advogada para prestar consultoria jurídica, vigilante, facilitadora de oficinas e auxiliar de zeladoria. Segundo a secretária, a entidade pode fazer compra direta, o que agilizaria os serviços de manutenção, e pode substituir profissionais que não tenham interesse em continuar atuando na casa.
“A gente tomou essa decisão com base na recomendação do Ministério Público, após mais de dois anos de tentativas de mediação, de mudança de profissionais, cobrança, capacitação, rodas de conversa e audiências e eu entendendo que a gente precisa fazer uma gestão compartilhada de mais agilidade pra aumentar a qualidade do serviço ofertado às acolhidas”, declarou Silva.